CARLOS LOPES
(HP 19/10/2007)
Kasparov parece ter escolhido o local adequado para iniciar sua campanha a presidente da Rússia: em Washington.
Mestre Hélder Câmara envia-nos a coluna de xadrez do “Washington Post” – que tem, como titular, Lubomir Kavalek, GM tcheco-americano. Na segunda-feira, dia 15, o colunista noticia que Kasparov está em Washington para lançar, no dia seguinte, seu novo livro, “How Life Imitates Chess” (“Como a Vida Imita o Xadrez”).
O título é bastante sintomático, inclusive pela estupidez: como pode a vida imitar algo que é parte dela mesma? Ou será que o xadrez não faz parte da vida? Não é impossível que Kasparov tenha essa última opinião, uma vez que não sabe o que é a vida, porém o mais provável é que não se preocupe com essas minudências. No entanto, é evidente por que a vida tem de imitar o xadrez: para que ele seja presidente da Rússia, assim como foi campeão em xadrez. Para isso, vale tudo, inclusive publicar livros com títulos estúpidos.
No entanto, nos parece que ele, mais uma vez, subestima a inteligência dos outros – nesse caso, dos eleitores russos.
O lançamento em Washington é, naturalmente, para mostrar aos russos como o autor é respeitado pelo mundo. Não é uma surpresa que ele confunda o mundo com os EUA. E, mais ainda, que confunda o incensamento de seu ato de vassalagem com respeito. O que mostra, apenas, que também não sabe o que é respeito. Mas isso o leitor poderá comprovar por outros acontecimentos, nas próximas seções do nosso relato.
O GOLPE
Voltemos a Botvinnik. No Congresso da FIDE de 1959, ele, subitamente, tomou conhecimento da campanha que se desenvolvia “às suas costas”. A questão de abolir o direito do campeão ao match-revanche não estava na pauta divulgada antes do Congresso, o que era obrigatório. Também não havia sido discutida na diretoria – e por uma razão que hoje parece evidente: pelas regras de então, o campeão mundial era membro da diretoria da FIDE.
Botvinnik parece ter ficado completamente surpreso quando Folke Rogard, o sueco que presidiu a FIDE por 21 anos (1949-1970), propôs a revogação do direito ao match-revanche. Mais surpreso ainda deve ter ficado – é o que sugere o tom com que posteriormente abordou a questão – quando a delegação soviética não se opôs. Rogard, que sempre considerou um incômodo a hegemonia soviética, havia tentado acabar com o match-revanche em 1955, durante o Congresso de Gotemburgo. Mas, depois da defesa de Botvinnik, apoiado pela delegação soviética, a proposta contara com apenas um voto, além de Rogard. No entanto, algo mudara entre 1955 e 1959…
Não se tratava de um problema de justiça formal e abstrata (a argumentação era a de que o match-revanche obrigava um desafiante a ganhar dois matches do antigo detentor do título, em vez de apenas um).
Concretamente, a medida era diretamente dirigida contra Botvinnik. Como diria um advogado, faltava a ela a característica da “impessoalidade”, requerida pelo bom Direito. E não apenas porque só havia um único jogador sobre a face da Terra que podia reivindicar o direito que foi abolido.
No centro do método de Botvinnik estava um rigoroso estudo e uma rigorosa disciplina. Mas ele não era somente um enxadrista. A ideia – por sinal, monstruosa – de que jogadores de xadrez somente devem se preocupar com xadrez ainda não havia obtido o beneplácito atual. Ela seria, alguns anos depois, talvez a pior herança que Fischer deixou ao xadrez. Mas, em 1959, não era algo que parecesse razoável – como, aliás, não é.
Todos sabiam que Botvinnik era um pesquisador em áreas de fronteira da ciência e da tecnologia. Para disputar o match com Bronstein, interrompera suas pesquisas sobre geradores sincrônicos. Para enfrentar Smyslov, tivera que deixar de lado, por longos meses, o seu trabalho com motores à corrente alternada. Seu trabalho como pesquisador, em geral, interrompia sua participação em competições, o que não favorecia sua forma no primeiro match. A revanche era, justamente, sua oportunidade de dedicar um ano ao estudo do xadrez – e aí retomar o título. Sem ela, Botvinnik teria que enfrentar um problema a mais – e não era um problema pequeno, sobretudo na sua idade – para manter o título.
