O texto que aqui reproduzimos, devido ao seu profundo interesse, foi publicado originalmente na Revista Intertelas.
A cultura é parte essencial da construção do Estado nacional e de processos revolucionários que visam destruir ordens sistêmicas antigas, no intuito de construir algo novo em seu lugar e, de preferência, com uma base de valores que promovam relações sociais e políticas mais evoluídas que as anteriores. Revoluções não ocorrem por acaso. Entre tantas causas e questões, elas, de forma geral, costumam acontecer em razão de um conjunto de fatores diversos que levam à implosão de uma estrutura sistêmica engessada, que não foi capaz de renovar-se.
O viver em sociedade torna o humano um ser político em si e qualquer transformação que ocorra no âmago de qualquer sociedade terá de promover visões diferenciadas e claras para que uma população acostumada a viver em uma ordem anterior possa visualizar o plano futuro das lideranças que apoiam e confiam. Trata-se de um processo complexo e repleto de contradições. A Revolução Socialista Chinesa certamente revolucionou a China em todos os sentidos e no que tange às questões referentes aos direitos das mulheres, naquele contexto histórico, promoveu mudanças essenciais de modernização e igualdade.
No cinema chinês realizado durante a Era Maoísta este debate e estas questões estão bem acentuadas e servem para reflexão até os dias de hoje. Na quinta-feira de 8 de julho de 2021, a União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (UMES), durante a sua 2ª Mostra de Cinema com Partido exibiu o filme “Destacamento Vermelho de Mulheres” (1960) de Xie Jin que foi encomendado pelo Partido Comunista Chinês (PCC) com propósitos muito claros. Na oportunidade, a UMES, em conjunto com a Revista Intertelas, contatou a pesquisadora Thais Craveiro, que realiza um estudo específico sobre este clássico do cinema político, para analisar, junto ao diretor cultural da UMES Lucca Gidra, as razões que fizeram o filme ter grande importância histórica. Craveiro que é graduada em história pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) concordou também em compartilhar parte de sua pesquisa com a Intertelas e o resultado você confere abaixo. Boa leitura!
(Colaboradores Revista Intertelas)
THAIS CRAVEIRO (*)
O cinema tornou-se a forma artística fundamental direcionada à educação do povo e à consolidação das ideias socialistas na China a partir de 1949, após a vitória dos comunistas na guerra civil travada por muitos anos contra o Partido Nacionalista e a declaração da República Popular por Mao Zedong. Com a estatização dos estúdios de cinema em 1953 e o início da produção de equipamentos de filmagem na China na mesma década, a indústria cinematográfica nacional recupera sua produção, que havia sido bastante prolífica na década de 1930 e logo após a Segunda Guerra Mundial entre 1945 e 1949, e incorpora um viés decididamente de propaganda, empenhado na construção de um novo país.
As diversas formas cinematográficas desenvolvidas a partir da fundação da República Popular serviam ao mesmo propósito: educar o povo da Nova China. No cinema de ficção, houve a necessidade de se enfatizar quem eram os heróis, e principalmente quem eram os vilões inimigos do povo. Para o Partido Comunista, era fundamental que a população chinesa identificasse seus opressores – imperialistas estrangeiros, latifundiários, burgueses, nacionalistas e contrarrevolucionários, para que estes pudessem ser sempre combatidos durante o processo de construção de uma nação sem opressão e exploração.
Também era fundamental reconhecer os personagens que lutavam a favor do povo e da libertação da China: toda a classe trabalhadora – dos campos e das cidades, unidas ao Exército Vermelho, comandado pelo Partido Comunista. Partindo destes princípios básicos de representação dos heróis e dos vilões nacionais, o cinema chinês da era Maoísta adotou a estética do realismo socialista soviético, não somente no cinema, mas também em outras formas artísticas.
“Quem são os nossos inimigos? Quem são os nossos amigos? Essa é uma pergunta importantíssima para a revolução”, Mao Zedong
A narrativa cinematográfica baseada no realismo socialista consistia em definir bem o início, o meio e o desfecho das histórias contadas pelos filmes, assim como demonstrar um idealismo que despertasse nos espectadores a esperança por mudanças sociais positivas. Nestas produções, que ocorriam nos recém-estatizados estúdios de cinema de Shanghai e Beijing, os vilões eram retratados sempre de forma mais sombria por meio das cores escuras dos figurinos, maquiagens contrastantes, enquadramentos em plongée para torná-los “menores” e iluminação que os cobriam parcialmente com sombras. Essas escolhas estéticas atribuíam aos vilões aspectos visuais negativos, causando estranhamento, medo e rejeição nos espectadores.
