(HP 11/05/2011)
Existe um motivo especialmente importante para a reprodução, nos dias de hoje, deste texto de Cláudio Campos, fundador da Hora do Povo, que completaria 64 anos no dia 5 de maio.
Publicado pela primeira vez em nossa edição de 16/10/1996, com o título “A incrível prostração e o refinado fascismo de Fernando Henrique”, o texto conserva, aliás, plena atualidade.
A rigor, são dois os motivos, que competem em importância, para a republicação do texto de Cláudio.
O primeiro é que, de repente, houve um “revival”, esperemos que com vida curta, daquele tipo de vigarice neoliberal que sempre afirmava que só existia um caminho para a economia, qual seja, juros altos e sempre mais altos, importações predatórias subsidiadas por um câmbio artificial, venda acelerada de pedaços da economia nacional – isto é, de empresas nacionais ao capital externo -, redução do salário real e destruição de todos os instrumentos de fiscalização ou regulação da economia.
Certamente, o “revival” atual não é completo – pois não existe espaço político para isso depois do segundo mandato do presidente Lula. No entanto, a vigarice está em afirmar que esse é o único caminho, o único “responsável” ou o único “que controla a inflação” (cáspite!) exatamente com a finalidade de obter espaço político para que seja completo. Essa era a conversa de Fernando Henrique em 1996, que Cláudio Campos desmonta magistralmente.
A outra questão importante – esta mais de fundo, isto é, de caráter estratégico – são as transformações necessárias ao Brasil na etapa atual da sua História. O mesmo Fernando Henrique foi autor de uma tese que, infelizmente, ainda é repetida por alguns incautos (além de alguns tolos e alguns indivíduos de má-fé) como se fosse algo óbvio – e não, como efetivamente é, uma patranha ideológica para impor ao país o que há de mais reacionário. Trata-se de sua pregação segundo a qual a dependência não bloqueia o desenvolvimento.
Sobre isso, Cláudio Campos analisa a forma completa desta infeliz “teoria”, apresentada no livro “Dependência e Desenvolvimento na América Latina”, publicado por Fernando Henrique e Enzo Faletto em 1967.
Resta acrescentar, agora, o seguinte: já em um livro escrito em 1963 (e publicado no ano seguinte), “Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico”, Fernando Henrique tinha como alvo de seu ressentimento a nação. Na descrição de um admirador embasbacado e sem espírito crítico desse livro, apresentado sob a forma de pesquisa empírica, “após uma minuciosa dissecação da burguesia industrial brasileira, o [livro] conclui que essa classe não aspirava a realizar qualquer ruptura com as oligarquias agrárias numa revolução burguesa, que a aproximaria do proletariado. Muito menos havia qualquer intenção de se afastar do capital estrangeiro, do qual ela queria mais era se tornar sócia” (cf. Guido Mantega, “Teoria da Dependência Revisitada – um Balanço Crítico”, EAESP/FGV/NPP, 2005, pág. 39).
Poucas vezes se escreveu algo tão estúpido (tanto o livro quanto essa síntese manteguiana). Como nota Cláudio, “é igualmente uma tola racionalização a afirmação de que a emancipação nacional é impossível porque o ‘empresariado nacional se associou ao capital externo’ e não quer lutar pela libertação. Isso é a mesma coisa que dizer que a luta pela emancipação nacional é prerrogativa unicamente da burguesia. Mas a emancipação, assim como a democracia, interessa muito mais ao proletariado e ao povo do que à burguesia. Se a burguesia não quisesse lutar pela emancipação nacional, isso não impediria o povo de lutar por ela e conquistá-la. E nem por isso deveríamos nos propor atingir imediatamente o socialismo – que, de resto, FH considera que ‘não resolve o problema’ e deve ser posto definitivamente de lado – porque essa é uma transformação muito mais profunda que exige um nível de consciência e organização muito mais desenvolvido”.
Qualquer um que ignore a questão nacional, numa sociedade, como a brasileira, que é caracterizada centralmente pela espoliação nacional, chegará sempre às conclusões mais reacionárias e imprestáveis para o desenvolvimento e para o progresso. Foi o que vimos com Fernando Henrique – e, agora, com a tentativa do sr. Mantega de tornar-se seu epígono.
Mas, deixemos o leitor com o texto de Cláudio.
C.L.
CLÁUDIO CAMPOS
Imprensado pela rotunda derrota eleitoral que acaba de colher e pelo agravamento da situação econômica (recessão, desemprego, e sobretudo, tensão nas contas externas, que o obrigaram a uma violenta contração da moeda em circulação, a poucas semanas do pleito) Fernando Henrique Cardoso, em entrevista à “Folha de S. Paulo”, baixou a guarda, abriu a alma e deu mostras de um tal nível de esmagamento, subserviência e índole fascista que surpreendeu até a nós, que não podemos ser acusados de condescendência a seu respeito.
