É parecido com a atitude na pandemia: o governo sabia do problema, mas não estimulou a vacinação”, afirma José Goldemberg. “As consequências serão o aumento do custo Brasil, o preço alto da energia elétrica, perda de competitividade quando o país mais precisa retomar o crescimento”, diz Amanda Ohara
A condução do governo federal diante da gravidade da crise hídrica está sendo comparada por especialistas da área à postura negacionista que Jair Bolsonaro vem tendo na pandemia da Covid-19 e que, da mesma forma, vai ter um custo muito alto para o Brasil e para a população.
Um mês após a criação do comitê de gestão da crise energética, o governo só fez foi aumentar a conta de luz para o consumidor final, que hoje arca com a bandeira vermelha no patamar 2 e vive a constante ameaça das autoridades de que o aumento no custo da energia ainda não foi insuficiente para garantir o abastecimento e já anunciam que novos aumentos virão.
Segundo alguns dos mais renomados nomes do setor, faltam ações concretas do governo para lidar com o problema.
Conforme afirmou o físico José Goldemberg – que já foi ministro de Educação, secretário nacional de Ciência e Tecnologia, reitor da USP e presidente de quatro grandes estatais do setor elétrico – em artigo citado pelo portal EcoDebate, o não enfrentamento da questão “é parecido com a atitude na pandemia: o governo sabia do problema, mas não estimulou a vacinação”.
Segundo ele, agora o governo “deveria dizer que a situação é grave e tomar providências sérias, como usar as energias renováveis – eólica e solar – para economizar água e encher os reservatórios. Se isso não for feito agora, teremos muitos problemas”, diz o físico.
Goldemberg afirma que o planejamento energético no país sempre funcionou porque havia reservatórios com água suficiente, mas que “a água que temos hoje só aguenta alguns meses”, diz.
“Há uma negligência total quando o governo não prepara a população para os dias difíceis que teremos pela frente e não planeja encher os reservatórios investindo em energias renováveis”.
No artigo “O enfrentamento das crises hídricas: o papel das energias renováveis na construção de uma matriz elétrica mais resiliente e de menor custo”, citado acima, os engenheiros Luiz Barata e Amanda Ohara, que também assinam, comungam da mesma opinião.
Eles criticam a Medida Provisória enviada ao Congresso por Bolsonaro que autoriza a privatização da Eletrobrás e a omissão do governo diante das emendas feitas por parlamentares que, segundo os três autores, é um “erro histórico” que vai interromper o planejamento energético brasileiro que acontece desde a década de 60.
“Há ausência de fundamentação técnica e científica nas ações oficiais, a aposta é feita em soluções opostas às apontadas por estudos, como foi na pandemia. É um erro grave que pode amarrar nosso sistema elétrico por muitos anos a soluções caras, a contratos fixos com térmicas de combustível fóssil, na contramão de estudos e da tendência mundial”, afirma Amanda Ohara, que é mestre em Planejamento Energético e atuou em várias funções na Petrobrás.
Segundo ela, “o governo tem seguido o padrão negacionista. Ele cria comitê de crise, mas não encara a urgência necessária nem envolve todos os interessados, como a Agricultura, profundamente impactada pela falta de água nos reservatórios”, diz.
“As consequências serão o aumento do custo Brasil, o preço alto da energia elétrica, perda de competitividade quando o país mais precisa retomar o crescimento. O Brasil desperdiça a oportunidade de ocupar um papel central na descarbonização e se enfraquece geopoliticamente”, ressalta Amanda.
Para Luiz Barata, que foi diretor geral do Operador do Sistema Nacional (ONS), secretário executivo no Ministério de Minas e Energia e ocupou funções técnicas e gerenciais em Itaipu, Eletrobrás e Furnas, “ao não reagir contra as emendas à MP da Eletrobrás, o Executivo abriu mão de sua função de planejar e deixou o setor elétrico vulnerável como nunca”.
O engenheiro cita a crise elétrica de 2001, no governo Fernando Henrique Cardoso que, segundo ele, teve uma primeira postura de negação, mas que “logo reconheceu o problema, passou a atuar com transparência e clareza e a sensibilizar a sociedade para colaborar”.
“Temos hoje uma matriz mais diversificada. A participação hidrelétrica era de 80%, e hoje é pouco superior a 60%. Mas a crise hídrica é bem mais profunda do que em 2001”, compara o engenheiro.
Ele afirma que “é a pior situação em 91 anos”, e que o impacto da crise “pode ser como o racionamento de 2001 ou a ocorrência de desligamento de determinadas regiões, por impossibilidade de atendimento”.
Para o especialista, a crise foi anunciada. “No fim do período seco do ano passado, já tínhamos uma ideia do que vinha pela frente. Aí veio o negacionismo e a decisão de não ser transparente. A verdade não assusta, mas prepara as pessoas para os problemas que virão”, afirma.
Para Roberto Kishinami, que também é especialista em energia e coordenador do Instituto Clima e Sociedade, que reuniu Goldemberg, Luiz Barata e Amanda Ohara na elaboração do artigo, “o Brasil está indo em direção a um quadro muito grave em relação à crise hídrica”.
Kishinami também compara a maneira como o governo vem enfrentando a crise energética com o enfrentamento da pandemia. Para ele, a condução do governo “parece deliberadamente incompetente. Certamente o enfrentamento da crise está sendo feito de uma maneira muito politizada”, disse.
Fonte: EcoDebate