Há poucos dias, lendo alguns trechos da “História da Literatura Brasileira”, de Nelson Werneck Sodré, encontrei uma observação sobre o início do romantismo em nosso país – basicamente, sobre os anos anteriores à explosão representada por Gonçalves Dias e José de Alencar:
“A grande voz da poesia romântica, nessa fase, foi, sem dúvida alguma, a de Manuel Antônio Álvares de Azevedo. Estudante, morto aos vinte anos, Álvares de Azevedo, pela sua inspiração e pelo seu sentimento, eleva a poesia brasileira, que vinha do verso medido e frio de Magalhães e de Porto Alegre, a alturas até então desconhecidas. Nem o romantismo encontrou outra figura a que desse um tão primoroso acabamento, em que atingisse expressão tão viva e característica, num meio como o nosso. Na academia, desde os primeiros dias, distinguiu-se Álvares de Azevedo pelo talento excepcional, que a todos surpreendia. Ninguém como ele serviu tão nitidamente para marcar o contraste entre as manifestações românticas, trazidas nos livros franceses, e a estreiteza do ambiente brasileiro, com todas as cores coloniais presentes, apenas disfarçadas na superfície, naqueles primeiros decênios de vida autônoma, inclusive pelo funcionamento dos cursos jurídicos. E o meio estudantil, numa cidade provinciana como S. Paulo, procurava afeiçoar-se aos modelos distantes, que os poetas preferidos transmitiam e que algumas inteligências privilegiadas recebiam e divulgavam, no esforço de emprestar grandeza e colorido ao apagado burgo paulistano.
“Um estudo acurado da obra de Álvares de Azevedo mostrará, muito ao contrário do que têm dito alguns, e com evidente impropriedade, que a grandeza do seu estro não proveio de uma espécie de predestinação. Estudante, o autor da Lira dos Vinte Anos distinguiu-se pela aplicação, não só ao curso como à poesia. Percorreu os grandes poetas de seu tempo e, quando os mencionou, em poesia, é que os havia lido e relido. Muito mais extravagante na prosa, em que deu vazão a todos os descomedimentos da escola, ungiu os seus versos de simplicidade e de calor, de inspiração direta, colocando neles aquilo que o cercava e aquilo que estimava. E nem teve os olhos fechados e surdos os ouvidos para os problemas de sua terra e de sua gente. Conjugou, assim, como grande poeta que foi, a forma delicada e segura com os motivos, que acolheu em torno de si. O melhor de Álvares de Azevedo, aquilo que atravessará o tempo, está, sem dúvida, nos versos de tristeza e de prematura saudade, nos presságios da morte, em tudo o que a sua apurada sensibilidade deixou transparecer e a que emprestou, além da técnica da métrica, o calor da participação. Conhecido apenas dos companheiros de estudo, Álvares de Azevedo só teve suas poesias reunidas em livro após sua morte, quando encontraram a divulgação tão ampla quanto era possível no meio brasileiro da metade do século XIX” (Nelson Werneck Sodré, História da Literatura Brasileira, 7ª edição, Difel, S. Paulo, 1982, pp. 220-221, grifo nosso).
A observação de Nelson Werneck Sodré fez com que relêssemos Álvares de Azevedo e alguns escritos sobre ele.
Aqui, apresentamos seu poema sobre Pedro Ivo, datado de novembro de 1850, quando o herói da Revolução Praieira, que aceitara a proposta de anistia, fora traído pelo Império e estava sob ameaça de execução.
É notável, neste poema, como é claro, para Álvares de Azevedo, onde residem os problemas fundamentais do país – e, portanto, as origens da Revolução Praieira: na dependência à Inglaterra (“Vêde — a pátria ao Bretão ajoelhou-se,/ Beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se!/ Eles a prostituirão!”).
Trata-se de um poema que influenciou profundamente Castro Alves, que usou alguns de seus versos como epígrafe para seu próprio poema em homenagem a Pedro Ivo.
Após o poema, à guisa de posfácio, reproduzimos a apreciação do crítico Machado de Assis sobre a obra de Álvares de Azevedo.
Como ressaltam tanto Nelson Werneck quanto Machado, o poeta faleceu antes dos 21 anos. Sua obra – inclusive seu conhecimento dos poetas românticos alemães, franceses e ingleses – é, portanto, extraordinário.
Além disso, quantos versos existem, na literatura brasileira, mais belos do que aquele com que inicia um de seus mais conhecidos poemas: “As ondas são anjos que dormem no mar”?
C.L.
Pedro Ivo
ÁLVARES DE AZEVEDO
Perdoai-lhe, Senhor! ele era um bravo!
Fazia as faces descorar do escravo
Quando ao sol da batalha a fronte erguia,
E o corsel gotejante de suor
Entre sangue e cadáveres corria!
O gênio das pelejas parecia…
Perdoai-lhe, Senhor!
Onde mais vivo em peito mais valente
Num coração mais livre o sangue ardente
Ao fervor desta América bulhava?
