“O povo guatemalteco não suporta mais o governo de Alejandro Giammattei, a corrupção e a impunidade”, afirma Daniel Pascual, coordenador do Comitê de Unidade Camponesa (CUC), à frente das mobilizações que voltaram a sacudir o país nesta segunda-feira (9). Condenando “a agenda regressiva imposta contra os direitos dos trabalhadores”, o líder camponês denuncia nesta entrevista “a proliferação de mortes de crianças por desnutrição e diarreia, pela não ingestão de vitaminas básicas em um país exportador de alimentos”. “Na Guatemala, a pobreza e a miséria estão relacionadas com a má distribuição da terra, o extrativismo e a não industrialização, já que é tudo voltado ao estrangeiro. Não há qualquer processamento nos produtos agrícolas, o que não gera emprego e nem agrega valor”, acrescenta. Para Daniel Pascual, “a hora é de consolidar a mais ampla frente para construir um Estado plurinacional, democrático e participativo”.
LEONARDO WEXELL SEVERO
Nos descreva sinteticamente qual é a situação da Guatemala neste momento.
Apesar de ser um país pequeno, 109 mil quilômetros quadrados, nosso país tem as mesmas características do Brasil: 80% das terras estão nas mãos dos latifundiários e, do total das terras, 26% têm vocação agrícola. A fome na Guatemala está pensada, planejada, desenhada, e tem por objetivo essencial a dominação.
Na Guatemala não são só os solos férteis, a população é de vocação agrícola, mantida rural e dedicada à produção de grãos básicos nos solos de pior qualidade, enquanto a melhor parte é dedicada à exportação. Estão voltadas para o estrangeiro as plantações de cana-de-açúcar, palma africana (para azeite), café, borracha, há um pequeno núcleo de cardamomo (exportado de forma monopólica, rico em vitaminas e minerais).
Precisamos redistribuir a terra e mudar o modelo de produção agrícola para produzir alimentos suficientes e de qualidade. Acabar com a fome: essa deve ser obviamente a prioridade.
Infelizmente, a desnutrição crônica, a imensa fome existente, ocorre precisamente onde está concentrada a população indígena, onde há produtos naturais, mas inteiramente insuficientes. Então, quando digo que a fome é um objetivo, que é parte de uma estratégia de dominação, é porque a pobreza está relacionada com a má distribuição da terra, com o extrativismo e a não indústria, porque toda a produção é voltada ao estrangeiro. Não há qualquer processamento nos produtos agrícolas, o que não gera emprego e nem agrega valor.
A fome é um negócio que enriquece uma elite ao mesmo tempo em que obriga as pessoas a venderem sua força de trabalho não-qualificada… É o neofeudalismo, o modelo neoliberal, que tem os seus lucros potencializados com a desregularização do emprego, a implementação do trabalho por tempo parcial, o salário diferenciado, com o desaparecimento do salário mínimo, da jornada de oito horas de trabalho e o descanso semanal. Começa uma terceirização indescritível…
E há a chegada da Covid-19 e a inação do governo Giammattei em relação à pandemia…
E ainda temos a chegada da Covid e, no caso da Guatemala, a ocorrência de três furacões recentes: o Nana, o Eta e o Ota. Neste momento, estamos numa situação de ainda maior aprofundamento do problema, o que provoca ainda maior desnutrição no campo. Não há estratégias, planos ou políticas de governo. Pior, houve o endividamento de 32 bilhões de quetzales (US$ 4,3 bilhões) para, entre aspas, enfrentar a crise, mas que foi dinheiro desperdiçado.
A verdade é que os programas para atender a agricultura não aparecem. Sendo assim, as organizações camponesas, entre elas a CUC, apresentamos ao governo uma proposta para a reativação da economia familiar, indígena e camponesa que não foi levada em conta.
