O coração de Elza Gomes da Conceição, a grande Elza Soares, parou de bater, calando a voz de uma das maiores cantoras brasileiras das últimas seis décadas, pelo menos.
Elza fez história na música popular brasileira como poucas intérpretes, pela sua voz inconfundível, versatilidade única, capacidade incomum de interpretar os mais diversos gêneros, especialmente o samba, território musical em que se notabilizou desde a década de 50 do século passado. Mas ela foi genial também no jazz e em tantos outros ritmos musicais. Neste passeio pela música brasileira e universal, chegou a lançar 34 discos.
Elza era filha de uma lavadeira e de um operário. Seus avós foram escravos.
Criada numa favela de Água Santa, subúrbio de Engenho de Dentro, desde menina cantava com sua voz rouca e o ritmo sincopado dos sambistas que habitavam os morros do Rio de Janeiro.
Obrigada a se casar ainda aos 12 anos, foi mãe aos 13 e viúva aos 21, período que ganhava a vida como lavadeira e, depois, operária de uma fábrica de sabão.
Aos 20 anos começou sua ininterrupta carreira, se destacando, já em 1959, com o sambalanço “Se Acaso Você Chegasse”.
Segundo consta, a expressão fazia referência a um episódio em que foi involuntariamente constrangida por Ary Barroso no programa de calouros que participou nos anos 50.
“De que planeta você vem, menina?”, ele disse. E ela respondeu: “Do mesmo planeta que você, seu Ary. Eu venho do Planeta Fome.”
Elza, ao longo de sua carreira, fez um casamento indissociável com o samba. Nos anos 60, nesse gênero musical, gravou com o cantor Miltinho (1928–2014) e o baterista Wilson das Neves (1936–2017), quando ganhou fama no lançamento de “O samba é Elza Soares” (1961), “Sambossa” (1963), “Na roda do samba” (1964) e “Um show de Elza” (1965), entre tantas outras relíquias da música popular brasileira.
Como intérprete do gênero que encanta multidões em nosso país, lembrei-me de uma das primeiras gravações de Elza, “O samba está em tudo”, de 1961, uma pérola de Denis Brean e Oswaldo Guilherme que, já naquela época, exaltava as virtudes de um gênero musical que parecia nublado frente às novas e empolgantes ondas produzidas pelo samba-canção, a bossa nova, o samba-rock, o samba-twist.
Diz a letra, desse que pode ser considerado um samba-twist:
“Se vou em festa que um amigo me convida
Não procuro por bebida, quero samba pra dançar
Não me interessa se a festa é de granfino
Se tem solo de violino virtuoso pra tocar
Eu quero samba pra brincar com todo mundo
Porque o samba num segundo faz a turma se esquentar
Eu quero samba pra alegrar o ambiente
Porque o samba, minha gente, foi feito pra sambar
O samba tem cadência, tem poesia
Tem suave melodia
Só o samba faz vibrar
Pra variar outra dança também danço
Mas do samba não me canso
Como eu gosto de sambar!
Há quem diga que por esse mundo a fora
Onde o samba não vigora
Há um ritmo melhor
E sem conversa, com conversa não me iludo
Pois o samba está com tudo
Viva o samba! É o maior!”
Os leitores que quiserem se deliciar com essa canção ainda do primeiro LP de Elza, aquele de 78 rotações por minuto, lançado pela antiga Odeon, basta acessar o link: https://www.letras.mus.br/elza-soares/o-samba-esta-com-tudo/
O programa “Ouve Essa”, da Rádio UFRJ, descreveu a interpretação de Elza Soares da seguinte forma:
“Um show de técnica e improvisação, incrível repertório de mágicas de sua voz possante. Dribla a melodia e faz pausas imprevisíveis. E segue a música assim, brincando, cortando as sílabas, para ajudar a marcar o ritmo, acelerando ou atrasando como lhe sugerisse o momento. Elza não precisava de grandes músicas. Qualquer uma bastava para ela se divertir com o malabarismo que tirava o fôlego da plateia, porque o dela, uma respiração afinadíssima, continuava muito bem preservado”
Depois de uma fase difícil na década de 80, sofreu com a morte de Garrincha, o Mané das pernas tortas que encantou milhões de torcedores nos estádios com seus dribles espetaculares, tornando-se um dos maiores jogadores de todos os tempos. Com ele, teve seis de seus oito filhos e um relacionamento de 17 anos.
