“O Exército vai se manter como sempre esteve esse tempo todo: longe de qualquer papel político”, enfatizou o general
O general Sergio Etchegoyen, militar que passou 45 anos no Exército e foi ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), afirmou, na terça-feira (30), em entrevista à jornalista Malu Gaspar, do jornal O Globo, que “nunca as Forças Armadas aceitaram ser tratadas de outra forma que não como instituição de Estado”. Ele acrescentou que “as Forças Armadas não vão para a rua defender politicamente ninguém.”
As declarações do general foram feitas em função da tentativa tresloucada de Jair Bolsonaro de envolver as Forças Armadas em aventuras golpistas. Contrário às medidas sanitárias de combate à pandemia tomadas pelos governadores e prefeitos, Bolsonaro achou que podia instrumentalizar as FFAA para, de alguma forma, pressioná-los contra essas medidas. Diante da resistência a essa manipulação, revelada pelo ministro da Defesa, general Eduardo Azevedo Silva, e também pelos comandantes militares das três Forças, Bolsonaro se chocou com eles e demitiu o ministro da Defesa, criando uma crise com a cúpula militar brasileira.
“O Exército vai se manter como sempre esteve esse tempo todo: longe de qualquer papel político”, enfatizou o general. “A substituição pode ter a ver com o fato de o presidente estar incomodado com alguma coisa e buscar ter um relacionamento mais fácil com os chefes das Forças. Mas daí a achar que vai mudar a posição das Forças Armadas em relação a seu papel institucional vai uma grande distância”, disse Etchegoyen.
Segundo o ex-chefe do GSI, o general Fernando Azevedo “foi muito feliz nas palavras e na condução do Ministério da Defesa. Na carta, ele deixa uma síntese da ação dele. Se botou isso, é porque foi importante para ele. Veja que ele salienta na nota o agradecimento aos comandantes pelo que fizeram na área humanitária. Ele achou isso tão importante a ponto de ser um parágrafo na nota de despedida”.
A seguir os principais trechos da entrevista de Malu Gaspar.
ENTREVISTA
O Alto Comando do Exército se reuniu ontem e hoje e seus membros têm dito a interlocutores que a força não vai ceder a tentações golpistas. Como devemos entender isso? O Exército pode vir a atuar para parar o presidente?
Nunca as Forças Armadas aceitaram ser tratadas de outra forma que não como instituição de Estado e pelos canais apropriados, por mais hostil que fosse o momento. Nos últimos anos, já enfrentaram, por exemplo, uma tentativa sórdida de avanço sobre as competências dos comandantes na gestão do pessoal, no mandato da presidente Dilma – que depois o próprio PT botou lá em seus documentos que lamentava não ter promovido oficiais generais que não fossem alinhados com o projeto de governo deles. E ainda assim o Exército se manteve fiel aos princípios legais. Acho que não será diferente agora.
Mas a atitude do presidente de demitir o ministro da Defesa e os comandantes das forças, da forma como foi, não é uma atitude hostil?
Se você considerar o aspecto pessoal, da relação com os comandantes, pode ser entendido assim. Mas do ponto de vista institucional, das Forças Armadas, não, porque o presidente tem a prerrogativa de fazer isso. É um dos poderes dele. Na cabeça do militar, vai ser analisado sempre da seguinte forma: isso é legítimo do ponto de vista legal? Goste-se ou não, é.
A questão é que as razões pelas quais o presidente fez isso parecem ir além da relação pessoal. Estariam mais ligadas a coisas que o presidente queria que fossem feitas, como por exemplo acomodar o ex-ministro Pazuello ou manifestações contra decisões do STF sobre o lockdown.
Para comentar isso, eu teria que imaginar que os próximos comandantes aceitariam uma proposta de ilegalidade, e nisso não acredito. A substituição pode ter a ver com o fato de o presidente estar incomodado com alguma coisa e buscar ter um relacionamento mais fácil com os chefes das Forças. Mas daí a achar que vai mudar a posição das Forças Armadas em relação a seu papel institucional vai uma grande distância.
Há uns dias, o presidente disse que “meu exército não vai cumprir lockdown”. O general Fernando Azevedo disse a aliados que saiu porque não queria repetir o mês de maio de 2020, quando houve as manifestações por intervenção militar. Na carta de demissão, ele fez questão de registrar que defendeu as instituições de Estado. Isso não denota uma preocupação com o que pode acontecer com essas instituições?
Eu não conheço as razões do general Fernando, como não conheço as razões do presidente, mas ele (o general Fernando) foi muito feliz nas palavras e na condução do ministério da Defesa. Na carta, ele deixa uma síntese da ação dele. Se botou isso, é porque foi importante para ele. Veja que ele salienta na nota o agradecimento aos comandantes pelo que fizeram na área humanitária. Ele achou isso tão importante a ponto de ser um parágrafo na nota de despedida.
Crise: Azevedo diz que saiu da Defesa porque não queria reviver maio passado
O senhor diz que o Exército não vai assumir um papel político. Se houver um impasse institucional, então, a quem caberá resolver?
