Nelson Freire, o maior pianista brasileiro e um dos mais importantes representantes da música erudita mundial, morreu na madrugada da segunda-feira, dia 1º de novembro, em sua casa, no Rio de Janeiro, aos 77 anos. A causa da morte não foi divulgada.
Já tinha quase terminado esse obituário, discorrendo sobre o talento e a trajetória de Nelson Freire, quando me deparei com o depoimento ao Estadão do cineasta João Moreira Salles, que em 2003 produziu o documentário “Nelson Freire”, que mostra o cotidiano do artista e também a infância e as dificuldades enfrentadas pela família para que ele tivesse a formação que o seu talento exigia.
As palavras de João Moreira Salles são tão expressivas sobre o significado de Nelson Freire e sobre o trágico momento vivido pelo nosso país, que resolvi, como se diz popularmente, mudar o rumo da matéria e apresentar ao leitor logo em primeira mão a fala de Salles.
“Os documentários que eu vinha fazendo até então tratavam de desordem, de violência e de desagregação. Tive vontade de filmar o contrário daquilo e Nelson foi o caminho. Ele encarnava valores de um humanismo essencial a todo projeto de civilização decente – a transmissão da beleza, o imperativo moral do trabalho bem feito, a recusa a toda vulgaridade e espalhafato. Um presidente que tira a máscara de um bebê e força uma criança a fazer uma arma com as mãos é uma imagem verdadeira e poderosa do País. Mas não é a única. Nelson Freire (o pianista, não o filme) representava e representa – nos discos, nos registros dos concertos, na vida discreta que levou – uma outra face do Brasil, o lado capaz de nos salvar. Seu talento não está ao alcance da maioria de nós, mas a honradez, sim”, afirmou João Moreira Salles.
Dito isto, prossigo, descrevendo um pouco sobre a trajetória desse talento precoce, que na cidade de Boa Esperança, no Sul de Minas, causou espanto na família quando, aos 3 anos, após ouvir a irmã mais velha que estudava piano, se sentou de frente para o instrumento e repetiu o que a irmã interpretava.
Aos cinco anos Nelson Freire fez seu primeiro recital, no teatro municipal de São João Del Rei, fazendo com que a família decidisse se mudar para o Rio de Janeiro para que ele pudesse receber aulas com músicos renomados, como as pianistas Nise Obino e Lúcia Branco.
Após a primeira premiação, aos 12 anos, quando conquistou o nono lugar no Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro ao interpretar o primeiro movimento do “Concerto Imperador”, de Beethoven, e ganhar do governo Juscelino Kubitschek uma bolsa para estudar em Viena, o caminho para conquistar os mais importantes palcos do mundo não teve mais volta.
Com 15 anos já dava os primeiros concertos, com 19 conquistou o primeiro lugar no Concurso Internacional Vianna da Motta, em Lisboa, e ao se apresentar com a Orquestra Filarmônica de Nova York, aos 24 anos, a revista Times escreveu: “um dos maiores pianistas desta ou de qualquer geração”.
Consagrado, considerado pela crítica europeia um dos maiores intérpretes de Beethoven e Chopin, Nelson Freire atuou junto aos maiores regentes do século 20 e 21, e se apresentou em palcos de cerca de 70 países com as maiores orquestras do mundo.
Em 2007, Nelson Freire recebeu o prêmio Classic FM Gramophone Awards, considerado o “Oscar” da música clássica. Em 2019 foi agraciado com o International Classical Music Award pelo conjunto de sua obra, entre tantos outros prêmios que recebeu ao longo da carreira.
Acreditando que música só acontecia diante do público, ao vivo, se recusou a gravar durante muito tempo, mas a partir de 2001 lançou grandes discos, como os dedicados à obras de Chopin, Beethoven, Debussy, Robert Schumann, Heitor Villa-Lobos e Johannes Brahms.
Mas mesmo consagrado mundialmente, ao retornar em 2015 à cidade onde nasceu para um concerto histórico com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, que reuniu na praça de Boa Esperança mais de 7 mil pessoas, Nelson disse: “a raiz mineira não te solta. Nem que você queira. Mas a gente não quer. A alma mineira, como dizia Carlos Drummond de Andrade, é algo para toda a vida”.
Segundo reportagem do jornal Estado de Minas à época, muito emocionado após a apresentação para uma multidão de pessoas que assistiam a um concerto pela primeira vez na vida, Nelson disse: “espero que sirva de incentivo para as pessoas pensarem mais nas artes, na música e ficarem menos materialistas, porque isso faz muita falta e bem ao ser humano. A música é uma linguagem maravilhosa, universal”, comentou o pianista.
ANA LÚCIA