Em 4 de maio de 2020, ainda no começo da pandemia, o Brasil perdeu um dos seus maiores compositores. Aos 73 anos, partiu o poeta Aldir Blanc, autor de algumas das principais músicas brasileiras. Ele foi uma das vítimas da Covid-19, mesmo tendo lutado firmemente contra a doença que causou essa tragédia no Brasil.
Em entrevista à Hora do Povo, o maestro Marcus Vinicius de Andrade, presidente da Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes (AMAR-SOMBRÁS), relembra os 48 anos de amizade com o compositor e o engajamento de Aldir nas lutas culturais e democráticas que marcaram a sua vida.
Na próxima sexta-feira (7), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) realizará um evento com artistas e militantes do setor cultural para celebrar o legado de Aldir Blanc. A live, que acontece a partir das 20 horas, poderá ser acompanhada na página do PCdoB-SP no Facebook.
Para o maestro, “Aldir sempre foi um intransigente defensor dos princípios da AMAR, como a independência dos criadores frente aos grandes conglomerados editoriais e discográficos, a defesa da liberdade de organização e pensamento contra qualquer forma de censura ou controle oficial, a recusa à tutela dos criadores pelo poder econômico, a luta pela garantia de maior espaço na mídia para a cultura brasileira e para os artistas novos e independentes, a autonomia para autores e artistas gerirem as próprias carreiras e estabelecerem as condições para o uso de suas criações, a defesa da diversidade cultural, a administração das entidades autorais apenas por criadores pessoas-físicas, etc”.
“Mais que isso, Aldir teve um papel importante na história da AMAR ao defender que, em lugar de dedicar-se apenas às questões de classe ou exclusivamente corporativas, a associação deveria também somar-se às demandas da sociedade brasileira”.
Veja a íntegra da entrevista:
HORA DO POVO: Há um ano, perdemos o compositor Aldir Blanc para a pandemia de Covid-19. Qual é o sentimento de ter de despedir de um amigo do tamanho de Aldir nesta situação?
MARCUS VINÍCIUS: É muito mais que um sentimento de perda. Aldir não era, para mim, apenas um grande companheiro de música e de lutas culturais e democráticas. Mais que isso, ele era um amigo, só que amigo há 48 anos, o que não é pouco, convenhamos. E esses 48 anos de amizade transcorreram num dos períodos mais tensos e significativos da história contemporânea brasileira, aquele da luta pelo fim da ditadura militar, da conquista da redemocratização, do entusiasmo com o poder civil e que hoje deságua na atual decepção protofascista, que esperamos não seja a reta final do sonho Brasil, do nosso projeto de Nação.
Por mais difícil que seja dizer isso, Aldir não mereceria estar vivo para ver essa violenta Era da Mediocridade hoje instalada no país, promovida por milícias bíblicas ou não, por imbecilidades que perderam a modéstia (como diria Umberto Eco) e por insignificâncias outras de diversos matizes. Ele não aguentaria ver isso.
Conheci o Aldir em 1972, através de meu querido parceiro Maurício Tapajós, junto a outros companheiros de geração, todos lutadores da MPB, como Hermínio Bello de Carvalho, Elis Regina, Paulo César Pinheiro, Chico, Caetano, Tom, Vitor Martins, Nei Lopes, MPB-4, Sérgio Ricardo, João Bosco, Ivan Lins, Fernando Brant, eu mesmo e muitos outros, que formamos a “linha de frente” da antiga SOMBRÁS (Sociedade Musical Brasileira), cuja bandeira de luta continua hoje nas mãos da nossa principal associação de classe, a AMAR.
HP: Aldir era associado da AMAR/SOMBRÁS e um importante defensor do direito dos artistas e de suas obras. Quais as contribuições dadas por Aldir neste sentido?
MV: Aldir não foi só um participante da SOMBRÁS, foi um de seus líderes mais ativos e, depois, um dos fundadores da AMAR, da qual foi diretor até há pouco. Ele não era um associado da AMAR, ele continua sendo, pois seu repertório e seus direitos autorais continuam a ser administrados pela AMAR e tratados com imensa dedicação pelos que hoje dirigem a associação. Como membro da AMAR, Aldir sempre foi um intransigente defensor dos princípios da entidade, como a independência dos criadores frente aos grandes conglomerados editoriais e discográficos, a defesa da liberdade de organização e pensamento contra qualquer forma de censura ou controle oficial, a recusa à tutela dos criadores pelo poder econômico, a luta pela garantia de maior espaço na mídia para a cultura brasileira e para os artistas novos e independentes, a autonomia para autores e artistas gerirem as próprias carreiras e estabelecerem as condições para o uso de suas criações, a defesa da diversidade cultural, a administração das entidades autorais apenas por criadores pessoas-físicas, etc.
Mais que isso, Aldir teve um papel importante na história da AMAR ao defender que, em lugar de dedicar-se apenas às questões de classe ou exclusivamente corporativas, a associação deveria também somar-se às demandas da sociedade brasileira, razão pela qual a AMAR esteve presente, desde a primeira hora, às lutas do Povo Brasileiro pela libertação dos presos políticos, pela Anistia, pelas Diretas-Já, pela Constituinte, etc. Aliás, uma das primeiras publicações internas da AMAR, no começo dos anos 80, era um jornal editado pelo Nei Lopes e chamado Direitos Já!, por sinal um título que vem reaparecendo em publicações atuais de sindicatos e órgãos de classe que lutam contra o bolsonarismo.
HP: Em 2020, o Congresso aprovou a Lei de apoio ao setor cultural durante a pandemia e que foi intitulada, a partir da proposta da deputada Jandira Feghali como “Lei Aldir Blanc”, em homenagem ao artista. Como você vê essa homenagem?
MV: Vejo com muito bons olhos e aplaudo toda iniciativa que vise celebrar o Aldir, que merece todas as homenagens e quantas mais venham. Expresso todo meu apoio à deputada Jandira Feghali, que sempre foi uma batalhadora pela cultura brasileira e por seus artistas e criadores, como sabemos. Mas acho que devemos estar atentos para impedir que setores desse desgoverno que aí está queiram parasitar ou mesmo vampirizar o nome do Aldir, incluindo-o em projetos permanentes de sua gestão culturófoba só para se aproveitarem da respeitabilidade que ele tem. Isso não dá para aceitar. Aldir não combina com Bozo, talento e cultura não ornam com autoritarismo e mediocridade.
HP: Qual a sua avaliação da situação dos artistas e do setor cultural para o próximo período?
MV: A situação dos artistas e do setor cultural é a pior das últimas décadas, não vejo como ela possa melhorar se persistirmos no atual quadro político. Não há saída possível em meio a isso que tá aí.
HP: É necessária a prorrogação da Lei Aldir Blanc?
MV: Sim, enquanto durar a pandemia. Essa lei é uma medida emergencial, nada mais que isso. Num quadro de retorno à normalidade, já temos dispositivos adequados (que podem ser aperfeiçoados ainda mais) para o fomento à cultura.
HP: Que outras medidas são necessárias para a classe artística brasileira?
MV: Muitas medidas pontuais podem ser cogitadas, mas isso é assunto para outra e outras matérias. Para resumir, eu diria que precisaríamos mesmo é de uma coisa só: ter uma Política Pública de Cultura, sólida, consistente e digna desse nome. Sem midiatismo nem perfumaria. Ligada à Educação, principalmente. E também ao combate à fome, pois isso é urgente. Pão também é Cultura!