ELDER VIEIRA (*)
Enrolada a última bandeira, carregada a caminhonete, Genaro Bonaforte se instala na boleia e dá ordem de partida. Ia distribuir flâmulas no 1º de Maio.
Ainda rareavam os trabalhadores na praça. Barracas de pão com linguiça e de garapa ladeavam-na. A matriz erguia sua sombra de fé num dos extremos. No outro, a estátua do libertador confrontava a casa do criador. Ao centro, o marco zero fazia as vezes de rosa dos ventos – cardápio em mandala de rumos incalculáveis.
Genaro mandou estacionar. Chamou camaradas para o descarrego. Cada um pegava um feixe para distribuir aos demais. Bandeira pra lá, documento de identidade pra cá, um e muitos saiam pela praça drapejando o pano vermelho.
Num átimo, o que era pouco virou multidão. No palanque, armado na porta da sé do senhor, parafernálias de todo o tipo garantiam que todos pudessem ouvir os oradores. Grupos musicais e cantores se revezavam no palco desde cedo. Entre uma e outra apresentação, o mestre de cerimônias lia mensagens, anunciava categorias e sindicatos, chamava a atenção para uma criança perdida ou carro mal estacionado.
Começa o ato. Peões tomam o tablado. Mãos calosas empunham o microfone. Sons guturais, ora de ira, ora de ironia, enchem os ouvidos da assistência. Vozes femininas, claras, fabris, campesinas, domésticas, estuavam-se na praça, reclamando pão e salário, respeito à dignidade, e os direitos de quem, de seu, só tem a si e sua força, mas que tudo cria e dá quase de graça.
A polícia chega. Primeiro ronda, sondando terreno, posicionando seus contingentes ostensivos, interditando rotas de fuga. Agentes à paisana, já infiltrados no meio do povo, gritam provocações, proclamam aos quatro ventos o epíteto “pelego”, clamam pelo uso das armas, provocam tumultos. É a deixa. A cavalaria investe. Os destacamentos se movem promovendo o cerco, e a tropa de choque surge de cada rua transversal que dá na praça.
Bandeiras viram armas. Limpas da flâmula, sobram porretes. Numa ação coordenada, grupos de trabalhadores resistem aos cassetetes e escudos. Enquanto a batalha ganha em desdobramento, o comando do ato força furos no cerco. Uma profusão de bolas de gude é lançada sob as patas dos cavalos. Centauros tombam, soldados perdem seus escudos.
Bombas de gás são lançadas no meio da massa. Trabalhadores chutam-nas de volta. Pedras portuguesas são arrancadas do calçamento para tornarem-se projéteis. Mais de um meganha aparece de cabeça sangrando. Dezenas de operários ostentam ferimentos e hematomas.
A batalha termina com a dispersão do ato e a prisão de lideranças. Dia seguinte, inúmeras assembleias sindicais decretam paralisação do trabalho por tempo indeterminado. As máquinas param, serviços são suspensos, o comércio fecha as portas, e as ruas são tomadas.
Greve. Greve Geral.
Estudantes, donas de casa, intelectuais, merceeiros, cantoras, feirantes, sambistas, atrizes, profissionais liberais, trabalhadores autônomos, office-boys, ambulantes, profissionais do sexo, subempregados, desempregados – todos aderem à greve. Paredes e muros amanhecem pichados. Panos vermelhos são pendurados em janelas e sacadas. O fundo de greve é acionado. Famílias são atendidas por brigadas de voluntários. Tudo vige em Estado de Resistência.
Patrões desesperados pressionam o governo. Pedem mais polícia, peticionam pela ilegalidade da greve, soltam seus capangas no meio das procissões de protesto, chaveiam suas posses e suas filhas. Temem pelo pior, senhor presidente.
A repressão não surte efeito. O judiciário vê seus atos ignorados. Os trabalhadores, teimosos, resistem.
As reivindicações são, em parte, atendidas. As lideranças, liberadas. O corte dos dias trabalhados é reposto. As demissões, na maioria, são revertidas. O 1º de Maio vence.
Genaro rememora estes fatos sentado diante da TV. Encanecido, e um tanto enojado, assiste ao noticiário, que chama de “Dia do Trabalho” o que é Dia do Trabalhador. A diferença é sutil, mas enorme. “Dia do Trabalho” é dia do patrão encher de folha nariz de peão. Dia do Trabalhador é dia de luta, cáspita!
Desliga o aparelho. Chama o neto para que lhe franqueie acesso ao computador. Na página do sindicato lê: “1º de Maio Unificado das Centrais – Vacina, Trabalho e Pão”. Inteira-se de horários e atividades. Vai ao quartinho do fundo de seu apê na Cohab e, de lá, desentoca a bandeira. Estende-a na parede do quarto do neto. Ajeita a webcâmara. Senta-se diante do notebook e espera. A praça, hoje, é o mundo.
(*) Escritor, autor de Os Anos Verdes de Lindaura (e-book, Editora Serra Azul), gestor e servidor público. É militante comunista desde 1983. Conto publicado originalmente no Portal Vermelho.