Na última terça-feira (16/11), o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu habeas corpus, para soltar uma acusada de furto de água, presa há mais de 100 dias. Trata-se da mãe de uma criança de cinco anos, moradora em Estrela do Sul, Minas Gerais, que rompeu o lacre da Companhia de Saneamento (Copasa) para obter água necessária ao filho e aos afazeres domésticos.
Durante esse tempo, a liberdade dessa mãe foi recusada pela primeira instância da Justiça, pelo Tribunal de Justiça de Minas (TJ-MG) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que a mantiveram na cadeia.
Enquanto isso, seu filho foi cuidado pela irmã, também menor de idade – e, provavelmente, pela caridade dos vizinhos.
Parece um caso tão absurdo – ou quase – quanto o de Jean Valjean, o personagem central de “Os Miseráveis”, o livro de Vitor Hugo, que passou 20 anos na cadeia após roubar um pão para matar a fome de seus filhos.
Sobretudo quando Adriana Ancelmo, esposa e cúmplice de Sérgio Cabral no roubo desbragado de dinheiro público, presa pela Operação Lava Jato, ficou três meses e meio na cadeia, sendo liberada “por razões humanitárias”, porque tinha um filho de 10 anos e outro de 14 anos (a soltura de Ancelmo foi depois reiterada por uma decisão do sr. Gilmar Mendes).
Dinheiro não faltava à srª Cabral, mesmo estando na prisão, para cuidar dos filhos, com bem mais idade que aquele da mãe de Estrela do Sul. Nem o roubo dela foi de água para saciar a sede de um filho, mas de dinheiro público – a causa, somente da prisão de 6 de dezembro de 2016, foi lavagem de dinheiro, através da aquisição de 189 joias, 40 das quais estavam em um cofre no quarto do casal. Posteriormente, uma joalheria entregou à PF uma lista de 460 peças adquiridas por Cabral e Ancelmo. Além disso, seu escritório de advocacia era uma espantosa lavanderia de dinheiro da corrupção.
Enquanto isso, vejamos a tragédia da mãe de Estrela do Sul, que não tinha dinheiro, muito menos para contratar um advogado, nem mesmo água.
O caso chegou ao STF devido aos esforços da Defensoria Pública – essa mesma que o sr. Augusto Aras quer reduzir ainda mais a capacidade de atender ao povo – e, especialmente, da advogada e defensora pública Alessa Veiga, que, em viagem de inspeção na cidade de Estrela do Sul, Minas Gerais, recebeu um bilhete da presa, relatando a sua situação.
A acusada informara, à polícia e ao juiz de primeira instância, que a água era para o filho de cinco anos e para cozinhar, além de outros afazeres domésticos. Nas palavras da defensora pública, reproduzidas parcialmente pelo ministro Alexandre de Moraes em sua sentença:
“Os únicos requisitos fixados pelo Supremo Tribunal Federal para a não concessão da prisão domiciliar é não ser o crime com violência ou grave ameaça e não ser contra seu próprio filho. Nada mais. Não importa se crime de tráfico ou reincidência, por exemplo. Mas no caso presente a questão chega a beira do ABSURDO, pois é um furto qualificado. UM FURTO DE ÁGUA. A mãe explicou que a água é para o filho e depois foi recriminada por sua reação exacerbada, justamente pelo absurdo da situação” (grifos nossos, maiúsculas no original).
A “reação exacerbada” foi a resistência da mãe à prisão, “justamente pelo absurdo da situação”, mais ainda considerando como ficaria o filho, depois de presa.
Mas o juiz de primeira instância decretou a prisão preventiva da mãe.
Depois de tomar conhecimento do caso, através do bilhete da mãe, a Defensoria Pública pediu habeas corpus ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG).
Debalde.
O TJ-MG alegou “o risco concreto à ordem pública, caso a autuada seja de pronto colocada em liberdade” e a “periculosidade concreta” da mãe, cujo crime seria o de romper um lacre da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), para obter água necessária ao filho, e não se conformar com a prisão pela PM – em uma situação em que seu filho ficou entregue à guarda da irmã, também menor de idade, enquanto a mãe ia para a prisão.
Além disso, o tribunal colocou em dúvida a maternidade da mãe, apesar de constar no Boletim de Ocorrência que ela tinha um filho de cinco anos. “A palavra do policial foi utilizada para aceitar o desacato, a resistência e mantê-la presa, mas não foi aceita para que servisse como prova de que ela era mãe”, disse a defensora pública (cf. Moraes manda soltar mãe presa há 100 dias por furto de água).
A defensora pública recorreu, então, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), com idêntico resultado. O ministro Olindo Menezes alegou uma condenação anterior da acusada – uma condenação com pena cumprida completamente oito anos antes do incidente com a água – para mantê-la presa.
Mas, outra vez, no STJ foi colocada em dúvida a maternidade da mãe – algo que nem a polícia fizera, registrando a maternidade no BO.
Como muitos brasileiros nessa idade, a criança não tinha certidão de nascimento, apesar de todos saberem de quem era filho.
Nesse caso, a Defensoria foi obrigada a entrar com uma de suas prerrogativas – uma das que Aras quer acabar:
“Precisamos da prerrogativa de requisição para conseguir certidão de nascimento, para ter juntado no processo e para o Supremo ter aceitado que ela fosse mãe, apesar de, neste caso concreto, a Defensoria entender que era desnecessário, pois já tinham todos os dados no Boletim de Ocorrência”, explicou a defensora Alessa Veiga.
O recurso foi, então, para o STF, onde recebeu acolhida do ministro Alexandre de Moraes.
Resumindo a sentença de Moraes:
“A paciente foi presa em flagrante, em julho de 2021, e denunciada (…) em contexto de furto, mediante fraude, de água tratada da Companhia de Saneamento – COPASA.
“Ora, a natureza do crime imputado, praticado sem violência ou grave ameaça, aliada às circunstâncias subjetivas da paciente (mãe de uma criança de 5 anos de idade, conforme certidão de nascimento constante do Documento 5), está a indicar que a manutenção da medida cautelar extrema não se mostra adequada e proporcional (…).
“Diante do exposto (…) CONCEDO A ORDEM para revogar a prisão preventiva decretada contra a paciente (…)”.
E, assim, a mãe acusada de furtar água para o filho, ficou mais de 100 dias na cadeia, com o menino exposto às consequências, e três instâncias da Justiça mantendo-a detida.
Para Adriana Ancelmo e outros culpados de corrupção, as coisas correm de modo muito mais fácil.
C.L.
Leia a decisão do ministro Alexandre de Moraes