Tanto a extinção desse direito tinha um alvo certo, que, na hora de efetivar a medida na presença do próprio Botvinnik, a FIDE acabou por adiá-la: não valeria para a próxima disputa, só sendo instituída em 1963.
Porém, aqui, é necessário entender por que a delegação soviética permitiu – e apoiou – um ataque direto à sua maior glória no xadrez.
O problema não se explica apenas pela pressão de jogadores soviéticos aspirantes ao título, como Botvinnik deixa entender no terceiro volume de suas “Partidas Selectas”, embora observando que esta pressão “não era só dos meus colegas”.
Também não se explica completamente pelo ódio dos kruschevistas a todo e qualquer “símbolo do stalinismo”, inclusive Botvinnik, uma vez que esse atropelo na FIDE era um desprestígio não para Stalin, que já havia falecido, mas para a URSS, e, por consequência, para os seus dirigentes daquela época.
A atitude soviética na FIDE, a partir da segunda metade da década de 50, era parte daquela política de apaziguamento em relação aos países imperialistas, sobretudo em relação aos EUA, que se tornara política oficial na URSS com Kruschev, especialmente após o XX Congresso do PCUS, em 1956 – e que, levada ao extremo por Gorbachev, acabaria numa catástrofe.
Não sabemos o grau de consciência a que Botvinnik chegou sobre essa questão, mas é significativo que ele, em suas memórias, publicadas em 1978, se detenha num acontecimento, pouco anterior à decisão da FIDE, em que isso é claro.
Na Olimpíada de Xadrez de Munique (1958), os norte-americanos fizeram uma proposta indecente. Seu primeiro-tabuleiro, Samuel Reshevsky, recusava-se a jogar aos sábados por motivos religiosos. Assim, eles propuseram aos soviéticos que seu primeiro-tabuleiro, Botvinnik, também não comparecesse ao match URSS-EUA. Assim, ambos pontuariam em branco, e a agenda seria cumprida.
O único obstáculo a isso era Botvinnik: “Recusei-me a pontuar em branco, a despeito da pressão sobre mim do chefe de nossa delegação, D. Postinikov, e do capitão da equipe, A. Kotov. Eles alegavam estar com medo de que os americanos ameaçassem abandonar a Olimpíada e retornar para casa. Enquanto nós estávamos discutindo (isso foi no foyer do Hotel Metropol), o presidente [da entidade] dos jogadores da Alemanha Ocidental, E. Dehne, estava sentado próximo. ‘Por que vocês têm medo de que os americanos vão embora? Quem tem que ter medo disso é Dehne, então, consultem-no‘, eu disse aos meus superiores. ‘Se os americanos querem ir embora, então, que vão‘, disse o alemão, de um modo calmo. Obviamente, eu joguei no match contra os EUA!” (grifos nossos).
TAHL
No mesmo ano em que Smyslov conquistava o título mundial contra Botvinnik, 1957, o Campeonato Soviético foi vencido por Mikhail Tahl, um jovem de Riga, Letônia, então com 20 anos.
Tahl foi, provavelmente, o maior tático e o maior jogador de ataque da história do xadrez. São impressionantes, até hoje, seus sacrifícios de peças, as soluções que pareciam impossíveis em determinadas posições e, não menos importante, sua capacidade de ser bem sucedido em blefar, num jogo que parece pouco propício para isso (o próprio Tahl descreveu implicitamente essa capacidade, na sua maneira bem humorada: “Há 3 tipos de sacrifícios: os corretos, os incorretos, e os meus”).
Independente de sua solidez, isto é, da profundidade ou coerência lógica das suas linhas de jogo, as partidas de Tahl até hoje provocam um prazer estético especial em quem as refaz. Foi com esse estilo espetacular que ele venceu seis vezes o Campeonato Soviético, marca que só foi atingida por um outro único jogador, Mikhail Botvinnik.