Numa situação hipotética, se houver um impasse institucional, a solução será institucional. As instituições vão ter que encontrar a forma de resolver. As Forças Armadas não têm legitimidade para isso. Nem querem, nem eu acredito que entrassem numa aventura desse tipo. Qualquer solução terá de ser imposta por um dos poderes, particularmente o Congresso e a Justiça. É o Judiciário quem tem a capacidade de tomar decisões desse tipo e o Congresso, de editar as leis. As Forças Armadas só agirão se forem convocadas por qualquer dos poderes, nos limites do artigo 142 da Constituição.
E se o presidente as convocar para alguma ação golpista?
Não acredito que o presidente convoque para fazer ações golpistas. Eu acho que o que aconteceu foi uma crise política que envolveu os comandantes militares e o ministro da Defesa. Não é uma crise militar no sentido de que os militares ou as forças possam tomar uma atitude. É uma crise política que chega no Ministério da Defesa. O novo ministro, como vai lá com a confiança do presidente, certamente saberá resolver. O presidente fez amparado na legalidade. ‘Ah, mas eu não gosto do que ele fez”. Tá bem, todo cidadão pode ter sua opinião. Mas o presidente está amparado na legalidade.
O senhor acha normal que uma crise política envolva o Ministério da Defesa? O que isso diz sobre o momento que a gente vive?
Isso gera um mal-estar interno. Mas faz tão mal à nossa democracia a gente achar que em qualquer soluço político os militares possam tomar uma atitude… Não faz muito tempo que me afastei, conheço as pessoas que estão lá, existem valores perenes e um deles é o apego à normalidade democrática, à soberania popular e ao presidente da República como comandante Supremo. Nós já tivemos comandantes supremos que não eram os mais votados nas Forças Armadas e nem por isso deixaram de comandar.
Não é o caso do Bolsonaro, que teve apoio das Forças Armadas.
Sim, mas mesmo quem não teve esse apoio, governou sem dificuldades. Outro dia mesmo o presidente Lula disse que teve um excelente relacionamento com o Exército. As Forças Armadas vão seguir cumprindo seu dever, tocando os seus projetos, fazendo o que tem que fazer. E não serão fonte de crise e de instabilidade.
Essa crise pode afetar o apoio que Bolsonaro teve na caserna ou nas tropas?
Poder pode, não sei dizer em que medida. Mas não vejo como isso vá mudar o cenário geral, que é o do papel institucional e da missão a cumprir. Daqui a pouco as coisas se arrumam e as pessoas restabelecem as relações de confiança.
Até a próxima crise.
Eu não acho que a crise esteja nas Forças Armadas, se há crise ela pode ter acontecido nas nomeações de outros ministros. Provavelmente houve um desgaste no relacionamento e o presidente resolveu trocar. O que eu acho é que a gente tem uma visão estruturalmente equivocada. Cada vez que acontece uma coisa, a gente acha que houve uma crise militar. Não teve no governo Lula, não teve sob Dilma, não teve no governo Temer e não terá agora. As Forças Armadas não vão para a rua defender politicamente ninguém.
Não há nessa crise nenhum eco de 1964?
Em 1964 tinha apoio popular, apoio da imprensa, apoio da população, uma porção de coisas. Se acharem que tem gente na mesma quantidade para sair para a rua apoiar uma ruptura em nome do presidente ou a queda do presidente, tá bem. Mas não vão achar. Nem vão achar nas Forças Armadas alguém que imagine que isso seja a solução. E lamento muito que alguns na sociedade achem que isso seja possível. O Brasil é um país sofisticado institucionalmente. Eu mesmo tenho críticas a muitas coisas no funcionamento das nossas instituições. Mas elas estão funcionando e, mais do que isso, estão sendo obedecidas.
Com tudo isso, os senhor acha que instituições estão funcionando?
Veja, crise é o sobrenome da política. Sempre tem sido assim no Brasil. Cada vez que há um conflito a gente vive uma crise, talvez até banalizando o termo, e vamos indo assim. Nós enfrentamos tudo. Quando eu olho em volta, acho difícil imaginar um país como o nosso, que tenha tido tantas crises e mesmo assim não tenha tido um abalo institucional. Um grande patrimônio que a gente construiu, de um país que amadureceu. Isso tem que ser valorizado.
A questão é que o próprio presidente sugere rupturas toda hora.
Não vou comentar o presidente. Qualquer cidadão pode dizer o que quiser, o que interessa é se isso tem consequência ou não. O presidente é um homem chegado a declarações fortes. Mas ele não tomou nenhuma medida concreta que afrontasse a democracia
Não foi por falta de apoio?
Não sei avaliar a razão, mas a realidade é essa. Ele adota uma política com discurso forte, mas isso não se reflete nas ações dele. Ele nunca deixou de acatar as decisões do STF. Não deixou de acatar, nas vezes em que o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia deixou vencer uma medida provisória. Não cercou Congresso, não cercou STF. A gente tem que trabalhar com antecedentes. Quais os antecedentes? Eu nunca vi o presidente sair de um discurso forte para ações que ferissem a institucionalidade.