Conforme a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), na Guatemala 49% das crianças menores de cinco anos encontram-se desnutridas. Nesta pandemia se informa de mortes diárias por desnutrição, do falecimento de crianças por diarreia ou de qualquer outra enfermidade que tiveram como raiz comum a fome. Milhares de meninos e meninas que não tem a fortaleza alimentar e de vitaminas para poder sobreviver em um país exportador de alimentos.
Aqui segue vigente a necessidade da reforma agrária, integral, que também deve respeitar os territórios dos povos indígenas. As políticas e leis dos Acordos de Paz já passaram a um terceiro plano, ficaram secundarizadas, é preciso discutir a institucionalidade agrária. Do contrário, ficaremos à deriva.
Tivemos em 2015 um avanço na recuperação de terras, na recuperação de territórios, resultado de lutas vitoriosas nas cortes de Justiça. Mas são vitórias pontuais, são avanços ao calor da luta política e da resistência dos povos indígenas.
E neste último período em especial?
É preciso fazer uma breve retrospectiva. Em 2015 cai o governo de Otto Pérez Molina, general do Exército da reserva, e um dos oficiais envolvidos no genocídio. Já estando na Presidência se definiu como artífice e fiador do extrativismo, de quem iria garantir a implementação para as empresas mineiras e hidrelétricas, e começou uma repressão bárbara e de massacres na fronteira com o México e no centro do país, contabilizando uma série de assassinatos e desaparecimentos. Mas Pérez Molina cai devido à corrupção. Logo vem um período de transição e em 2016 chega um que se denomina “o palhaço” [Jimmy Morales]. Era um cômico. Com as pessoas procurando novas figuras na política, elegem um personagem sem nada que mereça maiores análises. E em 2020 toma posse Giammattei, a quem dizem “o italiano”, ex-diretor do sistema carcerário, envolvido com o assassinato de vários réus na prisão. Ele se converte em operador político e instrumento do pacto de corruptos, começando a aplicar uma agenda regressiva em termos de novas leis se propondo a consolidar uma estratégia de corrupção.
Vieram as eleições da Corte Suprema e da Corte de Constitucionalidade e esse pacto de corruptos conseguiu tomar de assalto os tribunais de Justiça. Isso facilitou com que várias legislações avancem, como a da reforma da lei de Organizações Não-Governamentais (ONGs), que quer atentar contra os movimentos sociais, indígenas e organizações de mulheres. São ações que buscam um controle total do funcionamento dessas organizações a partir da manipulação e asfixia das suas finanças.
Neste momento, devido ao coronavírus, os estados de calamidade ou estados de prevenção implementados pelo país servem para atemorizar e invisibilizar a dimensão dos protestos, que vêm ganhando força em todo o país como o desta terça-feira (9). Giammattei está entre os governantes pior avaliados na América Latina, conforme registrou o próprio Gallup.
Se avalia que os bilhões de quetzales de empréstimos solicitados para o combate ao coronavírus deveriam ter levantado a economia familiar e nada ocorreu. Havia um bônus familiar, dinheiro efetivo, que se suspendeu ou reduziu a sua máxima expressão. O alimento escolar para as crianças também é mínimo.
Para que possamos ter uma ideia, estamos falando de que montante?
Estamos falando de uma bolsa trimestral que não chega a 100 quetzales por criança, uns 15 dólares a cada três meses, uns cinco dólares por mês, algo terrível. É uma situação bem complexa. São crianças que estão na educação primária e que deveriam ter a sua alimentação coberta, mas não é assim. A FAO fez um esforço para que a Lei da Agricultura Familiar fosse aprovada, mas o Congresso nada fez e os parlamentares de direita não têm nenhuma intenção de reverter esse quadro.
Na sua avaliação, qual a importância da conformação de uma frente ampla de oposição?
