Os recentes acontecimentos na área militar, nos quais Bolsonaro afrontou o comando do Exército, sua disciplina e a tradição nacional estabelecida a partir de Caxias, lançam uma luz retroativa nas sombras que ainda, em parte, envolvem sua carreira de 15 anos dentro da instituição.
Por que tanta hostilidade ao Exército, a ponto de impor a ele a não punição de um medíocre oficial de intendência que ele mesmo, Bolsonaro, colocou, com resultados desastrosos, no Ministério da Saúde – e, depois, em um palanque político?
Entre outras coisas, como veremos, porque o Exército é um representante da sociedade – é o que significa dizer que constitui “uma instituição de Estado”, ou seja, do Brasil –, enquanto Bolsonaro é um elemento antissocial, por consequência, antinacional.
Daí, inclusive, seus problemas quando estava dentro do Exército, como oficial da ativa – problemas que fizeram com que ele cevasse um ressentimento, um rancor em relação a ele, especialmente em relação aos seus altos mandos, que transborda pelos seus poros.
Não existe Exército sem vida coletiva. E que sujeito mais avesso a qualquer vida coletiva do que Bolsonaro?
Certamente que esses aspectos psicológicos estão, na vida, ligados à propensão política (isto é, ditatorial) de Bolsonaro – querer submeter a tudo e a todos, ao mesmo tempo que se submete a alguns inimigos do país, é o resumo da política de Bolsonaro, isto é, do seu fascismo, que é canhestro até como fascismo.
Disse o general Santos Cruz sobre o ato de indisciplina que Bolsonaro fez Pazuello – figura insignificante, exceto como serviçal, o que deve ser a insignificância da insignificância – cometer, que “houve um ataque frontal à disciplina e à hierarquia, princípios fundamentais à profissão militar. Mais um movimento coerente com a conduta do Presidente da República e com seu projeto pessoal de poder. A cada dia ele avança mais um passo na erosão das instituições. (…) Desrespeito ao Exército, ao povo e ao Brasil”.
Entretanto, disse Bolsonaro em sua “live” – no mesmo dia em que o Comando do Exército anunciou que Pazuello não seria punido por participar de manifestação política, ferindo o Estatuto dos Militares e o Regimento Disciplinar do Exército – que é normal, na instituição militar, alguém não ser punido por cometer alguma transgressão: “Isso é comum acontecer”, disse ele.
Não, não é “comum”.
Tanto é assim que, depois de dizer isso, como todos sabem que ele, Bolsonaro, foi punido severamente quando era militar da ativa – entre outras coisas, por manifestar-se politicamente contra os seus superiores -, acrescentou, na “live”, que fora punido pela publicação de um artigo na revista “Veja”, com 15 dias de prisão.
Bolsonaro omitiu que, um ano após a publicação desse artigo – e a consequente punição – ele foi submetido a Conselho de Justificação pelo plano (denominado “Operação Beco Sem Saída”) de explodir bombas de baixa potência na Vila Militar, na AMAN e outros prédios militares, com o intuito de desmoralizar o então ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. Era assim que Bolsonaro pretendia fazer campanha pelo aumento dos salários de militares.
[O Conselho de Justificação é uma instância das Forças Armadas que julga se um militar está capacitado para continuar na Força – ou não. No caso de Bolsonaro, a decisão foi unânime: 3 a 0 pela exclusão, não somente devido ao plano das bombas, mas por ter mentido aos superiores e colegas, e por ter servido de fonte para a imprensa sobre questões internas.]
O leitor poderá consultar um resumo desses acontecimentos em nossa edição de 16 de agosto de 2018: Terrorismo de baixa potência.
Porém, um ano depois da nossa matéria, em 2019, Luiz Maklouf Carvalho, um dos maiores repórteres brasileiros, publicou o livro “O Cadete e o Capitão – A vida de Jair Bolsonaro no quartel” (Ed. Todavia, S. Paulo, 2019).
Maklouf, infelizmente, faleceu alguns meses após o lançamento do livro.
Mas seu trabalho é excelente – e exaustivo, quanto à documentação. Além disso, o autor procurou entrevistar todos as pessoas que aparecem nos documentos referentes ao oficial Jair Messias Bolsonaro. Só não entrevistou, naturalmente, aqueles que se recusaram a ser entrevistados – e aqueles que já não pertenciam a este mundo.
Temos, ali, nesse livro que recomendamos aos nossos leitores, um retrato de alma (?!) inteira – ou quase inteira, pois sempre escapa alguma coisa – de Bolsonaro, ainda nos tempos em que frequentava a caserna.
Os documentos aqui citados, exceto aqueles que já mencionamos em nosso artigo de 2018, e aqueles com outra origem explícita, têm como fonte o livro de Maklouf.
Comecemos pela pergunta mais geral e mais óbvia.
Quem era Bolsonaro no quartel?
