Os ministros das Relações Exteriores da China e da Rússia, Wang Yi e Sergei Lavrov, conclamaram o Talibã a formar um “governo inclusivo” no Afeganistão e a trabalhar pela reconstrução e a paz, em troca de ideias por telefone na terça-feira (17), após a vitória do movimento insurgente com a tomada da capital, Cabul, em uma semana e praticamente sem resistência.
“Nossas posições estão alinhadas”, afirmou Lavrov à agência de notícias Tass, enquanto o chanceler Wang disse ao Global Times que China e Rússia devem “trabalhar juntos para encorajar o Talibã a construir uma estrutura política abrangente e inclusiva e políticas externas amigáveis e pacíficas”.
Wang observou que há “mudanças dramáticas” no Afeganistão e que a intervenção estrangeira “fracassou”.
Para Lavrov, não há pressa quanto ao reconhecimento de um novo governo no Afeganistão, e o importante é observar “suas ações” e não apenas suas “declarações”.
Nesse sentido, Lavrov considerou que há “sinais positivos” do Talibã sobre o futuro do Afeganistão.
“Vemos mensagens tranquilizadoras do Talibã, que afirmam desejar ter um governo com outras forças políticas e, também, que estão dispostos a continuar certos processos, incluindo, educação para meninas e em geral com o funcionamento de instituições do Estado, sem bloquear caminho para os funcionários que trabalharam sob o governo anterior do presidente Ghani”, assinalou o chefe da diplomacia russa.
Convocação no mesmo sentido partiu do Conselho de Segurança da ONU na segunda-feira, reunido em caráter de urgência, pedindo o estabelecimento de um novo governo, por meio de negociações, que seja “unido, inclusivo e representativo” e com a participação das mulheres.
A declaração também pede o fim imediato das hostilidades e abusos dos direitos humanos, e que seja garantido o acesso humanitário imediato, seguro e desimpedido.
Enquanto isso, os EUA anunciaram o sequestro das reservas afegãs mantidas em instituições norte-americanas e ameaçaram o país com sanções.
Ao contrário dos países que foram cúmplices na ocupação, e que na derrocada estão deixando embaixadas vazias para trás, Rússia e China mantiveram abertas suas representações diplomáticas em Cabul.
O que reflete o esforço de ambas para ajudar nas negociações interafegãs e na pacificação do país vizinho. Moscou abrigou várias rodadas de conversações Cabul-Talibã, enquanto a China, no final de julho, recebeu uma delegação do Talibã, com declaração mútua de não-interferência, boa vizinhança e apoio à reconstrução.
Num desdobramento importante, a rede de notícias Al Jazeera anunciou que o ex-presidente afegão Hamid Karzai irá até Doha para discutir com uma delegação do Talibã a transição no Afeganistão, e deverá estar acompanhado pelo líder do Partido Islâmico, Gulbuddin Hekmatyar.
“Apoiamos o apelo do ex-presidente Karzai por esse diálogo, que também deve envolver todos os grupos étnicos, todos os grupos religiosos. Não há outra maneira”, afirmou Lavrov.
“E o fato de que o Talibã em Cabul está declarando e demonstrando na prática sua prontidão para respeitar outras opiniões, eu acho, é um sinal positivo. Assim, eles dizem que estão prontos para discutir um governo que inclua outros representantes afegãos junto com eles”, assinalou o chefe da diplomacia russa.
Nos 20 anos de ocupação dos EUA no Afeganistão, mais de 150 mil afegãos foram mortos e centenas de milhares ficaram feridos e mutilados. 10 milhões foram deslocados de seus lares. A produção de ópio – e, portanto o tráfico – tornou-se recordista mundial. O governo fantoche, criado pela ocupação, derreteu assim que ficou patente que os marines iam embora de vez. A investida custou pelo menos US$ 1 trilhão aos contribuintes norte-americanos.