Para representar os personagens positivos, a estética do realismo socialista utilizava recursos totalmente opostos aos citados acima: os heróis do povo – soldados do Exército Vermelho e membros do Partido Comunista, eram retratados com figurinos de cor clara, maquiagem que ressaltava seus rostos de forma positiva, enquadramentos em contra-plongée – revelando assim sua grandiosidade e dignidade, e recursos de iluminação que os tornavam quase figuras santas, associando o comunismo à luz, à libertação e a um futuro brilhante. Estas formas de representação dos heróis do povo faziam com que os espectadores criassem afeto e inspiração por estes personagens, despertando assim um desejo de tornar-se um herói do povo na vida real.
Estabelecida a escolha estética do realismo socialista – empregada aos poucos pelos diretores no início da década de 1950, o cinema da República Popular passou a narrar os episódios históricos de luta pelos quais o país havia passado recentemente. Também era uma intenção das narrativas do período enfatizar que a revolução estava em processo de construção e deveria seguir adiante, não somente na China, mas em âmbito mundial.
O “Destacamento Vermelho de Mulheres” (hongse niangzi jun 红色娘子军),lançado em 1961 e dirigido por Xie Jin, foi o segundo longa-metragem do diretor produzido durante o Período dos 17 Anos (1949-1966). Xie Jin é um dos principais diretores da história do cinema chinês, descrito por Costa como “um autor cujo universo é verdadeiramente o cinema e que, pelo lado da exceção, testemunha bem as potencialidades diversificadíssimas do próprio cruzamento entre este mundo (esta cultura, esta civilização) e o cinema” (1987: 64). “Destacamento Vermelho” foi um dos filmes encomendados pelo Partido Comunista para a comemoração de seu 40º aniversário.
O longa retrata, através da trajetória da protagonista Wu Qionghua, um dos episódios do processo de libertação da ilha de Hainan entre os anos de 1930 e 1932. Wu Qionghua é uma jovem camponesa que vivia sob condições de exploração nas terras do rico e cruel Nan Batian. Sua família havia sido assassinada pelo latifundiário, que a tomou como propriedade, forçando a jovem a fazer todo tipo de trabalho pesado, e a torturando como castigo devido às suas tentativas de fuga. Tudo muda quando dois membros do Partido Comunista – Hong Changqing e Xiao Pang, chegam à ilha disfarçados de ricos comerciantes. Eles infiltram-se na propriedade de Nan Batian, observam como homens e mulheres eram ali submetidos a todo tipo de humilhação e presenciam os castigos físicos que Qionghua sofria nos porões da casa.
Fingindo interesse em negociar com Nan Batian, Hong Changqing compra Wu Qionghua, a leva para fora da propriedade e após libertá-la orienta que procure o acampamento do Exército Vermelho na ilha e junte-se ao destacamento feminino. Este ato marca o início da trajetória de libertação da personagem, que pode ser associada diretamente à libertação da ilha e da própria China. A caminho do acampamento Qionghua encontra mais uma moça – chamada Hong Lian, oprimida e aprisionada pelas tradições familiares. As duas resolvem fugir a encontro do Exército Vermelho, desenvolvendo uma relação de irmandade. Depois de aceitas pelo destacamento feminino, as personagens passam por um processo de educação política e de estratégias militares, aprendendo também a direcionar seus desejos pessoais de vingança à luta coletiva pela libertação do povo chinês.
Wu Qionghua, através de sua marcante expressão facial e da determinação de sua juventude, representa a força feminina, a conquista da libertação e a revolução que também ainda era jovem e deveria seguir em frente. O filme de Xie Jin foi premiado e marcou gerações de chineses, dos anos 1960 até os dias atuais. Ao todo, recebeu quatro prêmios Hundred Flowers na primeira edição do festival chinês Golden Rooster Film Festival, em 1962, nas categorias de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz para a protagonista Zhu Xijuan (Wu Qionghua), e Melhor Ator Coadjuvante para Chen Qiang (Nan Batian). A produção também recebeu o prêmio Bandung na terceira edição do Afro-Asian Film Festival em Jakarta, em abril de 1964.
