Em nota de repúdio, a SBPC denunciou que Bolsonaro está “agindo como censor da pesquisa, sem o devido respeito à verdade científica e à diversidade”
Depois que Jair Bolsonaro revogou a condecoração com a Ordem Nacional do Mérito Científico, recebida pelo infectologista Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, por este ter comprovado a ineficácia terapêutica apregoada pelo Planalto contra a Covid-19, outros cientistas brasileiros devolveram a homenagem. A condecoração premia personalidades que deram contribuições relevantes para a ciência e a tecnologia.
Cesar Victora, da Universidade Federal de Pelotas, recusou o título da grã-cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico. “A homenagem oferecida por um governo federal que não apenas ignora, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva não me parece pertinente”, disse Victora em carta aberta.
Na carta ao ministro Marcos Pontes, Cesar Victora manifestou seu protesto contra as atitudes tomadas pelo governo em relação à ciência. “Como cientista e epidemiologista, tenho tornado pública, através de palestras e artigos científicos, minha completa oposição à forma como a pandemia de COVID-19 tem sido enfrentada por esse governo”, acrescentou.
Leia a íntegra da carta:
“Exmo. Sr. Ministro Marcos Pontes,
Tomei conhecimento no último dia 3 da publicação no Diário Oficial informando minha promoção desde o grau de Comendador da Ordem do Mérito Científico, distinção a mim conferida em 2008, para o prestigioso grau de Grã-Cruz da mesma ordem.
Embora a distinção represente um importante – e talvez o maior – reconhecimento para qualquer cientista brasileiro, ela me deixou dividido.
A homenagem oferecida por um governo federal que não apenas ignora, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva, não me parece pertinente.
Como cientista e epidemiologista, tenho tornado pública, através de palestras e artigos científicos, minha completa oposição à forma como a pandemia de COVID-19 tem sido enfrentada por esse governo.
Mais ainda, enquanto cientista não consigo compactuar com a forma pela qual o negacionismo em geral, as perseguições a colegas cientistas e em especial os recentes cortes nos orçamentos federais para a ciência têm sido utilizados como ferramentas para retroceder os importantes progressos alcançados pela comunidade científica brasileira nas últimas décadas.
Escrevi o texto acima antes de ficar ciente de que as indicações de dois colegas cientistas com posições críticas ao governo federal foram tornadas sem efeito, conforme o Diário Oficial de 5 de novembro. Tal atitude somente reforça minha decisão de não aceitar a distinção a mim oferecida.
Atenciosamente,
Cesar Victora”
Professor Emérito
Programa de Pós-graduação em epidemiologia
Universidade Federal de Pelotas
No mesmo ato em que Bolsonaro cometeu a truculência contra Marcus Vinicius Guimarães e concedeu a si próprio o título de Grão-Mestre, o mais alto da Ordem Nacional do Mérito Científico, ele também retirou da lista de homenageados a sanitarista e ex-diretora do departamento de HIV/Aids do Ministério da Saúde, Adele Schwartz Benzaken, exonerada pelo seu governo.
O infectologista Marcus Vinícius de Lacerda é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e coordenou o estudo no Amazonas que concluiu que o uso da cloroquina não é eficaz para a Covid-19. Lacerda também se manifestou abertamente contra o uso do medicamento e foi vítima de ameaças.
ADELE SCHWARTZ BENZAKEN
Já Adele Schwartz Benzaken, hoje diretora da Fundação Oswaldo Cruz Amazônia, era diretora de DSTs e Aids do Ministério da Saúde desde o governo Temer, quando foi demitida em janeiro de 2019. Quando no cargo, a médica sanitarista, que tem atuação internacional na área de doenças transmissíveis, autorizou a produção de uma cartilha dirigida a homens trans.
Os nomes de quem receberia as homenagens entram numa lista escolhida por um comitê científico. O colegiado é formado por três membros da Academia Brasileira de Ciências (ABC), três da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e três de livre escolha do ministro da Ciência e Tecnologia. Bolsonaro afrontou a comunidade científica ao interferir na decisão do colegiado e provocou protestos dos outros condecorados.
SBPC
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) também repudiou a cassação dos títulos concedidos aos cientistas. Segundo a entidade, “seus nomes foram propostos, seguindo as normas do decreto que regula a condecoração, por uma comissão técnica na qual a SBPC e a ABC eram majoritárias”.
“Fica evidente que o governo federal fez a cassação depois de saber que os dois cientistas renomados conduziam pesquisas cujos resultados contrariavam interesses de políticas governamentais, agindo como censor da pesquisa, sem o devido respeito à verdade científica e à diversidade”, ressalta a SBPC.
