“O mais terrível não foi nem comigo. Eram os gritos alucinantes das mulheres na madrugada, vocês não fazem ideia”, contou jogador. “Meu crime foi ser professor”, acrescentou Nando Antunes
Esta semana o cantor Sérgio Reis se juntou a Jair Bolsonaro na pregação fascista da volta da ditadura de 1964. Os dois defenderam a volta do regime que perseguiu os artistas, os atletas, os estudantes, os democratas, os patriotas e todos os que não se sujeitaram à sua truculência e resistiram ao obscurantismo retrógrado que tantos males trouxe ao Brasil.
A ditadura que ambos resolveram enaltecer é a mesma que calou o Congresso, censurou a imprensa, fechou sindicatos, afastou ministros do Supremo, prendeu, torturou e matou muita gente no Brasil. É a mesma que encarcerou e torturou até mesmo Fernando Coimbra, o Nando, irmão de Zico, ídolo do Flamengo, como poderemos ver no vídeo que já circula há algum tempo na internet e que divulgamos abaixo, com a história, pouco conhecida, da prisão e da tortura de um atleta.
Assista ao vídeo
Nando, assim como o caçula, Zico, também jogava futebol. Foi cria da base do Fluminense. Além de jogador, ele também se dedicava aos livros e estudava na Faculdade Nacional de Filosofia.
Ele e a irmã, Maria José, fizeram concurso e foram aprovados em 1963 para o Plano Nacional de Alfabetização (PNA) coordenado pelo educador Paulo Freire. Nando conta que virou professor e deu aula no programa, mas, segundo ele, por pouco tempo, porque “a ditadura considerou todo mundo como subversivo e o programa foi fechado”.
NANDO FOI PRESO PORQUE DEU AULA NO PROGRAMA DE ALFABETIZAÇÃO
Na reportagem, a irmã confirmou o relato de Nando, lembrando que a Faculdade Nacional de Filosofia era um celeiro de pessoas que pensavam o Brasil e buscavam soluções para os problemas do país e que, por isso, irritavam a ditadura.
A mesma ditadura que Bolsonaro e Sérgio Reis agora enaltecem e querem de volta. Não por caso, o Supremo Tribunal Federal acaba de enquadrar os dois num inquérito que investiga o crime de propagar atividades que visem atacar e destruir a democracia brasileira.
Tanto o irmão mais velho, Antônio (Tonico), quanto o próprio Zico, descreveram Nando como um “canhoto extremamente habilidoso com a bola”. “Marcar com ele só na mão”, brincou Antônio Coimbra. “Quando o canhoto é habilidoso é uma tristeza”, acrescentou o irmão mais velho.
Por ter sido professor e ter participado no programa de alfabetização, Nando foi perseguido pela ignorância do regime. Desde os tempos da faculdade Nando era monitorado pela ditadura. A proximidade com a prima, Cecília Coimbra, que teria sido colaboradora do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), fez com que essa perseguição nunca parasse.
BARRADO EM PORTUGAL E DETIDO NO BRASIL
No final dos anos 60, depois de ser transferido do Ceará para Belenenses de Portugal, ele foi afastado e interrogado pelo regime do então ditador Antônio de Oliveira Salazar. Ao chegar ao Brasil, foi preso por cinco dias pelo Dops, acusado de ter ligação com grupos então considerados subversivos. “Botaram a gente no camburão algemados”, conta ele sobre o caminho até os porões do Batalhão da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, no zona norte do Rio.
“Botaram a gente num corredor onde tinha meia dúzia de jaulas, ficamos dois dias inteiros com a mão na cabeça, com a cara na parede. Quando o braço descia de cansaço, vinham com um mosquetão e diziam: ‘Filho da p… vou furar você, levanta esse braço’. Falavam mil abobrinhas, me esculachavam”, contou Nando Antunes. Nos interrogatórios, os militares tentavam arrancar daquele a confissão de que ajudava células terroristas, o que ele sempre negou.
“O mais terrível não foi nem comigo. Eram os gritos alucinantes das mulheres na madrugada, vocês não fazem ideia”, contou jogador. Ele ficou preso por cinco dias. Contou que seus irmãos foram para a porta da PE pedindo para serem presos junto com ele.
Nando ficou preso por cinco dias. Contou que seus irmãos foram para a porta da PE pedindo para serem presos junto com ele
DITADURA DEIXOU ZICO FORA DAS OLIMPÍADAS E EDU FOI CORTADO DA SELEÇÃO DE 70
Nando ficou anos sem contar o que tinha passado nos porões da ditadura e não revelou sua história publicamente por medo de prejudicar a carreira dos irmãos. Mesmo assim, Edu, artilheiro do torneio Roberto Gomes Pedrosa, o campeonato nacional da época, acabou não sendo convocado à Copa de 70. “O Edu não foi convocado e deixou de ser campeão do mundo porque os milicos cortaram ele só por ser meu irmão. O Zico era principal jogador da seleção olímpica e foi cortado porque eu tinha sido preso”, disse Nando.
Em 2003, Nando entrou com um processo e em 2010 foi reconhecido como um perseguido político. Ele foi o primeiro jogador de futebol anistiado no país.
“Meu crime foi ser professor. E tem gente que defende essa p… Vão comemorar com cara amarela de vergonha”, diz ele em referência a notícias de que o presidente Jair Bolsonaro recomendou aos militares que “comemorem” o aniversário do golpe militar. Imaginem o que não estaria pensando hoje Nando quando Bolsonaro e Sérgio Reis não só defendem comemorar a ditadura como inclusive a sua volta.
“Meu crime foi ser professor. E tem gente que defende essa ditadura”
SÉRGIO CRUZ