Marcus Vinicius de Andrade, autor do artigo que hoje publicamos, é uma figura colossal (que me desculpe ele o termo) em sua humanidade e em sua erudição.
Lembro de Marcus, uma vez, falando de Édouard Dujardin – o pioneiro do “monólogo interior”, tão atribuído a James Joyce (o livro de Dujardin, Les Lauriers sont Coupés, de 1888, apareceu 34 anos antes de Ulysses).
O que me espantou foi que um músico – ainda que notável – conhecesse tão bem a literatura.
Porém, Marcus Vinicius é um pensador.
O leitor poderá comprová-lo, pelo texto abaixo. Por isso, não nos estenderemos mais sobre isso, exceto para dizer que Marcus faz um balanço muito importante da cultura brasileira das últimas décadas – e de maneira sucinta, o que é outro mérito.
Aqui, apenas lembraremos alguns pontos da trajetória de Marcus – já publicados por nós há tempos, mas que necessitam ser reproduzidos, pois se avoluma o número de nossos novos leitores (muitas vezes, novos em todos os sentidos – inclusive na idade).
Marcus Vinicius de Andrade é pernambucano, educado na Paraíba, participou do “Grupo Sanhauá”, movimento literário que atravessou a fronteira do Estado.
Violonista, maestro e compositor, Marcus ganhou, em 1967, o primeiro, segundo e quarto lugar da Feira de Música do Nordeste, realizada em Recife, sendo ainda escolhido o “Melhor Autor-Compositor” pelo conjunto da obra apresentada. Foi para o Rio de Janeiro em 1968 e formou, com Geraldo Azevedo e Naná Vasconcelos, um grupo de pernambucanos que se apresentavam em diversos locais. Em 1970, completou o curso superior de música no Instituto Villa-Lobos, onde passou a lecionar. No mesmo período, participou, com Sérgio Ricardo e Sidney Muller, do show “Opção”.
Em 1974, lançou seu primeiro disco, o LP “Dedalus”, seguido de “Trem dos Condenados” (1976) e “Nordestino” (1979).
Foi diretor artístico da gravadora Marcus Pereira, que empreendeu uma importante série de gravações com intuito de preservar a memória musical popular de diversas regiões do Brasil. É autor das peças “Domingo Zeppelin” e “Boca do Inferno”, premiadas em 1975 e 1978 pelo Serviço Nacional do Teatro (SNT).
Compôs trilhas para cinema, como as de “O Evangelho Segundo Teotônio” (Vladimir Carvalho, 1984), “A Hora da Estrela” (Susana Amaral, 1985), “Uma Questão de Terra” (Manfredo Caldas, 1993), “São Paulo, Cidade Aberta” (Caio Plessmann, 2010), e teatro – “Sonho de Uma Noite de Verão” (1984), “O Burguês Ridículo” (1996), “Turandot” (1999).
Em 1997 lançou o CD duplo “Música do Cinema Brasileiro”, com suas composições para diversos filmes.
Hoje, é diretor artístico do Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas (CPC-UMES), em São Paulo.
E, agora, leitores, o artigo de Marcus Vinicius.
C.L.
MARCUS VINICIUS DE ANDRADE
Entre os anos 1930 e 2000, o Brasil viveu o apogeu do processo de afirmação nacional de sua cultura. Tendo atravessado situações políticas diversas, passando por democracia e ditadura, liberdade e repressão, estímulo e castração, a cultura brasileira produzida nesses 70 anos, apesar de tudo, conseguiu sair-se vitoriosa no balanço feito pela história, sendo hoje dada como importante referência por estudiosos do Brasil e do exterior. Foi exatamente a produção cultural desse período que fez o Brasil destacar-se em todo o mundo, notadamente em áreas como a arquitetura, a música, a literatura e o cinema, entre outras.
Entretanto, nos últimos tempos, parece estar havendo um verdadeiro desmanche do que de mais positivo se construiu no país em termos de políticas culturais públicas, o que inevitavelmente afeta e contamina o pensar/fazer cultura no âmbito privado. Para não dizer que estamos à deriva culturalmente, diríamos que, grosso modo, o país está carente de um projeto cultural adequado aos novos tempos. Ainda falamos e discutimos cultura com ideias e modelos de vinte anos atrás.
Ao mesmo tempo em que precisamos rever, e se possível revigorar, as boas experiências que, no passado, fizeram a excelência cultural brasileira, temos que avançar em direção à contemporaneidade, prospectando e planejando o futuro cultural do país em torno de um projeto de nação, de que tanto necessitamos.