Era um leão sangrento que rugia:
Da guerra nos clarins se embriagava —
E vossa gente — pálida recuava —
Quando ele aparecia!
Era filho do povo — o sangue ardente
Às faces lhe assomava incandescente,
Quando cismava do Brasil na sina…
Ontem — era o estrangeiro que zombava,
Amanhã — era a lâmina assassina,
No cadafalso a vil carnificina
Que em sangue jubilava!
Era medonho o rubro pesadelo!
Mas nas frontes venais do gênio o selo
Gravaria o anátema da história!
Dos filhos da nação a rubra espada
No sangue impuro da facção inglória
Lavaria dos livres na vitória
A mancha profanada!
A fronte envolta em folhas de loureiro
Não a escondemos, não!… Era um guerreiro!
Despiu por uma ideia a sua espada!
Alma cheia de fogo e mocidade,
Que ante a fúria dos reis não se acobarda,
Sonhava nesta geração bastarda
Glórias.. e liberdade!
Tinha sede de vida e de futuro;
Da liberdade ao sol curvou-se puro
E beijou-lhe a bandeira sublimada:
Amou-a como a Deus, e mais que a vida!
Perdão para essa fronte laureada!
Não lanceis à matilha ensanguentada
A águia nunca vencida!
Perdoai-lhe, Senhor! Quando na história
Vedes os reis se coroar de glória,
Não é quando no sangue os tronos lavam
E envoltos no seu manto prostituto
Olvidam-se das glórias que sonhavam!
Para esses — maldição! que o leito cavam
Em lodaçal corrupto!
Nem sangue de Ratcliffs o fogo apaga
Que as frontes populares embriaga,
Nem do herói a cabeça decepada
Imunda, envolta em pó, no chão da praça,
Contraída, amarela, ensanguentada,
Assusta a multidão que ardente brada
E tronos despedaça!
O cadáver sem bênçãos, insepulto,
Lançado aos corvos do hervaçal inculto,
A fronte varonil do fuzilado,
Ao sono imperial co′os lábios frios
Podem passar no escárnio desbotado,
Ensanguentar-te a seda ao cortinado
E rir-te aos calafrios!
Não escuteis essa facção ímpia
Que vos repete a sua rebeldia…
Como o verme no chão da tumba escura
Convulsa-se da treva no mistério:
Como o vento do inferno em agua impura,
Com a boca maldita vos murmura:
“Morra! salvai o império!”
Sim, o império salvai; mas não com sangue!
Vede — a pátria debruça o peito exangue
Onde essa turba corvejou, cevou-se!
Nas glórias, no passado eles cuspirão!
Vede — a pátria ao Bretão ajoelhou-se,
Beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se!
Eles a prostituirão!
Malditos! do presente na ruína
Como torpe, despida Messalina,
Aos apertos infames do estrangeiro
Traficam dessa mãe que os embalou!
Almas descridas do sonhar primeiro
Venderiam o beijo derradeiro
Da virgem que os amou!
Perdoai-lhe, Senhor! nunca vencido,
Se em ferros o lançaram foi traído!
Como o Árabe além no seu deserto,
Como o cervo no páramo das relvas,
Ninguém os trilhos lhe seguira ao perto
No murmúrio das selvas!
Perdão! por vosso pai! que era valente,
Que se batia ao sol co′a face ardente,
Rei — e bravo também! e cavaleiro!
Que da espada na guerra a luz sabia
E ao troar dos canhões entumescia
O peito de guerreiro!
Perdão, por vossa mãe! por vossa glória!
Pelo vosso porvir e nossa história!
Não mancheis vossos louros do futuro!
Nem lisonjeiro incenso a nódoa exime!
— Lava-se o poluir de um leito impuro,
Lava-se a palidez do vício escuro;
Mas não lava-se um crime!
Rio de Janeiro. Novembro de 1850
Álvares de Azevedo: Lira dos Vinte Anos
MACHADO DE ASSIS
Quando, há cerca de dois ou três meses, tratamos das Vozes da América do Sr. Fagundes Varela, aludimos de passagem às obras de outro acadêmico, morto aos vinte anos, o Sr. Álvares de Azevedo. Então, referindo os efeitos do mal byrônico que lavrou durante algum tempo na mocidade brasileira, escrevemos isto:
Um poeta houve, que, apesar da sua extrema originalidade, não deixou de receber esta influência a que aludimos; foi Álvares de Azevedo. Nele, porém, havia uma certa razão de consanguinidade com o poeta inglês, e uma íntima convivência com os poetas do norte da Europa. Era provável que os anos lhe trouxessem uma tal ou qual transformação, de maneira a afirmar-se mais a sua individualidade, e a desenvolver-se o seu robustíssimo talento.
A estas palavras acrescentávamos que o autor da Lira dos Vinte Anos exercera uma parte de influência nas imaginações juvenis. Com efeito, se Lord Byron não era então desconhecido às inteligências educadas, se Otaviano e Pinheiro Guimarães já tinham trasladado para o português alguns cantos do autor de Giaour, uma grande parte de poetas, ainda nascentes e por nascer, começaram a conhecer o gênio inglês através das fantasias de Álvares de Azevedo, e apresentaram, não sem desgosto para os que apreciam a sinceridade poética, um triste ceticismo de segunda edição. Cremos que este mal já está atenuado, se não extinto.
