
“O tiro ao alvo que tem na nossa área, não tem na Zona Sul”, desabafou o pai de Kathlen
Uma ação da Polícia Militar na comunidade do Lins, na Zona Norte do Rio, nesta terça-feira (8) terminou com a morte da designer de interiores Kathlen Romeu, de 24 anos, que estava grávida de quatro meses. De acordo com moradores, ela foi vítima de uma bala perdida durante o confronto entre criminosos e policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Lins.
Em nota, a Polícia Militar informou que os agentes foram atacados a tiros por criminosos na localidade conhecida como “Beco da 14”, dando início a um confronto. Segundo a polícia, Kathlen foi encontrada ferida após a troca de tiros. Ela ainda chegou a ser levada para o Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, mas não resistiu.
A Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) investiga a morte de Kathlen. Segundo a polícia, testemunhas serão ouvidas e diligências realizadas para esclarecer todos os fatos e identificar de onde partiu o tiro que atingiu a jovem.
Foram apreendidas 21 armas (dez fuzis calibre 7.62; dois fuzis 5.56; e nove pistolas calibre .40) e cinco policiais militares que teriam participado da troca de tiros com traficantes da região já prestaram depoimento na especializada. A jovem foi atingida por um tiro de fuzil, que transfixou seu tórax, durante esse tiroteio.
“Ceifaram a vida da minha filha”
Em tom de desabafo, o pai de Kathlen, Luciano Gonçalves, ressaltou a diferença de atuação das polícias nas comunidades e nos bairros mais ricos do Rio. “As pessoas que moram na Zona Sul só conhecem as histórias da varanda, não sabem da missa metade do que acontece nas comunidades. Quando falam que tem que entrar na comunidade dando tiro… 99% das pessoas da comunidade são de bem. O tiro ao alvo que tem na nossa área, não tem na Zona Sul. Eu falava com minha mãe: meu neto vai nascer com os pais formados. Na comunidade, não tem quase ninguém formado”, lembrou Luciano.

Ainda segundo o pai, Kathlen havia deixado a comunidade meses atrás justamente por conta da violência da qual foi vítima. “Eu tirei ela de lá por causa de violência. Foram muitos episódios de violência. Há um tempo atrás morreu um menino que foi buscar guaraná para a festa da igreja e foi alvejado. Um garoto de 19 anos. Ceifaram a vida da minha filha e falaram que foi troca de tiros. Não foi. E como foi ela, poderia ser eu: uma pessoa do bem. Colocariam uma arma na minha mão e falariam que eu era bandido”.
Sayonara Fátima de Oliveira, avó de Kathlen, esperava a visita da neta durante a tarde de terça, mas terminou por ajudá-la a ser socorrida após o tiro. “Eu pedi para entrar no carro da polícia. Falei: ‘me leva, nem que seja na caçamba’. Minha neta morria de saudade de mim, queria me visitar, e eu falando para ela: ‘não vem, você pode estar passando, sair um tiro e você perdeu sua criança’. Ontem, eu permiti que ela fosse”, lamentou Sayonara. Nas redes sociais, o namorado e pai do bebê, Marcelo Ramos, também lamentou a morte e disse estar “sem chão”.
“Nunca será esquecida, meu amor. Você, a Maya/Zayon, sempre irão morar dentro de mim. Estou completamente sem chão. Às vezes é difícil entender a vontade de Deus, mas sei que você está melhor que nós. Aqui só vão ficar saudades e as lembranças de de você, a pessoa mais radiante que conheci na minha vida. Vou vencer por você. Que Deus me dê forças. Eu te amo eternamente”, escreveu ele.
Comoção nas redes sociais
Após a morte da jovem, moradores fizeram um protesto na Autoestrada Grajaú-Jacarepaguá. A via, que liga as zonas Oeste e Norte do Rio, foi fechada nos dois sentidos por volta das 16h15. O caso ganhou uma enorme repercussão e comoção nas redes sociais.
