
ARTHUR DE FARIA
(publicado originalmente no site Sul 21)
Tudo, mais uma vez, começa com João Gilberto.
Em 1971, ele era o último sujeito que alguém imaginaria cantando uma canção de Lupicínio. Depois de longos anos morando no exterior, João vem ao Brasil gravar um programa de TV na Tupi. Aí, entre Jobins e Caymmis, para surpresa geral, ele manda Quem Há de Dizer. Na sua voz, a canção se despia de todo o melodrama que lhe haviam aplicado, por exemplo, Francisco Alves e Jamelão. Como nunca antes, sua letra mostrava o quanto tinha de obra-prima do coloquial.
(Afinal, era isso mesmo: letra escrita para Alcides Gonçalves botar música, contava uma história real do parceiro. Que, submerso na mais pantanosa cornitude, tocava piano pra que outros homens dançassem com sua amada, taxi-girl da Boate Marabá. Com requintes de sadomasoquismo, Alcides assistia a tudo com detalhes, afinal, tinha instalado uma espécie de “espelho retrovisor” no piano para não perder nada.)
O irônico é que a versão de João é cortada na edição final do programa e nem chega a ir ao ar, mas o importante já estava feito: muita gente ficou sabendo que João, o criador da Bossa Nova, o papa absoluto da sofisticação, havia cantado Lu-pi-cí-nio Ro-dri-gues. Será então que podiam ter lá o seu encanto aquelas canções então varridas para baixo do sofá da classe média letrada como coisa de putas pobres em cabarés de beco?
Vale parar pra entender. Tire o drama e olhe o texto. Sua letra, escrita dez anos antes da Bossa Nova, tem tudo a ver com as pretensões de coloquialidade de Vinícius e sua turma. Só troca o teor dos amores. Se na Bossa o cotidiano era de namoricos de praia e garotas de família que começavam a dar, no mundo de Lupi só quem dava eram as damas da noite – que poderiam até ser tiradas da vida se encontrassem um homem bom (e estivessem dispostas a isso, claro). Aquele era o cotidiano. E aquilo era o retratado. E com uma melodia que vou te contar…:
Quem há de dizer que quem vocês estão vendo naquela mesa, bebendo, é o meu querido amor? Repare bem que toda vez que ela fala ilumina mais a sala do que a luz do refletor! O cabaré se inflama quando ela dança – e, com a mesma esperança, todos lhe põem o olhar. E eu, o dono, aqui, no meu abandono, espero – louco de sono! – o cabaré terminar.
– “Rapaz, leva esta mulher contigo!”, disse uma vez um amigo quando nos viu conversar. “Vocês se amam, e o amor deve ser sagrado. O resto, deixa de lado. Vai construir o teu lar!”
Palavra!: quase aceitei o conselho. O mundo – este grande espelho – que me fez pensar assim: ela nasceu com o destino da lua – pra todos que andam na rua… –, não vai viver só pra mim.
Em 1972, Caetano Veloso, fiel apóstolo joãogilbertiano, volta do exílio londrino tocando em seus shows justamente… Volta. Pronto: com duas gerações de ícones culturais apontando pra ele, estava armada a cena pro retorno de Lupicínio. Depois de quase 15 anos de ostracismo (uma pequena exceção foi, em 1970, quando a primeira edição da série de fascículos e disco História da Música Popular Brasileira havia lhe dedicado um volume, com direito a faixa inédita e tudo).

Seu MPB Especial, agora ao alcance de você
O primeiro a se manifestar é o homem de TV, produtor e figura lendária Fernando Faro, que chama Lupicínio pra gravar uma edição histórica do seu programa MPB Especial, na TV Cultura paulista – o mesmo programa, que existe desde 1969, agora se chama Ensaio, e tem várias edições editadas em livros, DVDs e CDs chamados A Música Brasileira Deste Século Por Seus Autores e Intérpretes (a de Lupi, inclusive).
De volta a Volta: por sugestão de Caetano, Gal Costa a leva ao disco no mesmo 1973 em que Paulinho da Viola registra uma magistral versão de Nervos de Aço. E aí é o próprio Lupi que volta a um estúdio, dessa vez na pequena gravadora Rosicler, onde grava o irretocável LP Dor de Cotovelo – recolocado em catálogo quase anonimamente na década de 1990, disfarçado de coletânea da série de CDs Mestres da MPB, só com seu nome na capa: Lupicínio Rodrigues. Vale procurar: é talvez o melhor resumo de Lupicínio por ele mesmo (há também mais um disco, de 1974, pela gravadora Som, batizado com seu nome, mas esse é dureza de achar).

Uma versão da obra-prima
É aí que Caetano, em Porto Alegre para uma temporada de shows, quer porque quer passar uma noitada como a de Pignatari e os irmãos Campos. Consegue, claro. E ainda mais animada, com a apresentadora de TV e figuraça Tânia Carvalho de cicerone no seu flamante fuscão: começou na casa noturna Chão de Estrelas e só Deus sabe onde terminou. Caetano volta ao Rio absolutamente seduzido pelo charme sestroso de Lupicínio. No calor da hora, tinha até firmado um “contrato” improvisado numa bolacha de chope, onde se comprometia: regravar à Dona Cerenita serena os versos da sua Felicidade.
Cumpre o trato já no LP seguinte: Temporada de Verão ao Vivo na Bahia. E dá o maior pé. Sua versão recria completamente o que era um xote num clima de lentíssima toada com citações instrumentais de Luar do Sertão. Deu tão certo que operou um pequeno milagre: é essa versão que ficou registrada desde então no imaginário nacional, servindo de base para todas as regravações posteriores. Tanto que o Xote da Felicidade virou simplesmente Felicidade.