PAULO SÉRGIO LACERDA BEIRÃO
O Prof. Dr. Paulo Sérgio Lacerda Beirão, professor de Bioquímica da UFMG, também se dirigiu ao ministro da Ciência e Tecnologia em protesto contra o desrespeito de Bolsonaro aos cientistas. “Tomei conhecimento ontem da grande honraria que me foi concedida com a promoção para a classe de Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico. Essa é, sem dúvida, uma grande honraria nacional, o que fica evidente pelas personalidades que já foram com ela homenageadas no passado e, também, pelos ilustres pesquisadores que foram distinguidos no presente ato”, disse o professor.
“O fato de ter sido indicado por uma comissão de alto nível responsável por esta escolha em muito me engrandece”, prosseguiu. “No entanto”, destacou o pesquisador, “ao tomar conhecimento da exclusão arbitrária e autoritária de dois ilustres agraciados, exatamente pelo motivo de terem praticado a boa Ciência que, por isto, desagradaram o atual ocupante do palácio do planalto, torna a minha presença entre os agraciados muito desconfortável para mim. Sendo assim, por imperativo de consciência, venho solicitar a exclusão do meu nome dentre os agraciados”.
LUIZ FELIPE ALENCASTRO
O historiador Luiz Felipe de Alencastro, agraciado pela comenda em 2001, foi outro pesquisador que também anunciou nas redes sociais que é mais um agraciado que renunciaria à homenagem, como forma de protesto. A concessão do título de comendador, o segundo mais importante na ordem do mérito científico, estava na gaveta do Ministério da Ciência e Tecnologia desde 2019. Bolsonaro cometeu essa truculência absurda contra os cientistas brasileiros porque o governo não tem como interferir no colegiado acadêmico que decide as premiações.
ADESÃO EM MASSA AO PROTESTO
Outros 21 profissionais que seriam agraciados com a honraria aderiram ao protesto e decidiram renunciar à indicação em solidariedade aos colegas.
“A homenagem oferecida por um governo federal que não apenas ignora a ciência, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva, não é condizente com nossas trajetórias científicas. Em solidariedade aos colegas que foram sumariamente excluídos da lista de agraciados, e condizentes com nossa postura ética, renunciamos coletivamente a essa indicação”, diz a carta aberta dos cientistas.
Na carta, divulgada neste sábado, os 21 cientistas declaram sua “indignação, protesto e repúdio pela exclusão arbitrária dos colegas” e veem perseguição aos cientistas. Os signatários atuam em diferentes campos da ciência: biomédica, química, humanas, física, matemática, biológica e da terra. Também há personalidades nacionais.
“Tal exclusão, inaceitável sob todos os aspectos, torna-se ainda mais condenável por ter ocorrido em menos de 48 horas após a publicação inicial, em mais uma clara demonstração de perseguição a cientistas, configurando um novo passo do sistemático ataque à Ciência e Tecnologia por parte do governo vigente”, diz a carta.
No documento, os profissionais criticam ainda o “negacionismo em geral” e os cortes em verbas federais para o desenvolvimento da ciência.
Os cientistas agradeceram às indicações feitas pela Academia Brasileira de Ciências e pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entidades com assento no comitê que decide as homenagens da Ordem Nacional do Mérito Científico. Eles se dizem “extremamente honrados” com a possibilidade de serem agraciados, mas declinam à indicação devido à exclusão de Lacerda e Adele.
“Esse ato de renúncia, que nos entristece, expressa nossa indignação frente ao processo de destruição do sistema universitário e de Ciência e Tecnologia. Agimos conscientes no intuito de preservar as instituições universitárias e científicas brasileiras, na construção do processo civilizatório no Brasil”, diz a carta.
Veja quem assina a carta de renúncia à homenagem:
Aldo Ângelo Moreira Lima (UFC)
Aldo José Gorgatti Zarbin (UFPR)
Alfredo Wagner Berno de Almeida (UEMA)
Anderson Stevens Leonidas Gomes (UFPE)
Angela De Luca Rebello Wagener (PUC-RJ)
Carlos Gustavo Tamm de Araujo Moreira (IMPA)
Cesar Gomes Victora (UFPel)
Claudio Landim (IMPA)
Fernando Garcia de Melo (UFRJ)
Fernando de Queiroz Cunha (USP)
João Candido Portinari (Projeto Portinari)
José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)
Luiz Antonio Martinelli (USP)
Maria Paula Cruz Schneider (UFPA)
Marília Oliveira Fonseca Goulart (UFAL)
Neusa Hamada (INPA)
Paulo Hilário Nascimento Saldiva (USP)
Paulo Sérgio Lacerda Beirão (UFMG)
Pedro Leite da Silva Dias (USP)
Regina Pekelmann Markus (USP)
Ronald Cintra Shellard (CBPF)