A Medida Provisória 808, editada com o intuito de atenuar os pontos mais cruéis da “reforma trabalhista” que entrou em vigor em novembro do ano passado, caducou nesta segunda-feira, 23. Com isso, a regulamentação acerca do trabalho intermitente, de gestantes e lactantes, da jornada de 12×36, indenização por dano moral, dentre outros pontos voltam a valer integralmente, permitindo os maiores absurdos.
Para o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), juiz Guilherme Feliciano, “a caducidade da MP por decurso de prazo representa claro descaso para com a preservação do patrimônio jurídico social legado pela Constituição Federal de 1988 e confirma o epílogo funesto do processo de desconstrução do Estado Social que segue caminhando, agora com braços abertos para a própria tese do ‘enxugamento’ da Justiça do Trabalho, que já volta a ser entoado por parte da grande mídia. O cidadão deve estar alerta para isto”, observa.
À época da votação do projeto de lei, quando toda a população se mobilizou em duas greves gerais e manifestações em Brasília, algumas centrais preferiram “negociar” com o governo, desmobilizando a revolta popular contra o projeto em troca dessa “MP”, que apenas amenizaria a reforma. Nem isso foi garantido.
“A reforma trabalhista, piorada com a caducidade da MP 808/2017, atinge direitos básicos do trabalhador, como a indisponibilidade absoluta dos direitos sociais fundamentais do art. 7º da Constituição – exceção feita às questões de jornada, de irredutibilidade salarial e de turnos ininterruptos – e o direito pleno e irrenunciável a um meio ambiente do trabalho equilibrado”, aponta Feliciano.
Dentre os principais pontos que a MP alterava está o trabalho de gestantes e lactantes em locais insalubres: a medida previa que só poderiam trabalhar nestas condições as gestantes e lactantes que quisessem e, para tanto, apresentassem laudo de médico de sua confiança que o permitisse. Agora volta a ficar a cargo do médico do patrão o laudo para que a trabalhadora permaneça exercendo atividade insalubre durante a amamentação ou gravidez.
Outro ponto que a reforma atenuava, e cuja versão original está em completa discordância com a Constituição, é a indenização por danos morais, que volta a ser calculada com base no salário do trabalhador ofendido. Ou seja, cria-se assim uma discriminação dos trabalhadores por nível de renda, como se o dano pela afronta à sua dignidade pudesse ser mensurado pelo seu salário.
Sem a medida, cai também a quarentena de um ano e meio para que empregadores possam trocar contratos regulares por intermitentes (sem jornada fixa estabelecida, quando o trabalhador recebe por hora trabalhada sem qualquer garantia de que haverá um mínimo de horas por mês).
Também deixa de ser obrigatória a necessidade de acordo ou convenção coletiva para estabelecer a jornada conhecida como “12 por 36”, quando o empregado trabalha 12 horas num dia e descansa pelas próximas 36 horas: a Lei 13.467/17 permite a prática mediante acordo individual escrito.
Para a Anamatra, também agrava-se ainda mais o cenário de insegurança jurídica inaugurado pela reforma: “Muito se tem falado sobre a redução do número de ações trabalhistas após a reforma, como se aí houvesse um grande ganho; mas pouco se fala a respeito das razões desta redução. O acesso à Justiça foi tolhido com a edição da lei, notadamente em virtude da gratuidade judiciária fictícia que passou a prever – ponto que foi, inclusive, questionado no Supremo Tribunal Federal pela própria Procuradoria-Geral da República, estando pautado para o início de maio -, aliada ao novo regime de sucumbência honorária. Muitos trabalhadores agora temem procurar a Justiça do Trabalho por variados motivos, entre eles o temor de sair com dívidas e, por outro lado, o medo do desemprego, em um mercado de trabalho que se torna cada vez mais precário”, explica Feliciano.
O magistrado também denunciou a forma como a MP foi concebida, com tramitação em tempo recorde do respectivo no PL 6.787 na Câmara dos Deputados e depois no Senado da República, já sob a promessa do Governo de que as inconstitucionalidades e os excessos seriam corrigidos via vetos e/ou medida provisória. “Entretanto, não houve vetos quaisquer e a MP editada pela Presidência da República, no apagar das luzes de 2017, agora serve apenas como argumento para que o Governo diga que ‘cumpriu a sua parte’”, critica.