A outra versão da obra-prima
Nesse mesmo 1974, Elis Regina vê que era a hora de tomar o gaúcho para si e finalmente ganha coragem pra gravar não uma, mas duas canções de seu conterrâneo. Estraçalha em ambas: Cadeira Vazia sai num compacto duplo onde Caetano, Gil e Gal também cantam Lupicínio (grafado Lupiscínio na capa). Já Maria Rosaentra no seu LP daquele ano. Pra fechar, o cineasta Bruno Barreto usa Esses Moços como música-tema da sua adaptação cinematográfica do livro A Estrela Sobe, de Marques Rabelo.
É importante contextualizar que esse também era um momento de assentamento da poeira dos anos 1960, com o samba lentamente voltando ao gosto não só da população como também da intelectualidade. Não foi só com Lupicínio: Cartola, Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus também passam a se apresentar em shows disputadíssimos, principalmente no Rio e em São Paulo. Numa de investidas cariocas, Lupi arrasa no cult palco do Teatro Opinião e, na mesma noite, ainda emenda sua histórica entrevista para o Pasquim. A maré tinha virado, e agora ele era novamente tietado por jornalistas, intelectuais e boêmios… Mas, novidade, também aparecera para um público jovem, de classe média, muitas vezes universitário. Quem diria. O mesmo tipo de indivíduo por quem ele zelava, na função de bedel, 40 anos antes.

Caetano, Gil, Gal, Elis cantam… Lupiscínio (sic!)

Nelson Cavaquinho, Bete Carvalho, Lupi. O pessoal.
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Mas durou pouco.
Dia 21 de agosto de 1974, pouco depois de gravar um álbum que só seria lançado décadas depois, como brinde da empresa Renner, é internado na Unidade de Tratamento Coronário do Hospital Ernesto Dornelles, em Porto Alegre. Já estava mal quando, dois dias depois, o filho lhe traz a notícia:
– Pai, “Felicidade” tá estourando na parada de sucessos!
Ainda tem forças pra retrucar, irônico:
– Finalmente estão reconhecendo de novo o velhinho…
Morre dia 27, de insuficiência cardíaca decorrente de diabetes. Foi velado no Estádio Olímpico, do seu amado Grêmio, e com o caixão coberto pela bandeira do time. Morria um pouco com ele uma geração que ainda acreditava que, aos 60 anos incompletos, o sujeito era um velhinho (vai explicar isso pra quem hoje vê por aí sessentões como Djavan, Rita Lee ou David Byrne…).
Seu velório foi em grande estilo lupicínico: teve direito até a uma jovem desconhecida sendo esbofeteada pela viúva em pleno velório. Acharam que era mais uma amante – era filha. Mas foi cumprido ao menos metade do seu último desejo, pedido a Cerenita três dias antes: Não quero ninguém chorando no meu enterro, quero todo mundo cantando. Muito cantou-se. Muito chorou-se.
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A partir de sua morte, o culto a Lupicínio só faz crescer. Terceiro milênio adentro seria muitíssimo regravado, por gente que vai de Maria Bethânia aos Almôndegas. Fábio Júnior, por sua vez, jura que o espírito do compositor de vez em quando baixa no palco de seus shows e fica quietinho, num canto, só olhando (também, coitado, ia dizer o quê?).
Citado e recitado por Cazuzas e Lobões, o finado boêmio foi também, se não incorporado, bastante lembrado pela geração 80 do rock nacional. E a coisa evolui até a versão rock de Arnaldo Antunes pra rancheira Judiaria, que revela mais algumas das sutilezas de um curioso compositor popular que não tocava nenhum instrumento além de caixa de fósforos, mas, mesmo assim, criava maravilhas melódicas. É inacreditável que, desta forma tosca, tenham sido compostas sinuosidades vertiginosas como Torre de Babel, Fuga ou Nervos de Aço.
Em 1988, a Cooperativa dos Músicos de Porto Alegre monta o espetáculo Coompor Canta Lupi, que é apresentado por todo o estado e registrado em LP. Em 1994, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul institui o Ano Lupi, em comemoração aos seus 80 anos de nascimento. No ano seguinte, a editora (porto-alegrense) L&PM lança Foi Assim, uma coletânea de suas crônicas escritas para o jornal Última Hora. Dois anos depois, é a vez da heroica gravadora Revivendo editar uma espetacular caixa de quatro CDs reunindo as primeiras gravações de 88 de suas músicas.
No embalo, o velho parceiro Rubens Santos encabeça o show Lupicínio às Pampas, que é apresentado no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, reunindo, entre outros, Luiz Melodia, Paulo Moura e Adriana Calcanhotto. Em 2005, Thedy Corrêa, líder da banda gaúcha Nenhum de Nós lança um CD de revisão eletrônica de Lupi: Loopcínio.

Thedy: nostalgia e modernidade

Nelson Coelho de Castro, Bebeto Alves, Gelson Oliveira & Cia juntando forças, juntando focos

A coletânea de impagáveis crônicas

A caixa da Revivendo. Mate por ela
Mas sua prova regional mais profunda de perenidade veio no ano 2000: Felicidade foi a segunda canção mais votada por um júri de 31 músicos e jornalistas chamados pelo jornal gaúcho Zero Hora para escolher “A”Música do Rio Grande – só perdeu pra Prenda Minha.
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Na próxima edição a gente encerra o capítulo Lupi, dando uma focada em estilo e psiquê da peça.
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Olhaí o Loopcínio do Thedy.
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E isso aqui é absolutamente sensacional. Lupi no programa da Elizeth Cardoso, mostrando o intérprete absolutamente extraordinário que ele era. Só tem de abstrair a vontade de matar o cavaquinista-jazzy mais bizarro que eu já ouvi.
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E aqui um trechinho do programa do Fernando Faro.
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