O pastor Manoel José de Lima, líder da comunidade terapêutica Casa da Paz, na cidade de Rio Claro, interior de São Paulo, está sendo acusado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) de escravizar dependentes químicos.
Camas sem colchão e comida vencida misturada a produtos de limpeza. Nos quartos e banheiros, a sujeira assustou “até os mais antigos policiais, acostumados a tanta barbaridade”. Essas informações constam em uma ação do MPT.
Na quinta-feira da semana passada, a juíza Karine da Justa Teixeira Rocha concedeu uma liminar (decisão provisória) reconhecendo a existência de trabalhos forçados na comunidade terapêutica Casa da Paz.
Segundo o MPT, os internos eram obrigados a manter uma jornada de 11 horas de trabalho com alimentação precária. O serviço consistia em cuidar da limpeza da comunidade terapêutica e separar lixo na empresa de reciclagem do pastor, que funcionava na mesma propriedade. Sem salário, os internos trabalhavam todos os dias da semana, sem direito a folga.
A ação teve início depois que o familiar de um dos dependentes procurou a Justiça ao descobrir que o pastor ficava com o dinheiro de um benefício previdenciário recebido por um dos internos.
Ao visitar o sítio, a Vigilância Sanitária constatou “que os próprios internados/internos/moradores são os trabalhadores, estando em um regime de tratamento/trabalho”.
Ao ser questionado na ocasião sobre as condições de vida dos internos, o pastor respondeu que as pessoas “trabalhavam para ajudar no sustento do sítio e ainda tinham sua cura através de Deus”.
“Ele recebia esses pacientes encaminhados por outros pastores”, diz o procurador Rossi. “Ele divulgava a clínica entre pastores, que encaminhavam pessoas com problemas psiquiátricos ou dependência química”.
De acordo com o depoimento dos internos que fazem parte do processo, eles chegaram ao sítio para tratamento terapêutico, mas foram obrigados a trabalhar em uma empresa de reciclagem. O pastor teria retirado deles o celular, retido seus documentos e os proibido de deixar a propriedade.
“Cheguei a ser agredido pelo pastor Manoel com uma vara certa vez em que não quis levantar para trabalhar”, contou o interno A.F.P.S. “Não recebia dinheiro. Tenho medo de tudo isso que estou falando, pois não tenho outro lugar para morar.”
B.L, também resgatado, conta que vivia em “uma casa bem mal acabada”. “Dormíamos em um quarto onde tinham algumas camas mas, geralmente, eu dormia em uma cadeira, sentado”.
“Pela manhã, éramos acordados para trabalhar. Eu limpava a casa e terminávamos só ao anoitecer. No começo, ele me pagava em torno de R$ 150, mas depois não pagou mais. Trabalhava todos os dias de segunda a segunda”, conta B.L.
“A comida era uma sopa que eles davam no almoço e, às vezes, no jantar. Nós não tomávamos café da manhã. Água nós tomávamos da torneira”
Outro interno da comunidade conta que o pastor pegou sua certidão de nascimento, seu único documento. “O pastor não pagava [salário] pois falava que lá era uma casa de recuperação”, conta. “Não era permitida a saída do local.”
O pastor Manoel agredia as pessoas, mas eu não posso ficar falando sobre isso. “Estou com várias feridas no meu braço e por mais partes do meu corpo, mas eu não posso falar”.
PASTOR PRESO
Os internos foram transferidos para o Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) de Rio Claro e o pastor acabou preso no dia 15 de julho do ano passado em flagrante pelo crime de reduzir pessoas à condição análoga à de escravo.
Após alguns dias de detenção, Manoel foi solto e agora responde ao processo em liberdade. Se condenado, pode pegar de dois a oito anos de prisão. “O pastor responde a um processo criminal que ainda não foi julgado”, afirma Malaquias, seu advogado. “Ainda serão ouvidas testemunhas de defesa e acusação”.
O procurador Rossi questiona a forma como a exploração do trabalho se confunde com o tratamento terapêutico. “Você está tratando alguém ao desenvolver algum tipo de atividade, ou está explorando o trabalho desse alguém?”.
O Ministério Público do Trabalho cobra uma indenização de R$ 500 mil por danos morais coletivos. “Agora é fiscalizar para ver se o pastor está cumprindo a decisão liminar”, afirma Rossi.
Segundo o Ministério do Trabalho e Previdência, o Brasil encontrou 1.937 pessoas em situação de escravidão contemporânea em 2021, maior número desde os 2.808 trabalhadores em 2013.