(HP 07/09 a 10/10/2012)
O último dos discursos de Getúlio Vargas no Senado, a 3 de julho de 1947, é a mais acabada formulação do nacional-desenvolvimentismo, até aquele momento, no Brasil. Em seguida, Getúlio iniciaria um período de reflexão, recolhido a São Borja, até fevereiro de 1949, quando concede a Samuel Wainer sua conhecida entrevista para os Diários Associados, de Assis Chateaubriand.
Faremos, aqui, apenas algumas breves anotações.
Esse último discurso senatorial é uma crítica demolidora à política econômica do governo Dutra, capitaneada pelo presidente do Banco do Brasil, Guilherme da Silveira, depois ministro da Fazenda (Silveira, médico por profissão, três vezes presidente do BB e uma vez ministro da Fazenda, é frequentemente confundido com seu filho, engenheiro com o mesmo nome, conhecido popularmente como Silveirinha e com posições mais próximas do nacionalismo – o primeiro Silveira fora sócio dos ingleses na indústria têxtil; tanto um quanto outro foram proprietários da Companhia Bangu de Tecidos e principais beneméritos do Bangu Atlético Clube, originalmente fundado pelos ingleses).
O discurso de 3 de julho também é um rompimento com Dutra, embora Getúlio o mantenha no campo dos iludidos – o que, provavelmente, corresponde à verdade.
É interessante como ele qualifica o resultado da política econômica: “Uma crise estranha, uma crise de encomenda, uma crise incrível, uma crise pré-fabricada” (grifos nossos).
Getúlio observa que a “tendência internacional, especialmente dos Estados Unidos, é no sentido de redução do valor do dólar (…) para favorecer as suas exportações. A tendência observada no seio do governo é aumentar o valor do cruzeiro para dificultar as exportações em geral“.
O que significa, também, facilitar as importações. Não são novidade, portanto, as manipulações do câmbio para favorecer cartéis e monopólios externos, com o subsídio cambial no preço das mercadorias importadas, contra a produção nacional. O neoliberalismo apenas tornou essas manipulações mais trapaceiras, ao chamar isso de “câmbio flutuante”.
[Porém, em 1947, nem mesmo o FMI pregava que as taxas de câmbio não deviam ser administradas pelos Estados nacionais – a proposta “livre cambista” fora derrotada três anos antes, na Conferência de Bretton Woods, depois da intervenção de John Maynard Keynes. Este, aliás, era mais radical – não por considerar importante o desenvolvimento dos países dependentes, mas para tentar impedir a crise nos países centrais. P. ex., em documento preparatório da Conferência de Bretton Woods, Keynes afirmou: “Eu compartilho da visão de que o controle de movimentos de capital, tanto para dentro como para fora, deve ser um traço permanente do sistema do pós-guerra” (cf. João Sicsú e Carlos Vidotto (org)., “Economia do Desenvolvimento – Teoria e Políticas Keynesianas”, Campus/Elsevier, 2008, pág. 25).]
Há um aspecto, inclusive, inovador, pela ênfase, em relação a outros pronunciamentos de Getúlio – a estrada de mão dupla que estabelece entre desenvolvimento econômico e defesa nacional:
“Desejo acentuar que a preocupação máxima do meu governo foi a defesa nacional. (…) As nações se dividem em duas categorias: as que podem dar canhões e as que só podem dar carne para canhões. Prefiro ver o povo brasileiro inscrito na categoria das primeiras, mesmo desejando ardentemente uma paz que quase nunca de nós depende. (…) Cada soldado na linha de frente exige o trabalho de dez operários na retaguarda”.
Naturalmente, a questão de fundo é a superação, pelo Brasil, do cerco ou bloqueio ao desenvolvimento, efetuado pelos monopólios e cartéis imperialistas:
“Posso dizer, como Horácio, que ergui um monumento mais duradouro do que o bronze: é Volta Redonda, a única organização do mundo que se acha fora do truste internacional do aço” (grifo nosso).
Por último, uma questão que anda, infelizmente, na moda em alguns gabinetes. Getúlio, diante da algaravia sobre a “redução de custos” – que sempre recai sobre os salários, na suposta “competitividade” dos aproveitadores (e dos tolos) – pronuncia uma denúncia definitiva, ligando a questão com aquele combate de fancaria à inflação que serve apenas para destruir o país – sua produção – e tornar obesos os bancos:
“Nega-se ao trabalhador uma parcela de dinheiro para reajustamento de seus salários alegando-se que isso afetará o custo da produção. Mas aumenta-se a parcela de juros do dinheiro (…). O custo da produção não baixa. Antes pelo contrário: com a redução de meios para desenvolver-se, esse custo aumenta cada vez mais“.
O discurso de 3 de julho de 1947 é um dos documentos mais importantes da vida de Getúlio – e um dos mais importantes da nossa História. Talvez por isso mesmo, foi um dos mais tumultuados, em vista da reação governista no Senado. A princípio, ele seria uma resposta ao pronunciamento do líder do governo, o senador catarinense Ivo D’Aquino, do PSD, sobre os discursos anteriores do ex-presidente. Mas houve fila, naquele dia, na tribuna de apartes do Senado. Na edição que apresentamos, retiramos os apartes devido à dolorosa mediocridade deles em matéria econômica (inclusive os apartes do senador paraibano José Américo de Almeida, hoje tão incensado por certa historiografia).