A atriz Vitória Rodrigues prestou uma homenagem à jovem. “Me vejo no riso dela e acho que por isso chorei ao ver essa foto! Chorei pelo cansaço de ver sonhos perdidos que sempre são os nossos. Katlhen Romeu morreu aos 24 anos, mais nova que eu, linda, inteligente, gerando mais uma vida linda como ela, que com certeza lutava com unhas e dentes pelo que acreditava, pra mudar sua realidade, pra que seu filho/a pudesse ter um futuro lindo e uma vida melhor que a dela. Eu sei irmã, eu sei… Infelizmente não te conheci, não sei de sua história, mas sinto agora um aperto imenso no coração, uma raiva e indignação imensa por tamanha injustiça em ver sua vida barrada de modo tão violento.
Eles ainda nos odeiam e tão fazendo de tudo pra nos barrar, a bala perdida sempre acha nossos corpos e isso é mais do que despreparo de uma polícia de um estado violento, isso se chama ‘necropolítica’ e é a única coisa que deveria ser barrada… Não a sua vida e nem a vida dos nossos!
Nós merecemos VIVER e realizar nossos sonhos, mana! Queria que você tivesse tido a chance de continuar seguindo os seus!
Que tristeza! PAREM DE NOS MATAR! Por favor! PAREM!!!!”, escreveu a atriz.
A jornalista da GloboNews, Aline Midlej, também se pronunciou e publicou um texto escrito por Helena Klang. “O nome dela era Kathlen Romeu. Uma moça que eu não conhecia. 24 anos. Estava grávida. 4 meses. Ela visitava a família. Ela morreu. Um tiro. Duas mortes. Mas não foi uma bala perdida. Porque existe um alvo. Humanos. Humanos pretos. Eu não consigo parar de pensar na Kathlen. Seu sorriso nesta foto. Ela abraçada com o pai do seu filho. Q morreu antes de nascer. A gente não pode se acostumar com isso. Não pode. Não quero. Não vou! O punhado de fuzis q a polícia recuperou na tal operação não valem a vida de Kathlen e seu bebe. Não valem a vida q eles tinham pela frente. Eu sou branca e as #vidasnegrasimportam pra mim. Sinto muito pela família dela. É triste demais. Sinto muito pela família dela. É triste demais”, publicou a apresentadora.
O Instituto Marielle Franco também lamentou a morte e pediu: “Parem de nos matar!”. “Matam nossos filhos, matam nossas mães! Kathlen Romeu, moradora do complexo do Lins e grávida de 13 semanas, foi fuzilada durante uma operação policial hoje. O Estado retirou mais uma vida negra e favelada que estava gestando outra vida. Investigação urgente!”, escreveram.
A apresentadora Astrid Fontenelle também prestou uma homenagem à jovem. “Linda!! Mais ainda porque estava grávida de 11 semanas. Verbo no passado. Mais uma , nesse caso , duas vidas interrompidas, ceifadas, roubadas pela polícia carioca. Eles chamam de ‘operação policial’. Moradores dizem que chegam atirando e saem como chegaram. Isso não é ‘operação’, é extermínio. Kathleen, descanse em PAZ”, postou Astrid.
A atriz Tais Araújo também falou sobre a morte e pediu justiça sobre o caso. “Todos os dias eu tento buscar formas de reavivar ainda mais a nossa autoestima, porque eu acredito sim que esse é um componente poderoso para fortalecer nossos jovens. Ontem mesmo eu estava ao vivo falando sobre ancestralidade e beleza, e quero muito poder narrar a negritude para além da morte e da violência que é imposta, sem ignorar os acontecimentos, claro, mas mostrando que somos muito mais do que isso. Mas é difícil continuar falando sobre beleza e futuro quando as vidas de jovens pretos estão sendo constantemente interrompidas…Que Deus conforte os corações da família de Kathlen Romeo, uma jovem modelo e designer de interiores de 24 anos, grávida de 14 semanas, morta com um tiro na cabeça durante uma operação policial no Complexo do Lins, no Rio de Janeiro. E que a Justiça seja feita”, escreveu.