O general Ernesto Geisel, ex-presidente da República da época da ditadura, deu a sua opinião, na entrevista que concedeu, em 1997, aos pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas:
“Neste momento em que estamos aqui conversando, há muitos dizendo: ‘Temos que dar um golpe! Temos que derrubar o presidente! Temos que voltar à ditadura militar!’ E não é só o Bolsonaro, não! Tem muita gente no meio civil que está pensando assim. Quantos vêm falar comigo, me amolar com esse negócio: ‘Quando é que o Exército vai dar o golpe? O senhor tem que agir, é preciso voltar!’ São as vivandeiras.
(…)
“Tenho a impressão de que, à medida que o país se desenvolve, essa interferência vai diminuindo. Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar” (cf. “Ernesto Geisel”, orgs. Maria Celina D’Araújo e Celso Castro, 3ª edição, Rio, FGV, 1997, pp. 111, 112 e 113, grifos nossos).
ARROZ, MELANCIAS E…
Esse trecho do general Geisel foi muito citado nos últimos anos.
Mas o que ele significa?
Significa que Geisel considerava que Bolsonaro agira contra o próprio Exército e a instituição militar em geral.
Pois é isso o que um bom militar – como era o conceito de Geisel – considera que é um “mau militar”.
Resta saber se Geisel tinha razão.
Ou, fazendo a pergunta de outra forma: foi somente a partir do artigo publicado em “Veja” (edição nº 939, de 3 de setembro de 1986) – e, no ano seguinte, com as bombas de baixo teor explosivo da “Operação Beco Sem Saída” – que Bolsonaro se tornou um “mau militar”?
Antes disso, ele era um militar impecável?
A documentação reunida por Luiz Maklouf Carvalho mostra que não.
Aliás, apesar de Bolsonaro não ser fácil de derrotar (se fosse, já estaríamos livre dele), desde cedo, a julgar por certas informações – e, sobretudo, por certas mentiras – os sinais de que estamos diante de um sociopata, uma personalidade antissocial (portanto, antinacional, antidemocrática, antipopular e anti-humana) parecem precoces (para um quadro mais atual, v., por exemplo, HP 29/09/2018, O falso defensor da família (e alguns negócios esquisitos); e HP 25/03/2020, O transtorno mental de Bolsonaro).
Hoje, nos concentraremos em apenas uma questão: na viagem que fez, em 1983, a uma região de garimpo, na Bahia.
Bolsonaro era oficial da ativa. Não podia, portanto, dedicar-se ao garimpo nem comerciar minérios, pela lei.
Ele já havia, antes, tentado cultivar arroz e melancias, quando servia em Nioaque, Mato Grosso do Sul, de 1979 a 1981.
Porém, mais grave, sobre essa época, é uma denúncia “anexada aos relatórios secretos do SNI e do Centro de Informações do Exército (CIEx)” (cf. Maklouf, op. cit., p. 47).
Trata-se de uma carta, onde está o trecho:
“Ao invés de fazer croquis de bombas [referência às denúncias de Veja em 1987], escreve quantas vezes você foi ao Paraguai trazer muamba, e sobre os seus problemas no Mato Grosso” (idem, p. 48).
Trechos mais amplos dessa carta foram incluídos no dossiê do Ministério do Exército sobre Bolsonaro, elaborado em 1990 (v. Documentos Revelados, Prontuário e Dossiê completo, sobre Jair Bolsonaro, emitido pelo Centro de Informações do Exército); v., também, Vinícius Segalla e Thaís Reis, “Canalha”, “covarde”, “contrabandista”: a reputação de Bolsonaro nos relatórios do Exército, DCM, 05/04/2019).
Em seu livro, Maklouf é prudente. Como não encontrou provas da atividade de Bolsonaro, que servia na fronteira com o Paraguai, como contrabandista, o repórter anota: “Outra referência sobre a temporada de Bolsonaro em Nioaque deve ser vista com cautela, por ser fruto de uma carta anônima surgida na época do processo de 1987 e anexada aos relatórios secretos do SNI e do Centro de Informações do Exército (CIEx)” (op. cit., p. 47).
Provavelmente, o repórter está certo em assim considerar, pois a carta desce a um nível muito próximo ao que o país conheceria no próprio Bolsonaro, somente que com este (e família) como alvo – e sem apresentar prova.
Entretanto, como dizem Vinícius Segalla e Thaís Reis, o Dossiê do Ministério do Exército é uma prova de que a reputação de Bolsonaro, no comando militar, era péssima.
Sem dúvida – embora, a data do Dossiê mostra que isso se deu dois anos após a saída de Bolsonaro do Exército.
EXCESSIVA AMBIÇÃO
A outra questão – a do garimpo na Bahia – é mais indiscutível. E, por outro lado, acaba colocando uma dúvida razoável também sobre as atividades de Bolsonaro em Nioaque.
Pois é uma avaliação da personalidade de Bolsonaro, feita por ninguém menos que o comandante do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista (GAC/PQDT), coronel Carlos Alberto Pellegrino, comandante do então tenente Bolsonaro.
Sigamos o livro de Luiz Maklouf Carvalho:
“Nas férias, [Bolsonaro] fez uma viagem a uma região de garimpo (…). O coronel Pellegrino registrou, na parte “C” da ficha de informações de Bolsonaro:
“Deu mostras de imaturidade ao ser atraído por empreendimento de ‘garimpo de ouro’. Necessita ser colocado em funções que exijam esforço e dedicação, a fim de reorientar sua carreira. Deu demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente” (cf. op. cit., p. 51, grifos nossos).