BREVE HISTÓRICO PARA REFLEXÃO
Até a década de 1870, quando começaram a ser visíveis os esboços de uma indústria cultural no Brasil, em razão da profissionalização crescente das áreas do teatro e da música, da eclosão das modernas diversões urbanas, da consolidação empresarial do jornalismo impresso e da proliferação das editoras literárias e musicais, etc., as atividades culturais no país dependiam basicamente do empenho de criadores e produtores abnegados, do apoio de eventuais mecenas e, mais raramente, das benesses concedidas pelo Império aos criadores e empreendedores isolados de reconhecida excelência. Na virada para o séc. XX e ao longo das primeiras décadas deste, o advento das novidades tecnológicas disponíveis ao grande público, como o disco fonográfico, o rádio e o cinema, fez com que novas exigências passassem a demarcar o mercado de bens culturais, agora mais coletivizado e menos infenso à lógica artesanal e aos interesses exclusivamente privatistas. Datam dessa época os primeiros esboços do que seriam políticas públicas para a cultura, cabendo citar-se aí a primeira lei brasileira sobre direitos autorais, a lei nº 496 de 1898, de autoria de Medeiros e Albuquerque, da qual já constavam avançados dispositivos, ainda presentes na legislação atual.
A partir do Novecentos, o envolvimento do Estado brasileiro nas questões culturais começou a se fazer sentir com maior ênfase. Em rápida mirada, caberia constatar que o que ainda temos hoje de mais consistente em termos de Política Cultural pública no país seria produto de dois momentos políticos distintos no séc. XX: do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) e – forçoso reconhecer -, do ciclo dos governos militares (1964-1985).
Antes mesmo antes de chegar à chefia suprema da nação, o ainda deputado federal Getúlio Vargas havia feito aprovar o decreto 5.492 (16 de julho de 1928), no qual estabelecia a obrigatoriedade de pagamento de direitos autorais pelas emissoras de rádio e empresas que veiculassem ou incluíssem músicas em sua programação; o mesmo decreto também regulava as empresas de diversões, a contratação dos serviços teatrais e, principalmente, regulamentava a profissão dos artistas de variedades (incluindo palhaços, músicos, malabaristas, coristas, etc.). Isso teve importante significado social, numa época em que as atrizes eram obrigadas a ter cadastro junto à Delegacia de Costumes, tal como as prostitutas, e como estas, sujeitarem-se a exames médicos periódicos. Com Getúlio, os artistas de variedade passaram, quando menos institucionalmente, a integrar a classe trabalhadora brasileira.
Foi mais adiante o Dr. Getúlio Vargas: já Presidente da República, em 1932 promulgou a primeira lei em apoio ao cinema brasileiro, precursora da atual cota de tela, embora então restrita aos filmes documentários; criou, em 1936, o Serviço do Patrimônio Histórico Nacional (atual IPHAN), onde teve colaboradores do porte do Ministro Gustavo Capanema, do diretor Rodrigo Mello Franco de Andrade, dos poetas Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, entre outros; ainda em 1936, instituiu o Serviço de Radiodifusão Educativa, com a colaboração do antropólogo Edgard Roquette-Pinto, ao lado de quem também criou, em 1937, o Instituto Nacional de Cinema Educativo; no mesmo ano de 1937, Vargas criou o Instituto Nacional do Livro, o Serviço Nacional de Teatro e o Museu Nacional de Belas Artes; em 1940, criou o Museu Imperial e absorveu o patrimônio de um contumaz devedor do Estado para constituir a célebre Rádio Nacional, certamente o principal marco de nossa radiodifusão pública; de 1937 a 1944, Vargas ainda deu inestimável suporte para que o maestro e compositor Villa-Lobos desse curso a seu projeto educacional em torno de uma música culta nacional de raiz popular.
Vê-se, portanto, que Vargas concedeu prioridade a todos os itens hoje tidos como essenciais à uma moderna agenda cultural pública, a saber: a defesa do patrimônio artístico e histórico, a proteção da propriedade intelectual, a legitimação profissional dos artistas, a radiodifusão e o cinema educativos, a regularização das atividades teatrais e da difusão de livros e filmes, a criação de museus, etc. Não por outra razão, segundo Angélica Ricci Camargo, especialista do Arquivo Nacional e Mestra em História Social, “o primeiro governo de Getúlio Vargas tem sido considerado como um marco para a implantação de políticas culturais no Brasil.”