O filme integra uma longa lista de trabalhos em diferentes mídias sobre a história de libertação de Hainan sob o título “Destacamento Vermelho de Mulheres”. Segundo a pesquisadora Kristine Harris, em seu estudo denominado “The Red Detachment of Women between Stage and Screen”, a primeira produção com este título de que se tem conhecimento é uma reportagem publicada entre os anos de 1957/1958, e no qual já estariam representados personagens que alguns anos depois protagonizariam o longa-metragem de Xie.
Neste mesmo período, o filme teve sua primeira adaptação para o palco, sob a forma de uma ópera local de Hainan, denominada Qiongju, cantada no dialeto da ilha. Esta primeira versão em ópera foi apresentada somente em Hainan pois o dialeto era compreendido apenas pelo povo local. Após o enorme sucesso do longa-metragem de Xie Jin lançado em 1961, a obra seria novamente adaptada para o palco na mesma década. Entre os anos de 1963 e 1964, a Academia de Dança de Beijing e a Academia de Ópera de Beijing adaptaram o roteiro do filme para uma versão de ballet clássico de repertório, e uma versão em Ópera de Pequim. Esta, segundo Harris, foi “varrida para debaixo do tapete”, em razão das duras críticas e oposição recebidas por seus dramaturgos, A Jia e Tian Han, durante a Revolução Cultural. Em 1966, foi lançada uma versão em história em quadrinhos, atribuída a Liang Xin, roteirista do longa-metragem de Xie.
Entre os anos de 1971 e 1972, no auge da Revolução Cultural, período em que as produções artísticas ficaram sob o minucioso comando de Jiang Qing, a quarta esposa de Mao Zedong, “Destacamento Vermelho” foi novamente adaptado para o ballet e para a ópera, desta vez em versões filmadas em estúdio. O ballet foi largamente projetado em salas de cinema nas cidades, e em cinemas itinerantes espalhados por todo o país, e, assim como o longa-metragem de Xie Jin, foi um grande sucesso entre o público, e acabou por consagrar o título. Por sinal, os cinemas itinerantes foram um resultado da autonomia chinesa em produzir seus próprios equipamentos cinematográficos: com a consolidação de tal indústria, e a produção de câmeras 16 mm e 8mm e de projetores portáteis, foi possível levar a arte cinematográfica ao interior rural do país.
Já a versão filmada da ópera não obteve o mesmo prestígio que o ballet, e na época foi considerada apenas um complemento deste. Harris aponta em seu artigo “Remakes/Remodels: The Red Detachment of Women between Stage and Screen” alguns fatores que justificam o fracasso da ópera filmada entre o público, sendo os principais: esta versão tem vinte minutos a mais que o ballet, tornando-se cansativa de assistir; a ópera não tem o atrativo da ação e da incrível técnica corporal dos bailarinos em suas acrobacias e entradas em conjunto; e as técnicas de filmagens e cortes empregados na ópera não atenderam bem à linguagem fílmica como o ballet o fez, com grande êxito.
As relações entre o cinema chinês e as outras artes é muito estreita desde o primeiro filme rodado no país em 1905. Em “Conquering the Jun Mountain” (ding junshan 定军山, Ren Jingfeng), o famoso ator de ópera Tan Xinpei – o favorito da imperatriz Cixi – encena o papel de uma ópera, estilo teatral tipicamente chinês distinto do teatro ocidental. Apenas por fator de curiosidade, Cixi ficou conhecida como a “Imperatriz Viúva”. Ela fez parte da Dinastia Qing, a última que existiu antes da Revolução da Xinhai, de 1911, liderada por Sun Yixian (Sun Yat-sen), um dos fundadores do Partido Nacionalista (Guomindang/Kuomintang-KMT), e “pai” da república. A República chinesa foi declarada em 1 de janeiro de 1912.
Com o desenvolvimento da indústria cinematográfica chinesa durante as décadas de 1920 e 30, as relações com outras formas artísticas foram evidenciadas através da estética, da linguagem e dos gêneros dos filmes: teatro, artes marciais, ópera, comédias, dentre outros. Após a fundação da República Popular em 1949, e os anos que compreendem ao período da Revolução Cultural (1966-1976), as relações entre o cinema chinês e as outras mídias tornaram-se ainda mais intensas, e com o propósito de atender às demandas artísticas estabelecidas pelo Partido Comunista Chinês.
É importante ressaltar que as diretrizes para as produções artísticas da República Popular foram discutidas antes mesmo de sua fundação. O conhecido Talks at the Yan’an Forum on Art and Literature realizado em 1942, sob a liderança de Mao Zedong, já apontava as funções das artes nacionais para a construção do socialismo na China.