Com uma insensibilidade pelas “pessoas”, como gosta de dizer, verdadeiramente doentia, ele admite, “sério” e lampeiro, que o “efeito desestruturador do emprego” de sua política servil ao capital monopolista dos países centrais “pode restringir ao sopão 40 milhões” de brasileiros! É bem verdade que ele diz também que “não sabe”, que não é possível saber, que “não quero ser taxativo nesse ponto”, que há “muitas estimativas erradas’, se serão “16 milhões”, “32 milhões”, “40 milhões” ou mesmo “80 milhões” os “não incorporados”, os “excluídos”, os “restritos ao sopão”!
O que lhe permite prever alegadamente de consciência tranqüila semelhante catástrofe – ele, que odeia o “catastrofismo” – é que, naturalmente, não existe “alternativa” à essa política. Quer dizer: à Humanidade, atingido tão decantado nível de desenvolvimento de suas forças produtivas, não existe alternativa senão assistir calada e contente ao massacre, ao extermínio, ao genocídio de seus semelhantes!
Com a linguagem adequada ao banditismo imperialista a que se submeteu de corpo e alma, Fernando Henrique diz que os empresários que ele decretou “atrasados” – isto é, todos eles, desde que não sejam meia dúzia de banqueiros ou os paquidermes monopolistas dos países centrais – “estão chiando” porque “vão dançar” (eles e seus empregados, “reduzidos ao sopão”). É mesmo?
E em benefício de quem? Do Brasil? Da Humanidade? E o que atrasa essas empresas? Quem atrasa? O critério de “atrasado” e “moderno” é realmente o mesmo em todo o mundo? E que “modernidade” é essa, que tem que conviver com legiões crescentes de miseráveis e de famintos?
Como o “sociólogo” Fernando Henrique atingiu esse grau de degeneração?
Há algum tempo, embora ridiculamente o negue, ele pediu que esquecessem o que escreveu. Agora, sentiu-se na necessidade de jurar que o que faz é o que sempre disse, e recapitulou, na entrevista, todas as suas velhas algaravias sobre o assunto.
De fato, não é de hoje que ele prega a submissão ao capital monopolista dos países centrais. Mas, há sim, alguma coisa que ele deixou para trás, que ele “esqueceu”. Enquanto suas elocubrações não haviam passado pelo crivo da prática, ele acreditava que esse caminho pudesse impulsionar o progresso econômico e o bem estar social. É a postura típica de alguém ideologicamente dividido entre os de cima – no caso, o centro imperialista – e os de baixo. Não é por acaso, entretanto, que assim que teve a oportunidade de por em prática as suas teorias, ele investiu tão incisivamente contra elas. Não foi preciso mais do que isso para que ele assumisse o caráter delas, superasse a divisão e mandasse às favas o “bem estar social”. Mas não era pra “Folha” publicar o que ele deixou escapar lá numa reunião intramuros, isso é um assunto de foro íntimo, ora!
Com a diferença que Fernando Henrique vive num país dependente, e Hitler vivia num centro imperial, o processo ocorrido com os dois é inteiramente análogo. A política e a ideologia de Hitler eram, no essencial, as dos círculos mais reacionários do capital financeiro. Mas, de origem pequeno-burguesa, ele mantinha também, fora do poder, um vínculo ideológico com essa camada social, organizou o “Partido dos Trabalhadores Alemães” – mais tarde, “Nacional Socialista” – e levava atrás de si uma malta de desocupados que acreditava em seus planos “sociais”. Assim que subiu ao poder, entretanto, ele assumiu plenamente a política do capital financeiro e passou os desocupados nas armas. Um no centro, outro na periferia, Hitler e Fernando Henrique representam exatamente os mesmos interesses: Hitler, a voracidade imperial dos monopólios; Fernando Henrique, a submissão a essa voracidade.