Ainda que pareça paradoxal, vê-se que mesmo durante o regime de exceção instaurado em 1964, as prioridades culturais estabelecidas pelo governo Vargas continuaram a fazer parte da agenda dos governos militares, inclusive sendo ampliadas em muitos casos. Foi o que se deu com a criação do Conselho Federal de Cultura (1966); com a criação da Embrafilme (1969), órgão de fomento à produção e à distribuição cinematográfica nacionais; com a criação do Conselho Nacional de Direito Autoral (1975) e a promulgação das leis regulamentadoras dos Direitos Autorais e Conexos; com a criação em 1975, da FUNARTE (que incorporou o antigo Serviço Nacional de Teatro, transformado em Instituto Nacional de Artes Cênicas, INACEN, sendo criado também um Instituto Nacional de Música e outros mecanismos culturais) além de outras iniciativas reconhecida e prioritariamente voltadas para uma Política Cultural pública.
Inevitável constatar que foi entre os anos 1930-2000 que o Brasil criou, divulgou, consumiu e exportou o melhor de sua produção cultural até hoje, tanto em termos de expressões individuais como de iniciativas coletivas: foi essa a época gloriosa de Villa Lobos, de Pixinguinha, de Sinhô, de Caymmi, de Ary Barroso, de Portinari, de Mário de Andrade, de Manoel Bandeira, de João Cabral e tantos outros extraordinários poetas; do grande ciclo do romance brasileiro, com Jorge Amado, Érico Veríssimo, Clarice Lispector, José Lins do Rego e outros; do surgimento das primeiras grandes editoras nacionais e das primeiras universidades públicas do país; da afirmação da consciência do patrimônio cultural público e nacional; da eclosão do Teatro Experimental do Negro, do Teatro de Brinquedo, do Teatro Brasileiro de Comédia, da Companhia Dramática Nacional, da Cinédia e da Atlântida; de Procópio Ferreira, de Oscarito e Grande Otelo; da companhia Tonia-Celi-Autran, do Teatro de Arena de São Paulo com Boal, Guarnieri e Zé Renato; do Teatro Oficina com José Celso Martinez Correa; do CPC da UNE com Vianinha e Leon Hirzschman à frente; do Teatro Popular do Nordeste (criado por Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho); da poesia concreta; de Rubem Gerchmann e Ligia Clark; do Teatro Opinião; do Cinema Novo de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Luiz Sergio Person, Denoy de Oliveira e outros; da bossa nova e da canção engajada, com Tom Jobim, Carlos Lyra, Roberto Menescal, João Gilberto e Nara Leão; do advento da MPB e do Tropicalismo, com Chico, Caetano, Sydney Miller, Geraldo Vandré, Elis Regina e tantos mais. Todos esses criadores, poetas, escritores, músicos, atores, dramaturgos, encenadores e artistas plásticos, integraram ao longo daqueles 70 anos, talvez o momento mais representativo da cultura popular brasileira até os dias de hoje. Julgamos que isso só foi possível porque, mesmo perfilados em correntes estéticas e linhas políticas distintas e até mesmo conflitantes entre si, esses criadores souberam entender o espírito do seu tempo e participar, coletivamente, do grande debate pela afirmação de uma cultura em bases nacionais, o que então mobilizava o sentimento e o pensamento do país.
Mas tudo isso – ou o que restou disso – está sendo desmontado de forma desorganizada, prejudicial e acriteriosa. Assim, o fazer cultural brasileiro, com as honrosas exceções de sempre, vem se afastando das questões urgentes e fundamentais à sociedade, preferindo adotar, como se cultura fosse, o verniz midiático e ligeiro dos discursos das corporações dominantes no mainstream. A isso vem-se reduzindo o debate cultural brasileiro em tempos recentes.
Precisamos agora de cenas explícitas de cultura. Não mais a falação balofa de ativistas de redes sociais, papagaiando frases-feitas supostamente engajadas e progressistas, mas que terminam por levar mais água ao moinho da mesmice dominante. Precisamos não mais de meros enunciados de intenções rasas e genéricas, mas, sim, de efetivos tópicos de ação que nos permitam fazer o desmanche do desmanche praticado em tempos recentes e reabrir o debate cultural do país com base nas reais exigências para nossa afirmação enquanto nação. Afinal, que Cultura queremos para os tempos atuais?