(HP 07/09 a 10/10/2012)
“A mim preocupa extraordinariamente a sorte de milhões de trabalhadores, aos quais se diz permanentemente que não é possível reajustar salários porque a crise está às portas. Preocupa meu espírito o futuro desses homens, ameaçados da redução de possibilidades de trabalho. Preocupa a minha consciência o destino do esforço de todos os que trabalham no Brasil nas fábricas, nas lavouras e nos campos”
GETÚLIO VARGAS
Todos sabem que a Confederação das Associações Comerciais do Rio de Janeiro sempre foi altiva e independente. Desejo transcrever o item VI das conclusões do Memorial da Confederação das Associações Comerciais apresentado ao chefe da nação: “Ajustar a política do Banco do Brasil às necessidades da produção e não meramente às necessidades financeiras do Tesouro“.
Mais ainda, o senador Ribeiro Gonçalves declarou, em aparte ao senador Ivo D’Aquino, que: “É tremenda a crise que está atravessando presentemente o comércio de exportação de cera de carnaúba”. Essa crise atinge principalmente o Piauí e o Ceará, que estão reclamando financiamento.
Vários deputados acabam de apresentar na Câmara uma indicação para um inquérito que determine as causas das anormalidades da situação da indústria têxtil, com o objetivo de se tomarem providências que “salvem da crise a indústria têxtil, setor importante da economia brasileira”.
Não me consta que a Confederação das Associações Comerciais esteja encampando pontos de vista de especuladores e, menos ainda, que senadores e deputados de vários partidos, muitos dos quais meus adversários políticos, estejam defendendo pontos de vista de especulação. Não me consta que a criação de uma Comissão Especial de Pecuária na Câmara dos Deputados, para examinar a difícil situação em que se encontram os criadores do Brasil, seja um movimento de especuladores.
Transcrevo, finalmente, um telegrama da Associação Comercial e Industrial de Blumenau:
“A Associação Comercial e Industrial de Blumenau tem a satisfação de levar ao conhecimento de V.Exa. que, reunida em sessão conjunta com representações do comércio e da indústria, estudou com cuidado e atenção a gravíssima situação por que vêm atravessando as nossas classes conservadoras locais, originada pela retenção das operações de descontos de títulos comerciais junto aos estabelecimentos de crédito da praça. Cientificamos V.Exa. de que expedimos telegramas mesmo sentido Sr. Presidente da República, Dr. Nereu Ramos, ministros da Fazenda e Trabalho, presidente Banco do Brasil e nossas representações Senado e Câmara Federal, encarecendo a todos providências urgentes e imediatas para que seja determinado Banco do Brasil local proceder aumento limite para operações descontos títulos de nossas classes conservadoras e determine o redesconto títulos transacionados demais bancos locais. Cientificamos a V.Exa. que fato está causando alarme requerendo por isso providências de nossas autoridades constituídas a fim seja evitada uma possível convulsão social local. Resta-nos assim solicitar a V.Exa. interferir junto demais autoridades solução magno problema que constituirá tranquilidade apreensões existentes e defesa nosso parque industrial seriamente ameaçado. Respeitosas saudações. Joaquim Gonçalves, presidente“.
Será que os comerciantes e industriais de Blumenau também são especuladores? Disse o senador Ivo D’Aquino: “Talvez tenhamos sido imprevidentes e alimentado no espírito uma ilusão que tristemente agora se dilui”.
Eu não estou sendo imprevidente. Chamei a atenção para o reflexo da política monetária sobre os orçamentos. E o ilustre líder do PSD declara, textualmente: “Todos os governantes do Brasil devem ter em atenção que, refreado o surto inflacionista, podem ficar na contingência de, antes de terminado o terceiro semestre [sic] do exercício anual, não estarem em condições de pagar o funcionalismo”.
Está bem claro que o governo sabe para onde caminha. Quando chamei a atenção para a repercussão da crise sobre os orçamentos, quis ser previdente. Mas o governo já sabe que pode ficar na contingência de não ter dinheiro para pagar o funcionalismo. E o ilustre senador Ivo D’Aquino está avisando os governadores dos estados de que isto pode acontecer.
Os sem-trabalho vão aumentar em número. O governo os concita a procurar outras profissões. Quais? Na lavoura, na pecuária? Certamente não, porque lavoura e pecuária estão em crise e sem recurso. Onde? Pouco importa.
Deixamos de ser devedores internacionais para sermos credores internacionais. E isto vejo que entristece profundamente todos aqueles que, durante anos, sempre desejaram o Brasil de sacola na mão, como um pedinte, roto e esfarrapado.