Nos filmes em questão, interessa-nos especialmente as relações intermidiáticas entre o cinema e a dança – especificamente o ballet clássico desenvolvido na China durante o período Maoísta. Tomando as teorias de intermidialidade desenvolvidas por Agnes Pethó e Irina Rajewski acerca da intermidialidade no cinema, abordaremos os filmes a partir de um viés histórico, que poderá fazer emergir a dimensão política desta intermidialidade.
A intermidialidade no cinema do período Maoísta
A intermidialidade, segundo Claus Clüver, “é um termo relativamente recente para um fenômeno que pode ser encontrado em todas as culturas e épocas, tanto na vida cotidiana como em todas as atividades culturais que chamamos de ‘arte’”. (Clüver, 2011: 9). Agnes Pethó (2011) e Lucia Nagib (2014) apontam a intermidialidade como importante método histórico de análise nos Film Studies, e Irina Rajewsky empresta de Regina Schober o termo “conceito guarda-chuva” para enfatizar as numerosas possibilidades da abordagem intermidiática para um olhar mais abrangente das relações das obras cinematográficas com outras artes.
Rajewsky define o “conceito guarda-chuva” como um procedimento com três categorias de fenômenos, a saber: 1) transposição midiática; 2) combinação de mídias, e 3) referências midiáticas. Segundo a autora, estas abordagens podem ocorrer desde o método de adaptação fílmica, da musicalização da literatura, dentre outros, até abordagens mais amplas, das quais apresentam como resultado subcategorias de intermidialidades. Desta forma, Rajewsky assim define a intermidialidade:
“Um termo genérico para todos aqueles fenômenos que (como indica o prefixo inter) de alguma maneira acontecem entre as mídias. “Intermidiático”, portanto, designa aquelas configurações que têm a ver com um cruzamento de fronteiras entre as mídias e que, por isso, podem ser diferenciadas dos fenômenos intramidiáticos assim como dos fenômenos transmidiáticos, por exemplo, o aparecimento de um certo motivo, estética ou discurso em uma variedade de mídias diferentes”. (2012: 18)
Diante de breve apresentação do conceito de intermididalidade, e da obra que se construiu em torno do título Destacamento Vermelho de Mulheres, no qual o cinema teve papel central em sua difusão, é possível justificar a aplicação da análise intermidiática. Como foi mencionado na introdução, o cinema chinês desde seu surgimento até seu pleno desenvolvimento relacionou de forma muito intensa e próxima a arte fílmica com outros tipos de arte. O período Maoísta, com o propósito político de educar a população acerca das ideias socialistas, e com o objetivo maior de tornar a revolução mundial, utilizou os meios artísticos como os grandes veículos da propagação de tais ideias.
A fusão de técnicas artísticas ocidentais como o ballet clássico, com artes tipicamente chinesas – e utilizando o cinema como o grande transmissor do resultado final destas misturas, parecia a estratégia perfeita para os comitês do Partido Comunista, que comandavam as produções artísticas do período. No caso específico dos filmes analisados, é cabível evocar a noção de “combinação de mídias”, aplicada em sua variação denominada “plurimodalidade”, e a transposição midiática (Rajewsky, 2010). A combinação de mídias caracteriza-se pela combinação de no mínimo duas mídias distintas (que podem ser ópera, cinema, teatro, performance, instalações, quadrinhos, dentre outras), que contribuirão para a construção e para o significado final do produto resultante de tal combinação, podendo ocorrer em duas modalidades: a plurimodalidade e a multimodalidade.
A plurimodalidade consiste na presença de mais de um tipo de mídia dentro de uma única mídia (como o cinema, a ópera, e a dança), e serve para a análise dos filmes em questão (Rajewsky, 2010:55). Já a transposição midiática é um processo que faz referência a um texto em uma determinada mídia, produzido a partir de outra mídia. Neste processo, a mídia de origem é utilizada como fonte do produto midiático resultante, configurando, desta forma, a intermidialidade. A transposição midiática, segundo a pesquisadora brasileira Thais Diniz, é muito recorrente no cinema “(…) pois, desde o início, essa mídia evidenciou sua capacidade de relatar, com seus próprios recursos, uma história anteriormente narrada”. (Diniz, 2018: 51)
Cinema e Ballet em Destacamento Vermelho de Mulheres: um olhar intermidiático
O título Destacamento Vermelho de Mulheres, como já foi apresentado na introdução, tornou-se uma obra largamente representada sob diversos formatos midiáticos – e consagrada na forma cinematográfica, baseados em uma história real do período de libertação do território chinês. Narrar os episódios de libertação da China é uma das características do processo de modernização das artes nacionais, e que se tornou mais intenso e abrangente durante o período Maoísta.