O capital que circula pelo mundo, que Fernando Henrique comicamente se surpreende em constatar que é um “capital familiar” – e, mais do que isso, é um capital que não prescinde e jamais prescindirá de um Estado que o assegure, garanta e promova em seu quartel, em seu centro de operações nacional – , que não existe e jamais existirá “capital em estado puro” algum, é um capital puramente especulativo, um capital de alta-rotatividade, que não participa em absolutamente nada de processo produtivo algum. É a evidência disso, e da miserabilização galopante de toda a periferia, contrariando todas as fantasias delirantes em voga até pouco tempo atrás, que está começando a deixar claro que não há “globalização” alguma (palavra que, em sua entrevista, FH vai substituindo por “mundialização”…), que não há e jamais haverá globalização alguma sob o capitalismo, sob o imperialismo; que o que existe, pelo contrário, é a acirrada intensificação das contradições interimperialistas entre os três grandes, visando a redivisão do mundo em blocos de países sob sua hegemonia. Ao mesmo tempo que pregam a destruição dos Estados nacionais da periferia, os países centrais reforçam cada vez mais os seus próprios Estados e o seu chovinismo. A “globalização” vai começando assim a ser vista como realmente é: como reles cortina de fumaça para iludir os incautos e tirar-lhes o couro. É esse crescente desmascaramento das ladainhas sobre a “globalização” que está levando os seus tristes exegetas a tentar se esconder atrás de personagens mais respeitáveis. Como observou o prof. Nilson Araújo, o infeliz “pai” do Consenso de Washington diz que nunca foi “neoliberal” (Claro que não: ele só quer acabar com o nosso Estado, mas neoliberal ele nunca foi). E, depois de terem cantado em prosa e verso o maravilhoso e tão desejado “fim do marxismo”, foi exatamente em Marx que eles foram buscar credibilidade para pespegar em suas bolorentas (Kautsky e Bernstein que o digam) churumelas. Bob Fields descobriu que Marx era um entusiasta do afastamento cada vez maior entre os produtores e a propriedade dos meios de produção, e que, como ele, adoraria viver sob a servidão imperial. Gustavo Franco, mentor intelectual do presidente da República, é, segundo seu pupilo, “puro Marx”. Todos marxistas. Mas a fantasia mais espalhafatosa foi mesmo a de FH. No seu “debut”, há muito tempo atrás, ele gostava de deixar no ar que talvez, quem sabe, tivesse alguma coisa a ver com Marx, o “método”, o “seminário”, mas nada explícito, nada comprometedor, só o indispensável para se esgueirar em águas turvas. Agora, na hora do desespero, ele cita em vão o santo nome onze vezes! Caramba! A fantasia, a camuflagem e o embuste crescem na proporção exata do reacionarismo e da subserviência!
Muito bem. E quais são as teses que o farsante, que o charlatão tentava passar então, e tenta passar ainda, por “sociologia”, por “análise de classes”, e com base nas quais ele pretende justificar toda essa covarde e repulsiva política de traição nacional, de traição à pátria, ao povo e à humanidade?
Diz ele que desde antes de 1964 “começava a haver uma associação do empresariado nacional com o capital externo”, que esse empresariado “se alia ao capital externo para não morrer”, e que portanto ele “não pode tomar o poder”, não é “capaz de fazer a revolução” (nacional). Assim, o desenvolvimento do país só pode se dar sob a dominação, sob a hegemonia do “capital externo”, o “Estado (isso quando ele achava importante o Estado), empresa estrangeira e empresa privada nacional, associados, isso muda a sociedade”, é “desenvolvimento mesmo”. FH diz que toda a luta para que o Brasil tivesse o controle de sua economia – o que evidentemente não exclui as empresas estrangeiras – “toda a luta no Brasil – Brizola, Jango, UNE – era uma coisa sem sentido”. Que “esse pessoal (a esquerda) errou tudo”, “diziam que haveria estagnação econômica”, mas o que houve foi “desenvolvimento mesmo”.
Tudo isto, que está exposto em “Dependência e Desenvolvimento na América Latina” (1967) é apenas uma vergonhosa racionalização para justificar a submissão, o mais covarde e completo esmagamento ideológico frente ao capital monopolista dos países centrais. Neste livro, FH, não por acaso, é claro, subestima inteiramente o que é dependência, suas conseqüências sobre a economia do país. Ele reduz as conseqüências da dependência quase que exclusivamente à esfera cultural. Esse não é, na verdade, um livro sobre a dependência, é uma negação da existência da dependência. Ele se recusa a ver o que é essencial: O controle da nossa economia pelo capital monopolista estrangeiro faz com que ele impeça, bloqueie, o desenvolvimento de todos os setores estrategicamente importantes, os setores de tecnologia avançada, máquinas, equipamentos e outros, de maneira a impedir que lhes façamos concorrência no mercado internacional e a nos manter na dependência da importação de seus países. Isso impede que possamos dispor dos bens de produção indispensáveis ao crescimento acelerado e nos mantêm permanentemente mais atrasados do que eles, e na dependência perpétua dos seus produtos mais avançados. A dependência é, portanto, a condenação ao subdesenvolvimento. O que FH não quer ver, tem medo de ver, é que os países não são dependentes por acaso, são dependentes porque é isso que interessa aos países centrais – ou melhor, aos monopólios dos países centrais. Nenhum país do mundo jamais se tornou e jamais se tornará desenvolvido sob a dependência. A dependência pode desenvolver o subdesenvolvimento, jamais o “desenvolvimento mesmo”.
