Premiê espanhol apelou para brutal repressão nos locais de votação causando 844 feridos, inclusive idosos e mulheres, violência que causou espanto no mundo inteiro
Após ter empurrado a Catalunha – e sua pérola, Barcelona – para o referendo sobre a separação da Espanha com sua submissão canina desde 2012 ao arrocho da Troika e Berlim (e seus corolários, desemprego recorde, despejos em massa e corte de direitos), assim como a cassação de normas já existentes de autonomia, o governo neoliberal de Mariano Rajoy optou por queimar suas pontes com a população catalã, apelando para brutal repressão policial nos locais de votação no domingo (1º), causando mais de 844 feridos, inclusive idosos e mulheres, violência que causou espanto no mundo inteiro, mas não conseguiu impedir que 2,9 milhões – de 5,3 milhões de eleitores inscritos – confrontassem nas ruas a investida e votassem, 90% a favor. 2,02 milhões votaram “sim”, 176.000 votaram “não” e cerca de 700 mil votos e respectivas urnas foram sequestrados pela polícia.
Antes, Rajoy já deslocara 10 mil policiais para a Catalunha, invadira e depredara centenas de colégios eleitorais, confiscara milhões de cédulas de votação, silenciara 114 sites, prendera autoridades da Generalitat, o governo catalão, e ameaçara de indiciamento 700 prefeitos, com penas de até 15 anos. No domingo, além de espancar e arrastar eleitores para fora das seções eleitorais, a polícia também fez disparos com balas de borracha.
Com 6,3% da área da Espanha, 16% da população e 20% do PIB, a Catalunha é banhada pelo Mediterrâneo e chega até os Pirineus. Barcelona, a maior cidade da Catalunha, sediou as Olimpíadas de 1992 e também tem o clube de futebol mais admirado da atualidade. A taxa de desemprego catalã é de 13,2%, quatro pontos percentuais abaixo do restante do país. A Catalunha também é responsável por um quarto das exportações espanholas, constituindo, com Madri, as duas regiões mais ricas da Espanha.
Aos brados de “votarem (vamos votar)”, e empunhando a bandeira amarela-vermelha catalã, multidões por toda a Catalunha confrontaram nas ruas a polícia de Rajoy. “Fora, forças de ocupação”, tiveram de ouvir os brutamontes. Uma senhora de 64 anos, que esperava na Escola Infantil Jesús para votar, em Barcelona, foi agarrada pelos ombros e braços, arrastada dali e atirada ao chão. A cena, com Maria José Molina com a cabeça sangrando, foi reproduzida intensamente nas redes sociais. Em alguns colégios eleitorais, a tropa teve de sair em desabalada carreira, sob pedradas dos eleitores indignados.
Ao final do dia, o grito das ruas mudara para “hem votat (votamos)!” Não chega a surpreender, vindo do neofranquista Partido Popular, de que Rajoy é líder, que a “democracia”, quando existem contradições de peso, seja na base do cacete.
Até recentemente, cerca da metade da população catalã era favorável à independência, como visto na última eleição, em que as forças políticas adeptas desse desfecho conquistaram 47% dos votos, e a outra metade ainda preferia continuar em comunidade com os demais povos da Espanha. Tratando-se de um país multinacional, com diferentes povos e idiomas, como o catalão, o basco e o galego, o direito à autodeterminação acaba sendo o preceito mais essencial, para garantir uma adesão voluntária e mutuamente proveitosa.
Depois de ser um dos bastiões da República na Guerra Civil Espanhola nos anos 1930, a Catalunha amargou sob a ditadura franquista a proibição do uso do próprio idioma e o esmagamento da sua autonomia. Com a morte do ditador, o acordo nacional que resultou na constituição de 1978 sabiamente avançou para o respeito ao uso do idioma e autonomia das regiões históricas. Naquele ano, os catalães que votaram a favor da manutenção dentro da República espanhola com autonomia equivaleriam, hoje, a 3,4 milhões de pessoas.
Ao aceitar os diktats de Berlim e afundar a Espanha na recessão e desmanche para salvar bancos, Rajoy minou os alicerces do que havia sido construído, ainda que com atalhos como a desmoralizada monarquia, na constituição de 1978. No auge da crise, um em cada quatro adultos e um em cada dois jovens espanhóis estava desempregado. Rajoy aumentou para 67 anos a idade mínima de aposentadoria, arrochou salários, cortou o seguro desemprego, tornou mais fácil demitir e deixou servidores públicos sem aumento e até sem décimo-terceiro.
Quanto à autonomia, o PP cuidou de revogar várias cláusulas da ampliação aprovada em 2006, apelando ao tribunal constitucional, que decidiu contra os catalães em 2010. Assim, foi se abrindo o caminho para que setores catalães que até então inclusive compactuavam com o neoliberalismo resolvessem assumir a cartada da separação.
O governo catalão que convocou o referendo, conforme promessa de campanha de 2015, é constituído pelo Juntos pelo Sim (que agrupa a Convergência Democrática de Catalunha, Esquerra Republicana de Catalunya , Democratas de Catalunha e Moviment d’Esquerre) e o CUP (Candidaturas da Unidade Popular). Um leque que vai desde pró-socialistas até adeptos da Otan e União Europeia. Um integrante do atual governo, Santi Vila, explicou a guinada de certos setores que durante muitos anos deixaram a questão da separação em banho-maria: “se a Catalunha não apresentasse um discurso baseado no nacionalismo, como teria resistido a ajustes de mais de 6 bilhões de euros?”
“PÁGINA VERGONHOSA”
Na noite de domingo, o líder da Generalitat, Carles Puigdemont, classificou a repressão desencadeada por Madri como “uma página vergonhosa” e disse que “com este dia de esperança e sofrimento, a Catalunha conquistou o direito de ser um estado independente na forma de uma república”. A prefeita de Barcelona, Ada Colau, chamou Rajoy de “covarde, que se esconde atrás de procuradores e tribunais, e que hoje ultrapassou todos os limites”. Nesta terça-feira, os sindicatos catalães estão realizando uma greve em defesa da Catalunha. Diante da repercussão – e asco generalizado – à violência de Rajoy, a Generalitat pediu a “mediação” dos países europeus sobre a questão.
Com a União Europeia transformada em uma prisão de povos, sob o tacão de Berlim e ocupação norte-americana, a balcanização da Espanha dificilmente trará avanços na luta pelo progresso e pela soberania. Mas também é evidente que a podre e corrupta monarquia espanhola é cada vez mais uma casca vazia. Os países europeus que se dividiram em estados menores, ao final acabaram fragilizados econômica, política e socialmente, e mais dependentes de Berlim e Washington, como visto na Iugoslávia e Checoeslováquia. Como o divórcio, o direito à autodeterminação é um direito, não uma obrigação à separação, e sempre que a unidade prevalece em um estágio mais elevado, maior é o avanço social. Além do mais, é uma ótima oportunidade para se livrar de uma excrescência como o neoliberal Rajoy.
ANTONIO PIMENTA