Mesmo assim, o texto restou algo maior do que previmos. Mas não vamos sonegar ao leitor o prazer de lê-lo apenas por causa do tamanho: não somente pelo conhecimento histórico; antes de tudo, pelo que esse texto tem de atual.
Com a publicação desse discurso – na edição de hoje e nas duas seguintes – encerramos a primeira série de escritos e pronunciamentos econômicos de Getúlio Vargas. Mas voltaremos, mais adiante, assim que conseguirmos organizar outra parte desse abundante material.
C.L.
GETÚLIO VARGAS
Disse, desde o primeiro momento, que meu objetivo era colaborar para a solução do problema econômico nacional, unir o meu esforço e a minha experiência ao vosso saber, à vossa competência.
O ilustre líder do PSD, senador Ivo D’Aquino, declarou que eu partira de premissas errôneas e que, portanto, minhas conclusões deviam ser falhas. É verdade. O senador Ivo D’Aquino mostrou, em seus discursos, que minhas premissas eram errôneas. De fato, não imaginava eu que o governo estivesse empenhado numa deflação. Até dias atrás sabíamos que a política monetária do governo não tinha essa diretriz. Sabíamos que o governo estava empenhado em reduzir as emissões. E esse programa salutar, traçado, como bem mostrou o nobre senador Ivo D’Aquino, pelo meu governo e, infelizmente não executado, também não estava sendo executado pelo emérito presidente da República. Mas reduzir as emissões não significa fazer deflação. E eu ainda não aprendi como fazer efetiva e eficientemente deflação sem se alcançar o equilíbrio orçamentário. Estou aprendendo agora, juntamente com muitas outras coisas.
Estava eu convencido da concentração dos esforços do governo para aumentar a produção. E, ainda, da conjugação de todas as energias para se alcançar o bem-estar do povo. Tendo conhecimento da formação de uma crise em São Paulo, achei que era meu dever, desde que os paulistas se lembraram de mim, mostrar como era profunda minha gratidão e acudir em defesa da economia de São Paulo, alertando o governo, que eu supunha desconhecer a realidade. Sei, por experiência, que em torno dos presidentes se formam cortinas de fumaça e os ambientes palacianos são quase sempre risonhos e felizes. Choveram os protestos. Não há crise, declarou o Sr. Ministro da Fazenda. Isto significa, bem claramente, que, para o mundo oficial, a crise não existia.
Mais uma vez eu partia de uma premissa errônea. Observando os reflexos da orientação financeira nas massas trabalhistas, eu me limitara a focalizar o problema do operariado paulista, sem trabalho e buscando meios de sobreviver. Estava longe da realidade. A crise se estendia do Amazonas ao Chuí. Uma crise estranha, uma crise de encomenda, uma crise incrível, uma crise pré-fabricada.
Todos os homens que sentem a responsabilidade de um mandato sabem que têm deveres em relação aos que os elegeram. E todos os que nos elegeram pensam de uma só forma: deixar de emitir é uma necessidade, mas a deflação violenta é um perigo. E ainda mais: a retração de crédito é uma catástrofe.
Pensávamos todos, no Brasil, que o louvável esforço em se controlar o ritmo emissionista não significaria a drenagem de todos os recursos destinados à produção para o Banco do Brasil poder atender a despesas do governo. O que estamos verificando, porém, é apenas isso. Todos os bancos reduziram suas operações. O Banco do Brasil continua retirando da circulação destinada à produção tudo o que consegue. E os pecuaristas, os agricultores, os industriais, os comerciantes, os construtores, todos enfim que produzem, só têm o caminho do desespero. Três grandes portas estão abertas: moratória, concordata, falência. As demais se fecharam.
E eu perdendo meu tempo, mergulhando num oceano de cifras para provar que a política monetária estava causando precisamente o que se queria alcançar!…
INDUSTRIALIZAÇÃO
Na verdade, se, como verifiquei, o programa do governo é desencadear, com a restrição de meios de pagamento tão violenta, uma perturbação econômica e financeira, não precisa de mais nada para ter a segurança do seu êxito. De minha parte, continuo achando que não pode ser programa de governo algum quebrar a pecuária, arruinar a lavoura, fechar fábricas, aniquilar o comércio e criar o problema do desemprego. Acho de toda a conveniência que as correntes políticas responsáveis pela vida da nação se definam em face dessa orientação, por seus líderes autorizados. Precisamos dizer ao povo se estamos de acordo com a restrição de créditos, o cerceamento à liberdade de comércio, de produção, e a destruição do direito ao trabalho.
Precisamos dizer ao povo se estamos apoiando uma orientação monetária que não permitirá aos governos estaduais o pagamento do funcionalismo dentro de 90 dias, como declarou o nobre senador Ivo D’Aquino.