Em 1999, foi eleita pela Rádio BBC de Londres como a cantora brasileira do milênio. A escolha teve origem no projeto The Millennium Concerts, da rádio inglesa, criado para comemorar a chegada do ano 2000. Além disso, ela aparecia na lista das 100 maiores vozes da música brasileira elaborada pela revista Rolling Stone Brasil.
Ainda nesse ano, nem mesmo um acidente ocorrido em um show promovido pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro impediu que ela, embora se locomovendo com dificuldade, continuasse a cantar e, dentro de suas limitações, a atender aos pedidos para se apresentar no Brasil ou no exterior.
Em 2014, revelou aquilo que todos sabíamos de sua postura frente à ditadura que infelicitou o país por 21 anos:
“Além de ter sido um período muito difícil para o Brasil, a ditadura militar foi quando tive minha casa metralhada. Estávamos todos lá: eu, Garrincha e meus filhos. Os caras entraram, metralharam tudo e nunca soube o motivo. Era 1970, já tínhamos recebido telefonemas e cartas anônimas, nos sentíamos ameaçados e deixamos o país. Acredito que fizeram isso por conta do Garrincha, mas também por mim, pois eu era muito inflamada e então, como ainda hoje, de falar o que penso. Eu andava muito com o Geraldo Vandré e devem ter pensado que eu estava envolvida com política. Mas eu sou uma operária da música, e qual é o operário que não se revolta?”.
Nesses 70 anos de carreira, nada mais apropriado do que suas próprias palavras para definir, com mais precisão, quem era Elza Soares.
Não é preciso ser um especialista para dizer, com toda segurança, que Elza foi, acima de tudo, uma operária de nossa música e, consequentemente, da cultura nacional.
A operária que cantou os mais distintos gêneros musicais, sendo reconhecida naquele que está entre os que compõem a raiz de nossa musicalidade, o samba.
Não por acaso, essa operária se identificava tanto com os batuques trazidos pelos negros escravizados, seus ancestrais, que, misturados aos ritmos europeus, como a polca, a valsa, a mazurca, o minueto, entre tantos outros, enredaram canções que foram conhecidas e aplaudidas na voz eleita como a do “milênio”, não exatamente por brasileiros, é verdade, mas, certamente, em razão da universalidade dos sons que Elza prodigamente produzia.
Foi também como operária da música que Elza cantou, não apenas pela sua origem de mulher negra, mas, sobretudo, pela sua sensibilidade, as dores e a história da negritude brasileira. São inúmeras as interpretações de músicas cujas letras condenam o racismo e exaltam a história dos negros em nosso país.
Cantou mais. Cantou o Brasil e as suas riquezas, especialmente a riqueza de seu povo. Talvez tenha sido a mais brasileira das cantoras brasileiras, ao lado de Elis Regina, Elizeth Cardoso e Clara Nunes, essa última imortalizada na poesia de Paulo César Pinheiro, mas cujas carreiras foram mais curtas no tempo, sem deslustre às outras grandes que já se foram ou que ainda estão entre nós, como Maria Bethânia, por uma questão de justiça.
Por isso, não só os negros, mas todos os demais componentes das etnias da múltipla e plural riqueza racial de nosso país tinham e têm em Elza Soares uma referência, não só musical e cultural, mas, também, humana.
Nesses tempos sombrios em que vivemos no país, Elza, do alto de seus 90 anos, depois de contrair a covid, também deixou claro de que lado estava.
Disse ela:
“Foi um susto pavoroso. Eu tive covid e as vacinas salvaram a minha vida. Por favor, vacinem-se! Essa doença pavorosa é muito perigosa. Viva a ciência”.
Como Garrincha, foi uma notável dribladora na interpretação de suas canções – e também driblou o vírus, sem deixar de exaltar o papel decisivo da vacina e da ciência.
Uma interessante coincidência: Elza Soares morre no mesmo dia de seu querido Mané, que partiu também no dia 20 de janeiro do distante ano de 1983.
“Eu sonho muito com o Mané. O maior amor da minha vida foi ele”, disse ela numa entrevista há quatro anos atrás.
E concluiu:
“Ele (Garrincha, na Copa de 62) me prometeu e disse: ‘Olha criola, essa Copa eu vou dar pra você, vou fazer gol pra você (…) Eu nunca gostei de ser mulher de fulano. Eu sou eu. Não era preciso ser mulher do Garrincha pra ser a Elza Soares. O Garrincha era marido da Elza Soares”.
Marco Antônio Campanella
Texto maravilhoso do retrato da incrível e imortal Elza Soares!