O coronel Pellegrino era – e ainda é – um oficial respeitado no Exército. E, pelo visto, alguém muito perceptivo. Pois conseguiu enxergar em seu subordinado aquilo que se revelaria anos depois, inclusive através da “corrupção baixo-clero”, isto é, “rachadinhas” e outros expedientes.
Entretanto, poderia ser apenas uma impressão pontual do comandante de Bolsonaro, sem outras consequências.
Não era, e não foi, o que se verificou mais de quatro anos depois, quando Bolsonaro foi submetido a uma sindicância do Exército, e, depois, a um Conselho de Justificação, devido à operação das bombas em quartéis (v., além do livro de Maklouf, nossa matéria, HP 16/08/2018,Terrorismo de baixa potência).
“No final de 1987, o coronel Pellegrino atuava como adido das Forças Armadas junto à embaixada do Brasil em Bogotá, na Colômbia. Em 5 de janeiro de 1988, o coronel Bechara Couto [presidente do Conselho de Justificação a que respondia Bolsonaro] mandou uma carta ao embaixador do Brasil na Colômbia, Álvaro da Costa Franco Filho, pedindo que ele ouvisse o adido militar Carlos Alberto Pellegrino a respeito do conceito desabonador que ele registrara sobre Bolsonaro havia mais de quatro anos. Pellegrino foi inquirido pelo embaixador na chancelaria de Bogotá em 8 de janeiro. Respondendo a perguntas formuladas na carta pelo coronel Bechara Couto, o adido militar relatou que o motivo de sua apreciação negativa tinha sido uma viagem de Bolsonaro, em gozo de dispensa para desconto em férias, a um garimpo no sul da Bahia, por ele desaconselhada.
“Afirmou que tinha ‘bem presentes’ os comentários pessoais de Bolsonaro ‘sobre lendas e histórias, sempre referentes à existência de ouro, pedras preciosas e outros valores no Vale do Ribeira, em São Paulo, como também em outras regiões do Brasil, consistindo sempre em relatos fantasiosos sobre fortunas feitas da noite para o dia’. O coronel Pellegrino contou ao embaixador Álvaro da Costa que Bolsonaro tinha contestado firmemente o conselho de não ir ao garimpo, o que o fez conhecer, ‘pela primeira vez, sua grande aspiração em poder desfrutar das comodidades que uma fortuna pudesse proporcionar’. O garimpeiro ocasional voltou ‘desiludido e frustrado’ com a viagem, de acordo com o coronel. Resolveu retratar-se, ‘reconhecendo a inutilidade do projeto pessoal, mas também confirmando sua ambição de buscar por outros meios a oportunidade de realizar sua aspiração de ser um homem rico’” (cf. Maklouf, op. cit., 103/104, grifos nossos).
Para o coronel, essa “excessiva ambição” era incompatível com a vocação e a vida militar.
Porém, o ex-comandante de Bolsonaro foi além disso na avaliação do subordinado:
“Encerrada a bateria de perguntas enviada pelo Conselho de Justificação, o coronel Pellegrino fez acréscimos por conta própria. Disse que o comportamento do então tenente Bolsonaro no segundo semestre de 1983 era ‘reflexo de sua imaturidade e a exteriorização de ambições pessoais, baseadas em irrealidades, aspirações distanciadas do alcance daqueles que pretendem progredir na carreira pelo trabalho e dedicação’. Reconheceu que Bolsonaro se saiu satisfatoriamente em funções administrativas e na preparação de exercícios, o elogiou por isso, porém acrescentou: ‘Nas rotinas de trabalho cotidiano, no exercício permanente das funções de instrutor, formador de soldados, e de comandante, faltavam-lhe a iniciativa e a criatividade’. Observou, ainda, que Bolsonaro ‘tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos’. Naquele momento, afirmou Pellegrino, seu comandado estava atraído por uma ‘confusa mescla de ambições, aspirações e valores menores’” (cf. Maklouf, op. cit., p. 104, grifos nossos).
O coronel Pellegrino conseguira perceber no tenente Bolsonaro aquilo que hoje é claro no Bolsonaro que ocupa o Palácio do Planalto.
O Exército (e, portanto, o país), para ele, era menos importante do que subir na vida – enriquecer, em uma palavra. Aliás, como se viu em Nioaque e no garimpo baiano, o Exército era encarado por Bolsonaro como um meio de subir na vida.
Aqui, não estamos distinguindo muito entre a sanha por submeter os outros – característica de personalidades antissociais – e a voracidade por enriquecer. Na descrição do coronel Pellegrino, em Bolsonaro, elas estavam indissoluvelmente imbricadas.
E, realmente, estavam.
Mas esse foi apenas o primeiro momento em que a hostilidade de Bolsonaro ao Exército – representante, para ele, nessa época, da sociedade – apareceu de modo mais ostensivo.
CARLOS LOPES
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