O projeto é polêmico e tem o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O debate é influenciado pelo fato de as vacinas estarem em falta. Especialistas afirmam que privatizar a vacinação não vai resolver o problema. Até pelo contrário. Poder criar “lista VIP”
De acordo com a relatora, deputada Celina Leão (PP-DF), o empresário terá duas opções: doar metade das vacinas para o SUS (Sistema Único de Saúde) ou vacinar toda a família do empregado. Depois, a proposição terá de ser analisada pelo Senado.
A Câmara deve votar, na próxima quarta-feira (7), o projeto de lei (PL 1.110/20) que permite a compra de vacinas pelo setor privado. Antes, na terça-feira (6), os deputados votam a urgência para o projeto.
O projeto original permitia que as empresas abatessem o valor gasto com a compra de vacinas do imposto de renda. A relatora retirou essa possibilidade. Além disso, seu substitutivo não permitirá a comercialização das vacinas. O projeto conta com o apoio majoritário da Câmara e deve ser aprovado.
A deputada explicou: “Eu tirei tudo isso de abatimento de impostos. Fiz um novo projeto. O relatório está totalmente diferente”.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), defende o projeto, pois entente que as empresas poderão ter mais agilidade na compra das vacinas.
“A iniciativa privada talvez possa ter, neste momento, uma agilidade por outros caminhos, que possam trazer outras vacinas para o Brasil. E qualquer brasileiro vacinado é um a menos nas estatísticas de quem pode correr o risco de contrair o novo vírus”, defendeu Lira.
A vacinação no Brasil está muito atrasada. Apenas 8,78% da população recebeu a primeira dose da vacina contra a Covid-19 até a última quinta-feira (1º), segundo o consórcio de veículos da imprensa; a proporção de quem recebeu as duas doses era de ínfimos 2,47%.
COMPRA DIRETA
O texto original de um dos projetos que foi anexado o PL 1.110, de vários autores, abre espaço para a compra de vacinas diretamente por empresários, além de legalizar a vacinação de funcionários e familiares de quem adquirir o produto, estabelecia que poderiam ser integralmente deduzidas do IR (Imposto de Renda) das pessoas jurídicas as despesas provenientes da aquisição das vacinas.
Ao apresentar substitutivo (texto novo), a deputada afirma que o que está sendo construído não trata de nenhuma isenção de imposto. “Pelo contrário, dobra a contribuição do privado”, ressalta a parlamentar.
“Se ele [o empresário] quer ajudar de verdade, além de vacinar o trabalhador dele, vai ter que doar ao Sistema Único de Saúde toda a quantidade correspondente às vacinas dadas em seus empregados”, disse.
SUS COMO CONDUTOR DA VACINAÇÃO
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que a vacinação privada não é a melhor solução, mas afirmou que iria respeitar a decisão do Congresso e do governo sobre o assunto.
“Pessoalmente, entendo que o Sistema Único de Saúde deve ser o condutor da política de vacinação, mas em respeito ao Congresso e ao Palácio do Planalto, temos que acolher a possibilidade de a iniciativa privada trazer vacinas”, afirmou. Segundo ele, se a medida “ajudar a levar vacinas aos brasileiros, será bem-vinda”.
O QUE A LEI BRASILEIRA JÁ PREVÊ
Lei sancionada pelo próprio Bolsonaro em 10 de março, a partir de projeto aprovado pelo Congresso Nacional, já autoriza a compra de vacinas pelo setor privado no país. Mas faz exigências:
Enquanto houver grupos prioritários a serem vacinados, as doses terão de ser doadas integralmente ao SUS. Após a imunização dos grupos prioritários, empresas poderão usar as vacinas, desde que doem ao SUS 50% das doses compradas.
DEBATE INFLUENCIADO PELA FALTA DE VACINAS
Os laboratórios não terão capacidade de fornecer vacinas em quantidade necessária para imunizar toda a população mundial, cerca de 7,8 bilhões de habitantes, em 2021. Segundo o Centro de Inovação para a Saúde Global da Universidade Duke, países pobres provavelmente teriam que esperar até 2023 e 2024 para imunizar toda a sua população.
Por isso, os governos têm definido grupos prioritários, formados por pessoas que são mais expostas aos riscos de infecção, como os profissionais de saúde na linha de frente, e os que têm mais chances de morrer caso fiquem doentes, como os idosos (no Brasil, 70% das vítimas têm mais de 60 anos) e pessoas com doenças como diabetes e hipertensão.
Liberar a venda de vacinas na rede privada quando nem toda a população tem acesso à imunização pelo SUS seria uma tentativa de furar a fila e de criar uma “lista VIP”, segundo alguns especialistas.
Em entrevista ao portal Nexo em janeiro, o professor titular de filosofia Alcino Eduardo Bonella, da Universidade Federal de Uberlândia, que é da Associação Internacional de Bioética, lembrou que, se uma pessoa que não está no grupo de risco toma a vacina, essa vacina deixa de ser dada para uma pessoa que está no grupo de risco, já que todas as doses vêm dos mesmos fabricantes.
“Esse tipo de ação [permitir a venda privada] não maximiza o objetivo da vacinação, porque a pessoa que não tomou e que está no grupo de risco ainda vai poder pegar a Covid, usar a UTI [Unidade de Terapia Intensiva], lotar o setor hospitalar. Então, seguir a lista de prioridades também leva em conta como maximizar o efeito da vacinação. A prioridade é uma questão de justiça, de tratamento igual entre as pessoas”, entende Bonella.