COMBATE
Entretanto, vejamos como se combate a inflação. As emissões levadas a efeito, desde que deixei o governo, tiveram um lastro em ouro e divisas de apenas 44%, enquanto eu deixei a média de 73% de lastro. E, devido a essas emissões, a média geral do nosso lastro baixou de 73% para 67%.
Isto é que é inflação e não deflação. Aumentar o papel-moeda sem aumentar principalmente as nossas reservas em ouro e divisas é o que se chama inflação, inflação verdadeira, inflação real, inflação objetiva.
Não fui eu que criei a inflação. Inflação é esta que se está fazendo sob a máscara da deflação, conseguindo-se apenas reduzir créditos, reduzir os recursos à produção e ocultar, com palavras, uma realidade que já começa a ser dolorosa, sem reduzir os preços, antes pelo contrário, alcançando uma sensível elevação do custo da vida.
Contestem estas cifras. Provem que não é verdade que diminuiu a percentagem de lastro em ouro e divisas sobre a moeda emitida. Provem que os preços não aumentaram. E depois voltem a falar em inflação.
Já mostrei que o déficit orçamentário de 1946 foi o maior de todos os tempos da história econômica, financeira e administrativa do nosso país. Já mostrei, ainda, que a percentagem de lastro em ouro e divisas sobre a moeda emitida baixou de 73 para 67%. E todos sabem que os preços subiram. A literatura sobre inflação continua e agora é que começamos a inflação com déficits orçamentários tão vultosos e com a redução das nossas divisas.
Não desejo me estender mais. O que se está fazendo no Brasil é querer calçar um sapato de criança num gigante. O que se está fazendo é esconder a realidade ao chefe da nação, é pretender intoxicar a opinião pública com palavras que não resistem nem ao tempo nem aos fatos. Não há crise no Brasil. Reina paz em Varsóvia.
COMPLEXO
Vejo, com profunda tristeza, que o que existe por parte de alguns homens em nosso país, arvorados em líderes da economia nacional, é apenas um acentuado complexo contra o trabalhador brasileiro.
Não me preocupam interesses e lucros industriais. Não me preocupam lutas entre grupos que porventura se tenham desavindo. A indústria tem, nesta Casa, seus representantes, e eles que a defendam, caso precise de defesa.
O que se pretende é destruir o valor desse trabalho, reduzir a papel o que é ouro e moeda estrangeira, já incorporados ao patrimônio da nação. O que se pretende é criar o monopólio do dinheiro, destruir todas as iniciativas, sufocar o nosso povo e reduzir os operários a mendigar trabalho.
Não tínhamos, no Brasil, o problema dos desocupados. Eis o que se pretende criar. Uma vez determinada a impossibilidade de desenvolvimento industrial, os operários sofrerão as consequências da crise com o desemprego. Haverá mais oferta de braços do que procura. E os trabalhadores irão, pela fome, pela necessidade imediata e premente, renunciando às conquistas sociais e voltando à situação de escravos dos que possuem dinheiro.
Não é nem pode ser este o programa de um presidente da República do Brasil. Mas é isto o que se está fazendo.
GOVERNO
Ninguém mais do que eu sabe como é difícil governar e fácil criticar. Todos, porém, podem verificar que o que se está fazendo é mais criticar do que governar.
Cito um exemplo claro: todos achamos que a inflação é um mal. O governo investe contra a inflação. O Banco do Brasil faz relatórios contra a inflação. Vejamos os fatos: emite-se na base 44% sobre as divisas e baixa-se o nível do lastro de 73% para 67%. Todos achamos que os orçamentos devem ser equilibrados. Vejamos os fatos: um déficit de 2.600 milhões. Todos achamos que a lavoura e a pecuária devem ser estimuladas e desenvolvidas. Vejamos os fatos: reduzem-se os empréstimos rurais. Todos achamos que se deve combater a alta dos preços. Vejamos os fatos: os preços continuam subindo.
Mas, vamos admitir que meu governo tenha errado. Vamos admitir que a orientação econômica e financeira executada pelo meu ministro da Fazenda seja a causadora de todos os males. Não foi. Estou convencido disso e disso está convencida a Câmara dos Deputados, que elegeu presidente da Comissão de Finanças o ilustre representante do Rio Grande, Sr. Artur de Sousa Costa [ministro da Fazenda de Getúlio (1934 a 1945)].
Mas vamos admitir tudo isso. Pois bem, por que se emitiu mais com menos lastro de reservas e por que continuamos em déficit? Por que não corrigimos esses erros? Se é difícil, se não é possível, não se deve criar na opinião pública a consciência de que o governo sabe que está errado e não pode deixar de errar. Porque o povo não passa a ter uma opinião menos favorável em relação a esse governo, que precisa, como todos, do apoio da consciência popular.
