ELDER VIEIRA (*)
Quinta-feira passada, dia 8 de abril, fui convidado para ir ao cinema. O convite veio do Centro Popular de Cultura da União Municipal de Estudantes Secundaristas de São Paulo – o CPC da Umes. O filme: The Chase, de Arthur Penn, lançado em 1966. A tradução literal do título poderia ser A Perseguição – daí a chamada da coluna. Mas, no Brasil, ficou com o nome de Caçada Humana.
Não se avexe, pois, preclaro leitor, ou digníssima leitora: ninguém deu carreira neste escriba sensacionalista que em vossa presença digita.
Foi uma sessão virtual: a tela, meu notebook; a sala, meu escritório na Bosque da Saúde, minha casa; o ingresso, uma conexão para acessar o ambiente de exibição.
Fui convidado a ver e a debater. Fiz como fazia quando adolescente: assisti a duas sessões – a primeira, no dia anterior, solito (já que seria o debatedor, era bom dar uma espiada antes no material); a segunda, dia seguinte, com todo mundo.
São pouco mais de duas horas de filme. No elenco, Marlon Brando, Jane Fonda, Jamie Fox, Robert Redford e uma constelação de astros da época. Como argumento, a história de um fugitivo, que se evade de uma penitenciária, retorna à cidadezinha onde morava e cometia delitos, e o impacto de sua fuga nas vidas e na dinâmica social do lugarejo.
O filme é realizado em meio à conjuntura conturbada dos anos 60, marcados por grandes instabilidades nos Estados Unidos e do mundo. Eram tempos de Guerra Fria, mas quente no Vietnã; lutas de libertação nacional de colônias, e anti-imperialista nas ex-colônias; acerbo anticomunismo, ditaduras se instalando na América Latina e Ásia; lutas por direitos civis e liberdades democráticas em solo ianque; contracultura, lutas feministas, revolução sexual, confrontos raciais, literatura beatnik, hippies, estudantes, Panteras Negras, acirrada luta de classes.
O diretor Arthur Penn produz uma obra que põe a nu a essência bucaneira da elite norte-americana e o caráter violento de significativo setor da classe-média – correia de transmissão de seus desideratos políticos. O filme cava fundo no “espírito do capitalismo”, cevado na pirataria, alimentado de linchamentos, fermentado na escória moral de toda uma época histórica – espírito que se revela forte e se assanha em tempos de crise e de inevitável reação do explorados contra seus exploradores.
Arthur Penn é considerado por especialistas como o pioneiro da American New Wave hollywoodiana, tendência cinematográfica que terá como maiores expressões Steven Spielberg, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian de Palma, Michael Cimino. De minha parte, disse aos presentes à sessão de cinema do CPC da Umes que considero Penn não como pioneiro, mas precursor, ao lado de John Cassavetes, da corrente New Hollywood, como é também conhecida. Ou seja: ele propriamente não a inaugura, mas a antecede e influencia.
É que há diferenças entre o cinema de Penn e sua geração e as realizações da geração imediatamente posterior. Os primeiros bebem direto das fontes do Neorrealismo Italiano dos anos 40 e 50, e da Nouvelle Vague, da qual são contemporâneos. Os segundos tomam como fonte, ponto de partida, Penn e seus contemporâneos, mas como que diluem suas tinturas originais.
Arthur Penn lança, em 1967, Bonnie and Clyde, seu grande sucesso de bilheteria. Ali, diferente de The Chase, confere mais agilidade à narrativa, valorizando, nas sequencias, um movimento frenético – o que será a tônica das produções da nova geração e que até hoje persiste. No filme de 1966, ao contrário, ele se demora nas cenas, valoriza os diálogos, capricha nos closes, estende a noção de tempo narrativo, dando azo à apreciação e à reflexão.
Os que as duas obras têm em comum, todavia, e que marca a distância entre elas e o que será feito pelos New Waves, é que o brutalismo como linha estética não é glamourizado, mas instrumento de denúncia. Em Penn, os marginais e os marginalizados são pessoas comuns imersas e partes de um cotidiano violento, ilegítimo, injusto e irracional, fruto da exploração empreendida por uma elite dominante. Eles são mais produtos, objetos ou instrumentos do que sujeitos da violência e do reacionarismo.
Já nos ícones da New Wave, ocorre o inverso: a violência é glamourizada, estetizada; marginal e marginalizados passam a sujeitos da violência; as raízes da violência – a exploração e a opressão – são dissolvidas, quando não elididas. Expressão disso vemos em Scarface, de De Palma; em The Godfather (O Poderoso Chefão), de Coppola; em Goodfellas (Os Bons Companheiros), de Scorsese.
Martin Scorsese, aliás, dirigiu um filme que retrata bem esta passagem do cidadão imerso, objeto, parte da violência, para sujeito, legitimado e legítimo, da violência: é Taxi Driver, com Robert de Niro e Jodie Foster, em que um taxista liberta uma adolescente da prostituição por meio de uma carnificina que, em termos de brutalismo, deixa qualquer filme gun in hand no chinelo.
Em seu The Chase, como em Bonnie and Clyde, Arthur Penn faz a crítica ao classismo, ao racismo e ao machismo próprios do espírito reacionário das elites dos EUA. Não emoldura a guerra e a violência num hiper-realismo estetizado que obnubila o senso crítico. Antes, usa elementos do Neorrealismo de Rosselini e Visconti e da Nouvelle Vague de Truffaut e Godard para impressionar, expressar e fazer pensar. Coloca um xerife, Marlon Brando, como a consciência, razão da cidade – razão que, vilipendiada, espancada, reconhece-se impotente ante o irracionalismo de seus concidadãos e abandona o lugar.
Qualquer semelhança com o Brasil do segundo decênio do século 21 não é mera coincidência. Esse foi o debate.
(*) Escritor, autor de Os Anos Verdes de Lindaura (e-book, Editora Serra Azul).
Texto publicado originalmente no Portal Vermelho.