Álvares de Azevedo era realmente um grande talento: só lhe faltou o tempo, como disse um dos seus necrólogos. Aquela imaginação vivaz, ambiciosa, inquieta, receberia com o tempo as modificações necessárias; discernindo no seu fundo intelectual aquilo que era próprio de si, e aquilo que era apenas reflexo alheio, impressão da juventude, Álvares de Azevedo, acabaria por afirmar a sua individualidade poética. Era daqueles que o berço vota à imortalidade. Compare-se a idade com que morreu aos trabalhos que deixou, e ver-se-á que seiva poderosa não existia, naquela organização rara. Tinha os defeitos, as incertezas, os desvios, próprios de um talento novo, que não podia conter-se, nem buscava definir-se. A isto acrescente-se que a íntima convivência de alguns grandes poetas da Alemanha e da Inglaterra produziu, como dissemos, uma poderosa impressão naquele espírito, aliás tão original. Não tiramos disso nenhuma censura; essa convivência, que não poderia destruir o caráter da sua individualidade poética, ser-lhe-ia de muito proveito, e não pouco contribuiria para a formação definitiva de um talento tão real.
Cita-se sempre, a propósito do autor da Lira dos Vinte Anos, o nome de Lord Byron, como para indicar as predileções poéticas de Azevedo. É justo, mas não basta. O poeta fazia uma frequente leitura de Shakespeare, e pode-se afirmar que a cena de Hamlet e Horácio, diante da caveira de Yorick, inspirou-lhe mais de uma página de versos. Amava Shakespeare, e daí vem que nunca perdoou a tosquia que lhe fez Ducis. Em torno desses dois gênios, Shakespeare e Byron, juntavam-se outros, sem esquecer Musset, com quem Azevedo tinha mais de um ponto de contato. De cada um desses caíram reflexos e raios nas obras de Azevedo. Os “Boêmios” e “O Poema de Frade”, um fragmento acabado, e um borrão, por emendar, explicarão melhor este pensamento.
Mas esta predileção, por mais definida que seja, não traçava para ele um limite literário, o que nos confirma na certeza de que, alguns anos mais, aquela viva imaginação, impressível a todos os contatos, acabaria por definir-se positivamente.
Nesses arroubos da fantasia, nessas correrias da imaginação, não se revelava somente um verdadeiro talento; sentia-se uma verdadeira sensibilidade. A melancolia de Azevedo era sincera. Se excetuarmos as poesias e os poemas humorísticos, o autor da Lira dos Vinte Anos raras vezes escreve uma página que não denuncie a inspiração melancólica, uma saudade indefinida, uma vaga aspiração. Os belos versos que deixou impressionam profundamente; “Virgem Morta”, “À Minha Mãe”, “Saudades”, são completas neste gênero. Qualquer que fosse a situação daquele espírito, não há dúvida nenhuma que a expressão desses versos é sincera e real. O pressentimento da morte, que Azevedo exprimiu em uma poesia extremamente popularizada, aparecia de quando em quando em todos os seus cantos, como um eco interior, menos um desejo que uma profecia. Que poesia e que sentimento nessas melancólicas estrofes!
Não é difícil ver que o tom dominante de uma grande parte dos versos ligava-se a circunstâncias de que ele conhecia a vida pelos livros que mais apreciava. Ambicionava uma existência poética, inteiramente conforme à índole dos seus poetas queridos. Este afã dolorido, expressão dele, completava-se com esse pressentimento de morte próxima, e enublava-lhe o espírito, para bem da poesia que lhe deve mais de uma elegia comovente.
Ensaiou-se na prosa, e escreveu muito; mas a sua prosa não é igual ao seu verso. Era frequentemente difuso e confuso; faltava-lhe precisão e concisão. Tinha os defeitos próprios das estreias, mesmo brilhantes como eram as dele. Procurava a abundância e caía no excesso. A ideia lutava-lhe com a pena, e a erudição dominava a reflexão. Mas se não era tão prosador como poeta, pode-se afirmar, pelo que deixou ver e entrever, quanto se devia esperar dele, alguns anos mais.
O que deixamos dito de Azevedo podia ter desenvolvimento em muitas páginas, mas resume completamente o nosso pensamento. Em tão curta idade, o poeta da Lira dos Vinte Anos deixou documentos valiosíssimos de um talento robusto e de uma imaginação vigorosa. Avalie-se por aí o que viria a ser quando tivesse desenvolvido todos os seus recursos. Diz-nos ele que sonhava, para o teatro, uma reunião de Shakespeare, Calderon e Eurípedes, como necessária à reforma do gosto da arte. Um consórcio de elementos diversos, revestindo a própria individualidade, tal era a expressão de seu talento.
(Publicado na “Semana Literária”, Diário do Rio de Janeiro, 26/06/1866)