O operador político é Giammattei, mas no Congresso da República estão centralizadas as decisões políticas mais fortes. Pelo Congresso é que passam as eleições dos magistrados para as Cortes. O Congresso elege o procurador de Direitos Humanos e aprova novas leis. Neste sentido, a população acumulou nojo e raiva dos parlamentares. Se somou a isso a influência dos Estados Unidos que, na tentativa de distanciar-se [e se desqueimar], fez uma “lista suja” das pessoas envolvidas em corrupção, em que aparecem deputados, empresários e magistrados, aumentando a repulsa ao governo e aos envolvidos.
Por isso, quando houve a reação em 21 de novembro, o maior protesto, em que estávamos na Praça Central, enquanto outros grupos se concentraram no Congresso, nos pareceu ter sido algo preparado, não temos certeza. Não sabemos se foi a população quem provocou o fogo ou o fogo apagou o protesto social, porque não havia seguranças, não estavam aí cadeados nem barreiras, e nos pareceu ter sido muito fácil o acesso das pessoas que incendiaram o Congresso.
Por outro lado, foi um momento de convulsão, em que a população manifestou sua coragem, expressou sua raiva, mas isso também foi uma forma de provocar a repressão. Capturaram cerca de 30 pessoas, jovens, mulheres e homens que só foram liberados dias depois. Agora estão procurando pelas lideranças, sem publicar seus nomes, para atemorizar com interrogações muito fortes e duras intimidações.
A nível midiático tivemos um êxito, pois se viu freado o orçamento nacional proposto por Giammattei. Queriam elevar o atual orçamento de 80 bilhões para 110 bilhões de quetzales, desprezando o déficit na arrecadação fiscal para injetar 20 bilhões de quetzales no Congresso enquanto cortavam recursos para a agricultura familiar.
As pessoas fizeram ecoar suas vozes dizendo que o governo poderia ter controlado as Cortes, mas não a dignidade do povo. E a população tem nos cobrado que haja uma aliança, uma frente unitária para enfrentar Giammattei. Este é o segundo ano de governo – ainda faltariam dois anos -, mas a situação de descontentamento diante da incapacidade é enorme, seja pela má condução intencional da pandemia [devido à corrupção na compra de vacinas], na direção dos programas sociais e da própria crise econômica.
Neste momento, há um movimento que se chama Força Cidadã que está defendendo que deve haver reformas para devolver o poder soberano do povo, a fim de que se possa pedir a revogatória de mandatos de prefeitos, governadores e presidente. Estão ocorrendo mobilizações, se colhendo assinaturas e se fortalece um processo pedindo a renúncia de Giammattei. O desafio colocado é que se vamos afastar o presidente – como foi feito com Pérez Molina – um Congresso de direita logo pode eleger um inquilino até a chegada do novo governo, repetindo a história.
Mas, independente de tudo, a mobilização continua, nosso povo não está calado. Apesar das restrições, do estado de prevenção, dos horários restritos de mobilização, de mecanismos legais, entre aspas, para ter medidas de controle militar, as forças sociais estão voltando as ruas e rodovias porque o povo guatemalteco não suporta mais Giammattei.
Os EUA são completamente indolentes em relação ao governo colombiano, enquanto têm pressionado com listas ao governo guatemalteco. A que se deve isso?
Não é que os EUA sejam boas pessoas, mas é que estão vendo perder o controle, como já ocorreu com Bukele em El Salvador, que firmou convênios com a China. Em Honduras este JOH (Juan Orlando Hernández) é quase que um narco declarado. Na Guatemala, estão perdendo para empresários corruptos que não cumprem com suas obrigações e que fazem com que cada vez mais haja mais migração rumo aos Estados Unidos. Afinal de contas, nossos irmãos que não conseguem emprego na América Latina, estão centenas de milhares de guatemaltecos, o que lhes provoca mais insegurança nacional. Querem controlar essa migração, querem controlar geopoliticamente a América Central e já não conseguem mais.
A hora é de consolidar a mais ampla frente para construir um Estado plurinacional, democrático e participativo. Novas perspectivas se abrem aos povos que lutam.