De todos os inúmeros artistas brasileiros mortos pela Covid desde que a pandemia eclodiu, no início do ano passado, talvez a perda do compositor Nelson Sargento, nesta quinta-feira (27), aos 96 anos, seja a mais significativa, porque ele era o último grande artista de uma geração de ouro do samba.
Nelson foi contemporâneo de Nelson Cavaquinho, Cartola, Noel Rosa, Zé Kéti, Ismael Silva, Donga, Geraldo Pereira e Carlos Cachaça – seu primeiro parceiro -, só para citar alguns nomes nascidos nas três primeiras décadas do século passado que consolidaram o samba como a mais importante expressão da nossa cultura popular.
Não à toa, Nelson Sargento era chamado de baluarte, e foi homenageado por outro grande artista brasileiro também morto pela Covid, o compositor Aldir Blanc, nos versos de “Flores em Vida” (em parceria com Moacyr Luz): “Ele é um samba de quadra da Mangueira/ Que Deus Letrou/ Dá aula sobre a cidade/ E nessa universidade/ É o reitor”.
Poderíamos aqui apenas escrever essa matéria citando os versos de Aldir e Moacyr Luz, que discorrem sobre “despedida”, “flores em vida”, sobre “outro Nelson” (em referência a Nelson Cavaquinho), e chamam Nelson Sargento de “guerreiro negro dos Palmares” e ainda de “Mestre Sala dos Mares”, ao juntarem, em uma, digamos, artimanha poética, a representação de outra música – essa de Aldir com João Bosco -, à figura do nosso herói negro, o marinheiro João Cândido.
Tudo para falar de uma das características musicais que marcaram Nelson Sargento, o humor e a ironia fina, presente em “Falso Amor Sincero”, uma das músicas mais deliciosas do sambista, que nessa linha também compôs “Idioma Esquisito” e “Roubaram a Minha Mulher”.
Dizem Aldir e Luz: “Se a paixão do momento engana que é bonita/ O Nelson Sargento diz que acredita/ Essa é a grandeza que o samba nos legou:/ Em cada tristeza erguer nosso corpo ao humor/ Se o riso é mais do que cansaço/ Mangueira cabe em nosso abraço/ E toda a dor deste mundo enfeita nossa fantasia…”
Mas, além do humor, Nelson Sargento é autor de cerca de 400 músicas, entre alguns sambas memoráveis como “Cântico à Natureza (Primavera)”, “Homenagem ao Mestre Cartola”, “Deixa”, “Ciúme Doentio”, em parceria com Cartola, e talvez o mais conhecido de todos, “Agoniza mas não Morre”, uma ode à resistência do samba, ou ainda “Encanto da Paisagem”, onde faz críticas tão atuais, como nos versos:
“Morro, pés descalços na ladeira/ Lata d’água na cabeça/ Vida rude alvissareira/ Crianças sem futuro e sem escola/ Se não der sorte na bola/ Vai sofrer a vida inteira…” (…) “Morro, és lindo quando o sol desponta/ E as mazelas vão por conta do desajuste social”.
Como afirmou em uma entrevista: “a escola de samba é uma fonte de denúncias sociais. É a função do artista e da música fazer denúncia”.
Em sua longa carreira, Nelson Sargento foi indicado ao Grammy Latino, em 2001, como melhor álbum de samba com o CD “Flores em Vida”, protagonizou o curta-documentário “Nelson Sargento da Mangueira”, de Estevão Pantoja, que ganhou vários prêmios e deu a Nelson o Kikito, em Gramado, pela melhor trilha sonora, e gravou quatro discos individuais no Japão, entre outras premiações e homenagens.
Além de ser um artista de múltiplas facetas – Nelson escreveu livros, se dedicava à pintura e fez participações como ator em filmes e séries -, ele integrou espetáculos e grupos musicais que foram um divisor de águas na cultura brasileira na década de 60, como a montagem de “Rosa de Ouro” – dirigido por Hermínio Bello de Carvalho -, espetáculo que resgatou e valorizou a nossa cultura popular ao promover nomes como Clementina de Jesus, Zé Kéti, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Anescarzinho do Salgueiro, Jair Cavaquinho e o próprio Nelson; e fez parte do conjunto Voz do Morro e do grupo Os Cinco Crioulos, também pioneiros em revelar para a “cidade” a riquíssima produção artística das favelas e morros cariocas.
MANGUEIRA
Integrante da Velha-Guarda da Mangueira e presidente de honra da escola, a história de Nelson Sargento com a Estação Primeira começou quando ele foi morar no morro, ainda menino, após sair do Morro do Salgueiro, onde vivia com a mãe, Rosa Maria da Conceição, que era lavadeira e empregada doméstica.
Lá, adotado pelo compositor Alfredo Português, aprendeu a tocar violão e passou a conviver com nomes como Cartola, Nelson Cavaquinho e Carlos Cachaça, compôs seus primeiros sambas e logo passou a integrar a ala de compositores da escola.
De sargento, Nelson não tinha nada, apenas o apelido, desde quando alcançou a patente no Exército, onde permaneceu por apenas quatro anos.
No desfile da Mangueira, em 2019, quando a escola homenageou grandes figuras e heróis da nossa História e conquistou o título de campeã, coube a Nelson Sargento representar um dos personagens mais importantes do desfile, Zumbi dos Palmares, que ele encarnou majestosamente na Marquês de Sapucaí. Agora vai encontrar Zumbi e tantos outros que colorem o céu do autêntico Verde e Amarelo, e no dia de hoje, por que não, de muito Verde e Rosa.
ANA LÚCIA