TALIBÃ DECLARA ANISTIA E PROMETE DIREITOS
O Talibã declarou uma anistia geral para todos os funcionários do governo na terça-feira e os exortou a voltar ao trabalho, dois dias depois de assumir o controle de Cabul. “Uma anistia geral foi declarada para todos”, anunciou o comunicado talibã, instando os servidores públicos a “recomeçarem sua vida rotineira com total confiança”.
Segundo o porta-voz Zabihullah Mujahid, “não haverá combates no Afeganistão de agora em diante e o Talibã não considera ninguém como inimigo”. Ele afirmou que as mulheres “podem trabalhar e estudar com base nos princípios islâmicos”.
Na véspera, em entrevista à CNN, o porta-voz Suhail Shaheen já havia garantido que as mulheres continuariam a ter direito à educação no Afeganistão – o que, se cumprido, será bem diferente do que se viu no primeiro governo talibã.
Shaheen destacou a política para a educação feminina “é clara”. “As mulheres vão poder continuar seus estudos entre o primário e o ensino superior”, afirmou.
Em um sinal dos tempos, um líder talibã, Mawlawi Abdulhaq Hemad, concedeu uma entrevista para a jornalista Behesta Arghand, do canal afegão de notícias. Uma cena inédita: uma jornalista mulher e afegã entrevistando um dirigente do Talibã.
CALMA EM CABUL
O líder do ‘gabinete político’ do Talibã, mulá Ghani Baradar, chegou de volta ao Afeganistão, depois de dez anos, e já está em Kandahar. Ele declarou no domingo que a vitória rápida do movimento sobre o governo fantoche foi um feito memorável, mas que “o verdadeiro teste” para governar com eficácia começaria “agora que havia conquistado o poder”.
Os escritórios do Ministério da Saúde Pública afegão e do município de Cabul foram reabertos na segunda-feira. Wahid Majrooh, ministro interino da saúde pública, pela televisão pediu aos profissionais de saúde que retornassem aos seus postos, incluindo as funcionárias médicas.
Pequenas lojas também foram reabertas em torno de Cabul, enquanto os bancos e centros comerciais permaneceram fechados na manhã de terça-feira.
O embaixador russo Dmitry Zhirnov disse ao canal de tevê Russia-24 que, antes da mudança de poder em Cabul, havia temores de que o Talibã “mergulhasse a cidade no caos e no derramamento de sangue”. “Mas acabou sendo exatamente o oposto”, disse ele. Ele afirmou que o Talibã está se comportando “de maneira responsável e civilizada” na capital.
“Eles querem ter certeza de que não haverá provocações, para evitar tiros. Porque praticamente todo mundo possui armas, até mesmo adolescentes. Parece que eles têm medo de que algo que não aconteça por sua culpa possa lançar uma sombra sobre eles como senhores da situação”.
O diplomata disse ainda, segundo a agência de notícias Tass, que grande parte dos socialmente vulneráveis olha para a mudança de poder “com esperança”. Ele acrescentou que o Talibã tem “tolerância zero” com saqueadores e já prendeu 130.
Por sua vez, o porta-voz do Talibã Mujahid reiterou que a lei e a ordem voltaram à cidade e a ordem da liderança do Talibã a seus membros é “que ninguém pode entrar na casa de ninguém sem permissão. Ninguém deve ter a vida, a propriedade e a honra prejudicadas, mas protegidas”.
Os voos militares de evacuação foram retomados na noite de segunda-feira, após o pandemônio que aconteceu no aeroporto de Cabul, com uma multidão de colaboracionistas querendo de qualquer jeito um lugar rumo ao Ocidente. O que provocou até 40 mortos no aeroporto – segundo a agência de notícias afegãs – ou 10, por outras fontes. Três pessoas simplesmente despencaram de aviões em voo, como registrado em vídeos.
Tropas americanas encontraram “restos humanos” no trem de pouso do avião militar que foi seguido por uma multidão na segunda-feira quando taxeava no aeroporto de Cabul, segundo informou a agência France Press.