Em seu livro autobiográfico, no qual aborda sua experiência como engenheiro, pesquisador e enxadrista, Botvinnik, sucintamente, destrincha aquilo que nas décadas de 50 e 60 era considerado um mistério – o estilo “mágico” de Tahl, chamado, por essa razão, “o bruxo de Riga”:
“… do ponto de vista da cibernética e da ciência da computação, Mikhail Tahl é um aparato de processamento de dados, um aparato que possui um banco de memória maior e uma velocidade de resposta mais rápida do que os de outros grandes mestres. Isso tem importância decisiva nos casos em que as peças têm grande mobilidade no tabuleiro. Tahl não estava muito interessado em avaliar objetivamente a posição em que estava metido. Podia mesmo ser que, objetivamente, ele ficasse pior ali, mas se somente suas peças estavam móveis, as ramificações de variantes são tão extensas, tão grande é o número de jogadas nessas ramificações, que o oponente não podia dar conta delas e a rápida reação e memória de Tahl falariam mais alto. Essa é a base completa do incomum, do fantástico jogo de Tahl. Ele é baseado em fatores perfeitamente prosaicos” (“Achieving the Aim”, pág. 158 – uma nota: traduzimos o termo técnico “analytical tree” por “ramificações” porque este não é um texto destinado apenas aos enxadristas).
Mas essa compreensão de Botvinnik sobre o jogo de Tahl, é forçoso ressaltar, somente apareceu 18 anos após o primeiro match entre os dois.
Sob alguns aspectos, o jogador letão, um professor de literatura, era o oposto de Botvinnik: fumante inveterado, mais do que chegado a um copo, dado ao que ele mesmo chamou de “caça às moças”, indisciplinado a ponto de escapar à noite da concentração e levar uma garrafada na cabeça numa boate em Havana, com tendência a jogar para a plateia, desprezando a abordagem científica em xadrez (“xadrez é arte”), sempre disposto a fazer a tática sobressair em relação à estratégia.
Não por acaso, Smyslov, um estrategista, disse que o estilo de Tahl “não era mais do que um conjunto de truques”.
Essa não era a opinião de Botvinnik, que compreendia melhor do que Smyslov a verdade enunciada por Lasker no final do século XIX: “xadrez é luta”. Se é lícita a comparação, Tahl é o Garrincha do xadrez (até em certas tiradas eles se parecem: em 1958, um jornalista perguntou-lhe quando seria campeão do mundo. Resposta: “primeiro preciso combinar com os outros grandes mestres”). Todos gostavam dele, até mesmo o próprio Smyslov, e outros jogadores que em tudo eram opostos – foi muito amigo de seu antípoda perfeito no xadrez, o futuro campeão Tigran Petrosian. Aliás, até Fischer, o que é quase um milagre, considerando-se a hostilidade deste em relação aos jogadores soviéticos (e não só aos soviéticos).
Em 1958, além de vencer outra vez o campeonato da URSS, Tahl venceu o Torneio Interzonal de Portoroz, Iugoslávia, qualificando-se para o Torneio de Candidatos. No ano seguinte, ele venceria também esse torneio, e com um resultado espetacular: no confronto direto (os jogadores disputavam quatro partidas entre si), ele venceu 4 vezes Bobby Fischer, 2 vezes Smyslov e 3 vezes o iugoslavo Gligoric – provavelmente, na época, o jogador mais forte fora da URSS. Apenas o segundo colocado, Paul Keres, conseguiu um score favorável no confronto com Tahl – 3 vitórias e uma derrota.
Desafiante de Botvinnik, Tahl venceu-o em 1960 – derrotou o veterano campeão em 6 partidas, perdeu em apenas duas, e fechou o match já na 21ª partida, três antes do limite de 24 partidas. Era, depois disso, o mais jovem campeão mundial, até então.