É verdade que existia quem exagerasse e dissesse que sob a dependência não poderia haver nem mesmo expansão, só estagnação. Mas mesmo estes estavam muito mais próximos da verdade do que as fantasias mambembes, trôpegas e covardes de Fernando Henrique.
É igualmente uma tola racionalização a afirmação de que a emancipação nacional é impossível porque o “empresariado nacional se associou ao capital externo” e não quer lutar pela libertação. Isso é a mesma coisa que dizer que a luta pela emancipação nacional é prerrogativa unicamente da burguesia. Mas a emancipação, assim como a democracia, interessa muito mais ao proletariado e ao povo do que à burguesia. Se a burguesia não quisesse lutar pela emancipação nacional, isso não impediria o povo de lutar por ela e conquistá-la. E nem por isso deveríamos nos propor atingir imediatamente o socialismo – que, de resto, FH considera que “não resolve o problema” e deve ser posto definitivamente de lado – porque essa é uma transformação muito mais profunda que exige um nível de consciência e organização muito mais desenvolvido.
No entanto, essa história de que o empresariado nacional está associado ao capital estrangeiro e não pode lutar pela emancipação nacional é pura e rematada tolice, além de bajulação do capital imperialista. O imperialismo jamais poderá se associar a todas as camadas do empresariado nacional. Surgem e desaparecem centenas e milhares de empresas pequenas, médias e grandes todos os dias. O imperialismo não tem como se “associar” a todas elas. Mesmo à maioria das grandes empresas, o imperialismo não oferece hoje senão a quebradeira, a expropriação e a falência. Então é claro que os empresários podem participar tanto quanto queiram da luta pela emancipação nacional. A bem da verdade, devemos dizer que eles têm nos ajudado muito. E é claro também que uma importante parcela da economia terá que ser propriedade social, de todo o povo, para que se possa evitar o surgimento de novos cartéis e monopólios.
FH afirma ainda uma série de outras tolices, cujo único objetivo é estimular a subserviência ao imperialismo. Diz ele que “antes você tinha um capitalismo internacional que não industrializava a periferia, mas agora ele a industrializa”. Conversa fiada. Ele está é desindustrializando, como até os dados oficiais, que o HP já divulgou, demonstram. Houve um tempo que de fato industrializou – ainda que de forma subserviente e subdesenvolvida – porque a restrição do consumo gerava um excedente de capital nos países centrais, e eles exportavam esse capital. Mas agora a especulação improdutiva consome vastas parcelas desses capitais excedentes, e o fluxo de capitais ligados à produção é hoje ainda maior da periferia para o centro do que do centro para a periferia. De formas que não tem industrialização nenhuma na periferia. Isso é só alucinação do Fernando Henrique.
Diz ele que o “socialismo real faliu”. Também é conversa fiada. O que faliu foi só o socialismo burocrático, revisionista. O socialismo vai bem, obrigado, e vai ficar melhor.
Diz ainda o charlatão que “tentar alterar o modo de produzir não resolve o problema e a opção é tentar aumentar o bem-estar sem alterar o modo de produzir”. Isso é pura enrolação para diminuir o bem-estar, que é o que ele está fazendo. O que é o essencial no “modo de produzir”? As técnicas, os instrumentos de trabalho? Não, isso é muito importante, mas não é o que caracteriza o modo de produção. O que o caracteriza são as relações de propriedade desses meios de produção. Quem detém a propriedade dos meios de produção se apropria do que é produzido com eles, e domina, assim, a distribuição dos produtos, o “bem-estar”. É portanto impossível alterar substancialmente o bem-estar relativo sem alterar as relações de propriedade, o “modo de produzir”. Além do mais, o “modo de produzir” dependente já deu o que tinha que dar, está caindo de podre, fazendo água por todos os lados, e tem que ser detonado.
Por último, a história de que a classe operária “está diminuindo em qualidade” é puro “marxismo vulgar” de quem associa a classe operária ao trabalho simples, não intelectual, braçal. Isso não tem nada a ver com o marxismo. Longe de diminuir, a classe operária, o proletariado é, tanto através do trabalho simples quanto do trabalho complexo, cada vez mais numeroso, açambarca cada vez mais a imensa maioria da população, e a ele pertence inexoravelmente o futuro da Humanidade, para a sua felicidade e a de todos os seres humanos – inclusive a meia dúzia de burgueses que até lá ainda não tiver se proletarizado . E o “operário de fábrica” continuará sendo, até onde a vista alcança, a sua parcela mais importante, mais organizada e mais combativa.