Ex-Chefe do Estado Maior da PM do RJ
“Querem que nós, policiais, façamos o serviço sujo de um extermínio fascista”
“Marielle confiava na polícia, pelo menos em parte dela, uma parte na qual eu te incluo. Marielle, assim como nós, não confiava na polícia violadora de direitos, na polícia bandida, mas confiava na instituição policial, naqueles que não querem que ela seja instrumentalizada para fins vis e elitistas, sendo direcionada para os mesmos estratos de onde a maior parte de nossos próprios policiais vêm”, disse o coronel Robson Rodrigues, ex-chefe do Estado Maior da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em mensagem a um colega policial, que divulgou publicamente.
O coronel lembra que sua amizade com a vereadora começou quando “ela me trouxe, de forma educada mas contundente, o caso de algumas mães amedrontadas com a ação de policiais que barbarizavam moradores de uma certa favela com UPP [Unidade de Polícia Pacificadora]. Os fatos eram indefensáveis. Aqueles comportamentos não era o que se podia esperar de uma instituição que existe para combater o crime, mas, sobretudo, para servir a população. Se Marielle veio até a mim buscando solução, era porque confiava na polícia”.
“Depois disso”, conta o policial militar, “ela me procuraria para saber como ajudar policiais que sofriam abusos, assédios moral e sexual e outros tipos de violações de direitos. Eu te pergunto: alguém que ‘só quer defender bandido’ teria esse comportamento?
“Na ocasião, me lembro de ter comentado com ela do sofrimento dos policiais subalternos, da mulher policial, da mulher negra policial etc. Um fato em especial me tocava naquele momento: o de viúvas de PM. Eu disse a ela que uma das formas de ajudar poderia ser agilizando os processos de obtenção de suas pensões. Há trâmites administrativos que emperram a pensão da viúva e que extrapolam as possibilidades da corporação; há também a lentidão da investigação da morte dos policiais militares por parte da PCERJ [polícia civil], que é formalidade do processo.
O coronel relata como Marielle contribuiu para criar um núcleo de atendimento a policiais.
“Mesmo depois de ter deixado a PM, encaminhei alguns casos. Nossos praças e oficiais mais subalternos, principalmente as policiais negras, são discriminadas diariamente em nossa instituição, sofrem assédios, sobretudo por parte de pessoas como nós, oficiais e brancos. Recentemente a PM impôs limite de vagas para mulheres no concurso do CFO [Curso de Formação de Oficiais], mas contra isso ninguém de dentro se colocou. Marielle se interessava por essas causas, que, infelizmente, ainda não tocam nossa sensibilidade institucional. Com suas bandeiras ela defendia muito mais nossos policiais do que nós fomos capazes de compreendê-lo e de fazê-lo.
“Não me apraz falar, não me apraz comparecer a rituais de despedida fúnebre e sentir o sofrimento das pessoas, principalmente dos familiares, em respeito a suas dores. O cargo me obrigou a assistir inúmeros enterros, de inúmeras vítimas policiais de uma guerra fratricida que nos prostra enquanto seres humanos. Uma guerra inglória. Abri uma exceção por um dever de consciência; para falar de uma amiga, a vereadora Marielle, porque, se sua morte me impactou, muito mais tem impactado a forma vil e cega e infame como ela vem sendo tratada por algumas pessoas nas redes sociais.
“Meu sentimento”, escreve o coronel Robson, “é expressado nos versos do poeta John Donne: ‘a morte de qualquer homem (ou mulher) me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti’. Choro agora por uma amiga admirável, sobretudo porque lutava contra essa estupidez e sonhava com uma sociedade melhor.
“A vereadora Marielle era corajosa; lutava a favor das minorias, mas principalmente contra a estupidez das mortes desnecessárias que têm endereço e destinatários certos. Mortes muitas vezes festejadas por pessoas que querem que nós, policiais, façamos para elas o serviço sujo de um extermínio fascista. Não se esqueça que também acabamos vítimas dessa estupidez.
“Portanto, postagens maldosas como essas, que vêm circulando nas redes sociais, além de não retratarem a realidade, são de um imenso desrespeito não só à historia de Marielle, mas aos nossos policiais honestos e trabalhadores sofridos, sobretudo às policiais negras, que tanto necessitam ser acolhidas nas causas que ela magnificamente defendia. Que tenhamos Marielle presente para transformar nossa polícia em uma instituição melhor para a sociedade e para policiais vocacionados”.
“Te conheço”, diz o coronel ao colega, “há bastante tempo para saber o quanto você é inteligente para não se deixar levar por esses discursos que destilam o ódio, mesmo nesses momentos de dor. Deveríamos, sim, nos unir enquanto sociedade contra o maior problema civilizatório que nos afeta e dilacera: a violência homicida.
“Choro pelas mortes infames, do cidadão comum, dos meus amigos, dos meus amigos policiais dos quais já perdi a conta inúmeras vezes. Meu primeiro serviço como aspirante foi atender a ocorrência do assassinato de um policial militar, adorado em meu Batalhão. Chorar com sua família me fez pensar o quão difícil seria aquela trajetória profissional que eu havia abraçado.
“Choro agora por uma amiga admirável, sobretudo porque lutava contra essa estupidez e sonhava com uma sociedade melhor.”