INEFICÁCIA, INJUSTIÇA E ANTIÉTICO
Ainda segundo Bonella, furar a fila da vacina não ajuda a diminuir os efeitos da pandemia e é injusto com quem deveria ser vacinado antes. “Além de antiético, é imprudente, porque afeta a sociedade negativamente. Exacerba o conflito, a agressividade, a desigualdade”, disse.
Em nota, o CNS (Conselho Nacional de Saúde) afirmou na última quarta-feira (31), que a tentativa de mudar a legislação para permitir a compra privada é uma maneira de oficializar o fura-fila e o “camarote VIP da vacina”.
Segundo o jornal Valor Econômico, em reportagem publicada em janeiro, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, que acompanhou conversas sobre o tema em grupos de empresários e investidores, também se posicionava contrário à compra privada devido ao temor de que essa pudesse inflacionar o mercado (já que as empresas pagariam muito mais pelas doses) e consequentemente dificultar as tentativas do governo de comprar mais imunizantes.
A POSIÇÃO DOS LABORATÓRIOS
Na última quarta-feira, o Jornal Nacional, da TV Globo, questionou os laboratórios Pfizer, AstraZeneca, Janssen, Butantan e Fiocruz se estes negociariam a venda de vacinas para empresas privadas. Todos responderam que só irão vender doses para governos federais.
“Desde 2020 há um consenso na OMS [Organização Mundial de Saúde] de que a venda dos grandes laboratórios é prioritariamente, se não exclusivamente, aos governos, às autoridades públicas. Empresas maiores como AstraZeneca e Pfizer chegaram a dizer em entrevistas ou reuniões com a OMS que essa era a prioridade, até porque há tanto pedido do setor governamental que nem tem como vender para outro setor”, afirmou ao portal Nexo em janeiro o professor Alcino Bonella.
Ao Jornal Nacional o coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia, Sérgio Cimerman, disse que a compra privada não deve ser “exequível” porque os laboratórios farmacêuticos já têm contratos firmados com os governos federais de diversos países e “não estão conseguindo atender a demanda”. “Quanto mais fazer uma demanda extra para as situações específicas privadas”, disse.
O próprio ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, sugeriu, na última quarta-feira, que mesmo a iniciativa privada teria dificuldades para adquirir as vacinas. “Já aviso que grandes indústrias de produção de vacina não estão vendendo para a iniciativa privada”, disse.
Em entrevista ao jornal O Globo, a epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunizações, disse que os grandes laboratórios devem se recusar a negociar com a iniciativa privada por causa do possível abalo que isso poderia acarretar na reputação das empresas.
“Não vejo justificativa para a venda de vacinas dos laboratórios para empresas. Elas pagariam mais que os governos? Isso seria um dano de imagem monumental para os laboratórios”, disse.
Em março, a revista Piauí divulgou que empresários em Minas Gerais tinham se articulado para vacinar clandestinamente um grupo de pessoas com doses possivelmente contrabandeadas. Segundo a polícia, as vacinas eram provavelmente falsas. Laudo divulgado na última quinta-feira (1º) mostrou que parte do material apreendido com uma falsa enfermeira envolvida no caso era, na verdade, soro fisiológico.
A DISCUSSÃO EM OUTROS PAÍSES
Todos os países que estão vacinando contra a covid-19 organizaram campanhas públicas e gratuitas de imunização. Mas o tema da oferta privada de doses também foi debatido em países como Austrália, Colômbia, Reino Unido e Nova Zelândia.
No final de 2020, uma discussão sobre o privilégio de determinados grupos na fila da vacinação ocorreu no Canadá, depois que a imprensa divulgou os planos da Liga Nacional de Hóquei de gelo de comprar doses para imunizar todos os envolvidos na temporada de 2021.
“Seria muito problemático do ponto de vista ético se equipes esportivas e seus integrantes se vacinassem primeiro. Estamos numa emergência global. Se você fosse destinar centenas de vacinas para equipes esportivas, por exemplo, isso poderia literalmente custar a vida de outras pessoas vulneráveis”, afirmou ao canal canadense Global News o professor especialista em bioética Kerry Bowman, da Universidade de Toronto.
Em janeiro, o México foi o primeiro país a autorizar a compra por governo locais e pelo setor privado de vacinas contra a Covid-19. Segundo o governo mexicano, a medida poderia contribuir se os compradores seguissem a mesma visão estratégica e técnica sobre a imunização no país.
O país havia aprovado o uso das vacinas da AstraZeneca/Oxford, Pfizer/BioNTech e Sputnik V. Até o final de março, a campanha no México estava mais atrasada do que a do Brasil. O país tinha vacinado apenas 5,4% da população com uma dose e 0,7% com duas doses.
Também no final de março, o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, afirmou que o setor privado seria autorizado a comprar vacinas. Segundo a TV CNN, o presidente alegou que a medida serviria para que o país pudesse reabrir sua economia. Assim como no Brasil, as Filipinas adotaram as vacinas de Oxford e da Sinovac, mas não há dados sobre a vacinação no país.
M. V.
Com informações do portal Nexo