Pode-se mencionar como a “primeira revolução cultural” do período republicano o Movimento Quatro de Maio de 1919. Composto principalmente por jovens estudantes – com destaque para a participação de estudantes mulheres, o movimento foi uma reação ao Tratado de Versalhes, que humilhou a China ao entregar a província de Shandong (até então uma concessão alemã) ao Japão. Dentre as formas de protesto elaboradas por esses jovens, havia a substituição dos temas tradicionais nas artes por temas atuais, urgentes e revolucionários; dentre eles o combate ao imperialismo, a libertação feminina, e o combate à exploração sob a qual a população chinesa era submetida.
O cinema teve papel central na educação socialista iniciada em 1949, sendo a principal forma midiática de difusão das artes chinesas modernizadas. Como prova disto, temos os ballets e óperas que ganharam formas fílmicas durante a Revolução Cultural, e foram largamente exibidos em salas de cinema e nos cinemas itinerantes da China. O longa-metragem “A Garota dos Cabelos Brancos” (bai mao nu 白毛女, 1950, Wang Bin/ Shui Hua), um dos primeiros filmes da República Popular a atender as novas diretrizes artísticas propostas pelo Partido Comunista Chinês, também foi representado sob diversas formas midiáticas, com destaque para o ballet e a ópera, filmados durante a Revolução Cultural.
O longa apresenta um dos episódios de libertação da China durante a década de 1930, misturando a narrativa revolucionária socialista com uma lenda popular. Junto ao Destacamento Vermelho de Mulheres, “A Garota dos Cabelos Brancos” também foi um enorme sucesso sob o formato de ballet filmado.
A relação intermidiática em Destacamento Vermelho de Mulheres é evidente já na década de 1950, na ocasião da publicação da reportagem entre os anos de 1957-8. A narrativa dos fatos históricos e a apresentação dos personagens deram forma ao roteiro da primeira adaptação para o palco – a Ópera de Hainan; e foi também a partir desta reportagem que o roteiro do longa-metragem de Xie Jin foi elaborado. É interessante aqui mencionar que esta ópera denominada Qionju, é anterior às dinastias Ming (1368-1644) e Qing (1644-1912). No início do século XX, este tipo de ópera também passou pelo processo de modernização artística ao adicionar temas contemporâneos aos seus repertórios clássicos românticos.
O roteiro do longa-metragem de Xie Jin, por sua vez, serviu como base para novas adaptações para o ballet e a Ópera de Pequim elaborados entre os anos de 1963 e 1964. As versões filmadas produzidas e lançadas durante a Revolução Cultural (o ballet em 1971 e a ópera em 1972), também foram baseados no roteiro do longa-metragem, porém, com modificações pontuais exigidas por Jiang Qing.
A versão em ballet de Destacamento Vermelho de Mulheres foi cuidadosamente elaborada. Sua base técnica e artística principal foi o ballet clássico importado da União Soviética. Inserido na China durante a década de 1930, o ballet clássico não era muito conhecido, apreciado e praticado no país até a fundação da República Popular em 1949. Para atender à política de uso de técnicas ocidentais para o aprimoramento e internacionalização das artes socialistas chinesas, o ballet passou a ser ensinado em academias direcionadas para este tipo de arte, e também passou a ser divulgado para que o público chinês o apreciasse, alcançando grande público durante a Revolução Cultural com as versões filmadas de Destacamento Vermelho de Mulheres e A Garota dos Cabelos Brancos.
Ao ballet clássico soviético foram adicionadas as danças folclóricas de Hainan, os movimentos acrobáticos da ópera e das artes marciais, e a pose liang xiang. Também trazida da ópera chinesa, a pose liang xiang consiste em congelamento de movimentos para dar ênfase emocional ao personagem. Há um aspecto importante e peculiar das produções cinematográficas de Destacamento Vermelho de Mulheres: tanto na ocasião da filmagem do longa-metragem de Xie Jin, quanto na elaboração e filmagem do ballet, a equipe toda – diretores, técnicos e elenco/corpo de baile -, viajaram para Hainan com a finalidade de aprender sobre o dia a dia e a linguagem corporal dos camponeses e dos soldados da ilha.