Vejamos, por exemplo, a questão de preços. O governo baixou um decreto congelando todos os preços. Repetiu a tentativa da Portaria nº 36, de 8 de janeiro de 1943, da Coordenação da Mobilização Econômica. Mas a coordenação fez essa portaria como ensaio e eu não arrisquei a autoridade do governo, porque sei que os preços não se controlam nem por decretos, nem com portarias. De qualquer forma, essa ação tinha o objetivo de conter, administrativamente, as tendências para alta. E se foi fazendo o possível, dentro das dificuldades da guerra, que chegou a reduzir nossa eficiência de transporte marítimo a pouco mais de 30%.
Em relação aos tecidos fez-se um acordo, obrigando-se a indústria a fornecer a uma comissão especial um mínimo de 100 milhões de metros por ano na base de preços de custo. Foram fixados esses preços. Em 30 de novembro de 1945, o coordenador, em sua Portaria 424, baixou os preços de todos os tecidos em 10%. A regulamentação e a fiscalização dessa portaria ficaram a cargo da Comissão Executiva Têxtil. Leia-se o Diário Oficial de 1º de dezembro de 1945. A Cetex assumiu, portanto, essa responsabilidade. Mais ainda: regulamentou a portaria do coordenador em Resolução nº 16, de 10 de dezembro de 1945, publicada no Diário Oficial de 15 de dezembro do mesmo ano. Ficou, assim, com o encargo de fiscalizar a redução de preço. Isto foi feito? Positivamente não!
O ilustre senador que me contestou declara que a Comissão Executiva Têxtil não tinha o controle dos preços. Estou documentando que minha afirmação era verdadeira.
Depois o governo criou a Comissão Central de Preços e congelou todos os preços das utilidades, pelo Decreto-Lei nº 9.125, de 4 abril de 1946. Como foi cumprida essa determinação? A Cetex ficou com a competência exclusiva até recentemente, quando o atual vice-presidente da CCP interveio na matéria e determinou a marcação dos preços de fábrica. Não desejo discutir mais este assunto. Apresento as provas do que disse e estou convencido de que o vice-presidente da CCP, dentro de pouco, transferirá suas armas e bagagens para outro setor, porque teve a petulância de pretender impedir o sacrifício do povo, que se está fazendo com o monopólio dos frutos da famosa árvore benfazeja já não só em sombras e flores.
Insisto num ponto: há um complexo contra o trabalhador brasileiro. Acham que ele não deve ser operário nas fábricas, que o Brasil não deve ter indústria, que é indispensável destruir toda e qualquer possibilidade de trabalho fora dos campos. O Brasil, no conceito desses homens, deve ser uma nação essencialmente agrícola. O operário deve mudar de profissão, pelo que pretendem, ou então voltar ao regime da escravatura.
No momento em que a Argentina, sem energia hidrelétrica, sem carvão, sem ferro, sem a riqueza fantástica de matérias-primas que o Brasil possui, se lança num programa ativo de industrialização, nós devemos voltar atrás. E o operário deve desaparecer.
Não vejo como se consegue baixar o custo de vida elevando o preço do dinheiro. O resultado de uma política de elevação do preço do dinheiro pode ser imediatamente o de uma baixa nos preços dos estoques e, portanto, uma perda de substância para a indústria, o comércio, a lavoura e o orçamento. Mas fatalmente representará, logo que se liquidarem os estoques, uma elevação do custo da produção.
Há ainda um fenômeno de excepcional importância, que se está processando: é o desânimo dos produtores. Desânimo tanto mais grave quanto coincide com as possibilidades de importação de maquinismos. Muitas empresas, na atual situação, não se aventuram a uma tarefa tão ingente. E muitas outras já não mais possuem os recursos indispensáveis a uma reforma de instalações.
Quem sofre, mais do que o empregador, é ainda o operário, que vê desaparecer a possibilidade técnica de melhorar seu nível de vida através do trabalho em máquinas de maior produção e eficiência.
E a mim preocupa extraordinariamente a sorte de milhões de trabalhadores, aos quais se diz permanentemente que não é possível reajustar salários porque a crise está às portas. Preocupa meu espírito o futuro desses homens, ameaçados da redução de possibilidades de trabalho. Preocupa a minha consciência o destino do esforço de todos os que trabalham no Brasil nas fábricas, nas lavouras e nos campos. São Paulo sofre e eu sofro com São Paulo.
(continua)