Mas ainda havia o match-revanche. E Botvinnik, apesar da diferença de idade – 25 anos a favor de Tahl – resolveu enfrentá-lo. Não possuía toda a compreensão do jogo de Tahl que adquiriu depois, mas considerou suficiente a que, então, conseguiu chegar. Como escreveu, nas “Partidas Selectas”: “analisando o encontro sob um enfoque criativo, nosso [primeiro] match também proporcionou abundante material para identificar as debilidades de jogo do jovem campeão. Inclusive quando não estava em consonância com o espírito da posição, Tahl se esforçava para agudizar o jogo. Lançava-se em posições difíceis, só para alcançar maior mobilidade para suas peças, com o que podia mostrar sua capacidade única para o cálculo de variantes, assim como… a falta de tempo do adversário para pensar as jogadas. Este enfoque utilitário em relação ao xadrez lhe assegurou êxito, mas a um preço muito alto. Fechou-se em um estilo de jogo unilateral, estreitou as possibilidades criativas e engendrou a possibilidade de um futuro fracasso”.
Porém, em 1961, Botvinnik era o único a fazer esse julgamento. As previsões eram todas a favor de Tahl, um jogador de quem Fischer disse ao iugoslavo Dimitrije Bjelica: “Pode-se esperar qualquer coisa de Tahl” (cf. o livro de Bjelica, “Bobby Fischer”, na série “Kings of Chess”). A imprensa soviética estava toda por Tahl e contra Botvinnik. Um dos poucos torcedores que este ainda mantinha era Leonid Brezhnev, na época presidente do Soviet Supremo. Mas, como Brezhnev disse depois a Botvinnik, foi uma torcida solitária dentro de sua própria casa…
Infelizmente, já nessa época a frágil saúde do jovem campeão começou a tornar-se um problema. Tahl era portador, ou era acometido periodicamente, de uma série de doenças, entre as quais um problema renal que o acompanhou até a morte – ocorrida em junho de 1992, após, no dia anterior, fugir do hospital, comparecer a um torneio em cadeira de rodas, e vencer a partida com um brilho que lembrava o jovem do final da década de 50. Como lembrou, numa entrevista em 2003, sua primeira mulher, Sally Landau, um mês antes, em outra fuga do hospital, ele havia sido o único a derrotar Kasparov, então no auge, no Torneio de “Blitz” (partidas rápidas) de Moscou.
Com a notícia de que Tahl estava doente em Riga, Botvinnik propôs um adiamento, desde que o campeão, de acordo com as regras, apresentasse um atestado médico. Tahl recusou o adiamento. Provavelmente, ele sabia, ou sentia, que se tivesse de esperar pela recuperação completa, nunca mais jogaria xadrez em competições.
O match foi algo espetacular, mas não à maneira de Tahl. Nesse match, Botvinnik conseguiu aquilo que não conseguira no match com Bronstein: mostrar como um estrategista pode enfrentar e vencer um jogador tático – nesse caso, um tático bem maior do que Bronstein.
Simplesmente, ele não deu – ou quase não deu – oportunidade para que Tahl exercesse seu talento: “eu resolvi jogar trabalhando em duas direções: (1) aprender com Tahl a como ser um bom e astuto prático, e, (2) preparar o tipo de aberturas, e, associados a elas, planos de meio-jogo, em que a luta é de natureza fechada, o tabuleiro é cindido em seções separadas, as peças não são demasiado móveis. Nunca pensar se a minha posição é objetivamente pior nesse caso. Pelo menos meu oponente não seria capaz de explorar sua rápida reação e memória (e [assim] minha compreensão das posições falaria mais alto)” (“Achieving the Aim”, pág. 161).
O match foi no terreno escolhido por Botvinnik – e, nesse terreno, a estratégia, ele era, realmente, e apesar da idade, superior a Tahl. Com 10 vitórias contra 5, o match terminou com a recuperação do título – e Botvinnik já estava com 50 anos, uma idade avançada para um campeão mundial de xadrez.
FISCHER
No Torneio de Candidatos de Curaçao, em 1962, o armênio Tigran Petrosian saiu vencedor.
Porém, logo que foi encerrado o Torneio de Curaçao, e antes do match de Petrosian com Botvinnik, a revista americana “Sports Illustrated”, em agosto de 1962, publicou um artigo que estabeleceria o eixo da campanha anti-soviética no xadrez pelas décadas seguintes. A força especial do artigo era dada pelo seu autor, o único jogador americano em condições de enfrentar os melhores jogadores soviéticos, Robert James Fischer – ou, simplesmente, Bobby Fischer. Por isso, é necessário que nos detenhamos agora nele.
(continua)