Mas não nos devemos limitar ao estudo do problema de créditos para a produção. Temos algumas questões vitais que dependem do nosso pronunciamento. Uma delas é a que se relaciona com o valor internacional do cruzeiro, ou com o padrão-ouro. O governo tinha liberado o câmbio, abandonando toda e qualquer restrição cambial, criando, porém, uma retenção de 20% do produto das exportações, que eram pagos em Letras do Tesouro. Agora volta à política de câmbio da “malfadada ditadura”, arrematando 30% das cambiais pelo preço que bem entender e baseado numa lei ditatorial anterior à Constituição e, portanto, ao sistema democrático. Mas não aboliu a retenção de 20% das cambiais; o que justificou essa retenção de 20% foi a liberdade de câmbio. Desaparece a liberdade e permanece a retenção. A tendência internacional, especialmente dos Estados Unidos, é no sentido de redução do valor do dólar em face do ouro, para favorecer as suas exportações. A tendência observada no seio do governo é aumentar o valor do cruzeiro para dificultar as exportações em geral.
Existe, finalmente, outro problema básico, que tanto se tem focalizado nos últimos meses e especialmente nos últimos dias: se o Brasil deve ou não ser uma nação industrial. Devo distinguir que industrialização não significa o abandono da produção rural. Algumas nações só podem viver pela atividade industrial, como a Bélgica, porque seus campos não são suficientes para alimentar o povo. Aliás, quase todas as nações da Europa se encontram nessa situação, com maior ou menor concentração de habitantes por hectares. O Brasil pode, ao mesmo tempo, ser como é, nação pastoril, agrária, produtora de matérias-primas vegetais e minerais e, finalmente, industrial.
Economicamente, é uma das nações mais completas do mundo. Limitar a atividade de uma nação que se encontra entre as três primeiras do mundo como potencial de energia hidrelétrica e jazidas de ferro, limitar essas energias à vida rural significa dar provas de incapacidade e de mentalidade colonial.
Desejo acentuar que a preocupação máxima do meu governo foi a defesa nacional. Justamente pensando na defesa da nossa pátria é que procurei executar os conselhos dos nossos técnicos militares na reestruturação das nossas forças armadas, criei fábricas militares, arsenais e, por fim, pensei que a experiência da Primeira Guerra Mundial seria suficiente para demonstrar a necessidade de uma retaguarda industrial. A Segunda Guerra veio provar o acerto de nossa orientação. A indústria da Inglaterra, a dos Estados Unidos, a do Canadá decidiram o destino dos povos com o milagre da produção.
A industrialização é o anseio de todos os povos, porque a indústria representa a fase mais elevada da civilização. Todas as nações do mundo pensam no desenvolvimento industrial e poucas possuem os meios que o Brasil tem. As nações se dividem em duas categorias: as que podem dar canhões e as que só podem dar carne para canhões. Prefiro ver o povo brasileiro inscrito na categoria das primeiras, mesmo desejando ardentemente uma paz que quase nunca de nós depende.
Cada soldado na linha de frente exige o trabalho de dez operários na retaguarda. Por isso, a própria agricultura se industrializa. Nós estamos apenas no limiar de nossa estrada de industrialização e já acham que caminhamos muito.
É lamentável, profundamente lamentável, essa mentalidade que só pode ser originada do que chamei de “complexo contra o trabalhador brasileiro”. Como se combater o pauperismo sem a valorização do trabalho? Como se valorizar esse trabalho sem eficiência? Como se alcançar a eficiência sem a multiplicação do valor do homem pela energia da máquina? Se me apresentassem um programa de mecanização da lavoura para se intensificar nossa produção agrícola, eu o aplaudiria com entusiasmo. Se me apresentassem um programa de revigoramento de todas as nossas energias de produção, não pouparia minha solidariedade. Mas o que se esboça, além de ser a desordem econômica, é algo de mais grave e profundo: é a destruição da retaguarda de nossa defesa.
Meu governo havia feito uma grande encomenda de máquinas agrícolas. Não a fiz antes por causa da guerra. No entanto, foi cancelada depois que deixei o governo.
Exército, Marinha e Aeronáutica, sem a retaguarda industrial, representam apenas um conjunto heroico de técnicos sem material.
À testa dessa luta [contra a industrialização] se encontram nomes que se destacam por suas atividades como representantes de trustes internacionais, que sempre combateram a criação da siderurgia no Brasil, ou então que sempre lutaram contra a exportação do carvão nacional, ou que pretenderam entregar nosso ferro e o Vale do Rio Doce a grupos estrangeiros.
IMPORTAÇÕES
Mais cedo do que pensava o governo, veio a resposta dos produtores desesperados, desmentindo, com seus apelos, o espírito de Pangloss [N.HP: personagem de Voltaire em “Cândido”: caricatura de Leibniz e sua filosofia, segundo a qual, “sempre vivemos no melhor dos mundos possíveis”]. Não vou pedir a inserção nos anais de todos os telegramas, de todas as entrevistas, de todas as declarações de produtores em torno do sofrimento a que estão condenados.
(continua)