Como aponta Harris, dentre as principais mudanças no roteiro de Destacamento Vermelho de Mulheres feitas coletivamente pela equipe da montagem do ballet em 1970, podemos destacar: a mensagem ideológica e o caráter revolucionário dos personagens heroicos foram enfatizados e colocados em primeiro plano; havia uma personagem chamada Honglian no filme de Xie Jin, que foi eliminada do roteiro do ballet; o nome da protagonista Qionghua foi modificado para Qinghua (que significa “China pura, limpa”, até então os nomes dos personagens do filme de Xie remetiam à cor vermelha); e Changqing, protagonista masculino de cargo notável no Partido Comunista, tem seu caráter evidenciado como mártir revolucionário.
Este roteiro modificado serviu como base para o ballet e a para a ópera filmados e lançados em 1971 e em 1972 respectivamente. A relação intermidiática entre a dança e o cinema presente nos dois filmes de “Destacamento Vermelho de Mulheres” é perceptível não somente pelo emprego da combinação de mídias (aqui presentes o cinema, a dança, e a ópera), da plurimodalidade e da transposição midiática, mas também em como são evidentes a fusão e a mistura destas formas artísticas que resultam na arte cinematográfica como mídia principal.
A transposição midiática é aqui evidente se tomarmos o cinema como fonte central para o resultado final da combinação de mídias. Atrelada à transposição, a plurimodalidade é notada quando, ao estabelecermos a forma fílmica como base e fonte fundamentais, notamos a inserção das outras formas midiáticas presentes em Destacamento Vermelho tais como a dança, a ópera e a música, para resultar no formato fílmico como meio de difusão da combinação de mídias.
Considerações Finais
A abordagem intermidiática inserida na análise do longa-metragem e do ballet filmado intitulados Destacamento Vermelho de Mulheres evidencia, em primeiro lugar, a importância do método histórico, uma vez que os fatores políticos que envolveram a produção cinematográfica nos períodos estudados (Período dos 17 Anos 1949-1966 e Revolução Cultural 1966-1976) são fundamentais para a compreensão das transformações das artes nacionais na China Maoísta.
Em segundo lugar, ao analisarmos o cinema chinês através da abordagem intermidiática podemos notar que este cinema – nascido quase que simultaneamente à criação do cinema no Ocidente, mantém uma relação muito íntima com outros tipos de arte. Desde os primeiros filmes chineses feitos no início do século XX, até o desenvolvimento da indústria cinematográfica chinesa durante o período republicano (1912-1949), e o surgimento de um cinema tipicamente revolucionário e socialista durante a Era Maoísta (1949-1976), a história do cinema chinês é marcada pela relação da arte cinematográfica com a dança, a literatura, o teatro, a ópera, a música, as artes marciais, dentre outras; característica que segue viva até os dias atuais.
Por fim, lançamos mão dos conceitos elaborados por Rajewsky acerca das relações entre diferentes mídias e diferentes artes, quais sejam, a intermidialidade, a plurimodalidade e a transposição midiática, para analisar dois filmes-chave do período Maoísta, que demonstram de que forma o cinema chinês participou do esforço de usar e passar o antigo para o presente, além de trazer elementos provenientes do estrangeiro para a China e, desta forma, contribuir para a construção do socialismo no novo país. Nos dois Destacamento Vermelho de Mulheres é notável o modo como as barreiras entre as mídias confundem-se, havendo assim uma interação intensa de formas midiáticas que resulta em uma estética complexa para o cinema da nova China.
(*) Graduada em História na Universidade Federal de São Paulo (2016), onde realizou pesquisas sobre imigração chinesa na cidade de São Paulo, e imigração chinesa no Rio de Janeiro durante o século XIX. Atualmente é bolsista Capes no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais do Departamento de Cinema, Televisão e Rádio da ECA – USP, no qual desenvolve a pesquisa intitulada Cinema e Ballet Revolucionário Chinês: a representação das personagens femininas em Destacamento Vermelho de Mulheres.
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Filmografia
The Red Detachment of Women (hongse niangzi jun 红色娘子军), 1961, Xie Jin, cor, 92 min, Tianma Studios, Shanghai, China.
The Red Detachment of Women (hongse niangzi jun 红色娘子军 ), 1971, Pan Wenzhen/Fu Jie, cor, 105 min, Beijing Film Studios, Beijing, China.