NILSON ARAÚJO DE SOUZA
[NOTA DO HP: O texto abaixo foi escrito pelo professor Nilson Araújo de Souza como uma apresentação à Plataforma Emergencial de Reconstrução Nacional, aprovada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), e já publicada por nós (v. HP 15/02/2022, PCdoB lança Plataforma Emergencial de Reconstrução Nacional). Nilson foi, justamente, o relator da Plataforma. Pela importância deste documento e pela clareza da síntese elaborada nesta apresentação, a oferecemos para conhecimento dos nossos leitores.]
O Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), reunido nos dias 11 e 12 deste mês, aprovou as “Diretrizes para uma plataforma emergencial de reconstrução nacional: Democracia, Soberania, Desenvolvimento e Trabalho”. O objetivo desse documento é subsidiar a luta do Partido para reverter o desmonte da Nação que vem sendo promovido pelo governo Bolsonaro e apontar o caminho e indicar as medidas para a reconstrução nacional, devendo contribuir com o programa mínimo da Federação das Forças Populares e com o programa de governo da Federação.
O desmonte bolsonarista foi anunciado previamente: menos de três meses depois de assumir o governo, Bolsonaro, durante uma reunião com grupos ultradireitistas, ocorrida não por acaso nos EUA, declarou: “o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa”.
A Plataforma condensa um amplo debate e um longo e profundo trabalho coletivo iniciado no começo de 2021. Começou com um seminário promovido pela Cátedra Claudio Campos/Fundação Maurício Grabois (“O nacional-desenvolvimentismo e o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento”), realizado entre março e julho do ano passado. Contou com a participação de mais de 50 conferencistas das mais diversas especialidades, de dentro e de fora do Partido.
Após esse período, o CC do PCdoB constituiu uma comissão que foi incumbida de construir uma proposta de Plataforma para enfrentar a crise brasileira e contribuir para tirar o País do atoleiro. A Comissão partiu das contribuições do seminário e teve como referência o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento (“o fortalecimento da Nação é o caminho”), aprovado em 2009 pelo Partido, incorporando também as contribuições do Programa de Governo que havia sido elaborado pelo Partido Pátria Livre, que se integrou ao PCdoB em 2019.
O texto inicial foi amplamente debatido no processo de Congresso realizado pelo Partido durante o segundo semestre de 2021 e recebeu importantes contribuições dos membros do Partido em suas várias esferas, quer através de tribunas, quer através de emendas individuais e coletivas ou durante os debates realizados. Incorporadas essas contribuições, o Congresso deliberou prosseguir o debate e encaminhou sua aprovação final para o CC então eleito, o que ocorreu agora em fevereiro.
O documento parte da constatação de que o País atravessa uma crise estrutural de longa duração, que se agravou não apenas pelo impacto da Pandemia da Covid-19, mas, sobretudo, pelo desmonte que vem sendo realizado pelo governo Bolsonaro. E, para enfrentar uma crise estrutural, destaca a Plataforma, só com medidas profundas. Conforme consta do documento, “o eixo estruturante da Plataforma Emergencial de Reconstrução Nacional é o desenvolvimento soberano, tendo o Estado, e consequentemente o investimento público, como alavanca do desenvolvimento, além da prioridade ao mercado interno, com a valorização do trabalho como seu impulsionador”.
Nessa concepção, a valorização do trabalho deve ser resgatada como o centro do desenvolvimento. Para tanto, o documento propõe um conjunto de medidas visando à valorização do trabalho, a começar com: “b) aumento real crescente do salário mínimo, buscando dobrar o seu valor real; c) garantia de salário igual para trabalho igual; d) redução da jornada de trabalho (nos principais países da Europa, a jornada semanal varia de 36 a 38 horas); f) revogação da reforma trabalhista iniciada por Temer e continuada por Bolsonaro”. Além de fomentar a melhoria das condições de vida dos trabalhadores, medidas como essas fortalecem o mercado o interno e, portanto, favorecem a reconstrução nacional e o desenvolvimento.
A valorização do trabalho, na avaliação da Plataforma, exige também a geração de emprego decente e de qualidade. A meta é gerar 20 milhões empregos. Para tanto, além de reduzir a jornada de trabalho, é fundamental promover o desenvolvimento das forças produtivas, o que demanda, em primeiro lugar, “barrar o desmonte do Estado e recuperar seu papel na economia”. Nesse quadro de Pandemia, até os governos dos principais países, que sempre apregoaram o afastamento do Estado da economia para abrir espaço para o “mercado”, estão recorrendo ao Estado. Reforça o documento: “Para o Estado cumprir o papel de promotor do desenvolvimento sócio econômico do País, são necessários o resgate e a valorização da sua dimensão pública e estratégica, fortalecendo sua presença em setores fundamentais e estruturantes da economia nacional, devendo contar com uma rede de empresas estatais, destacando-se a participação no setor de energia e infraestrutura”.
Destaca-se entre essas empresas, o papel da Petrobras. Diz o documento: “É impossível pensar no desenvolvimento nacional sem definir o papel e a ação da Petrobras. O abastecimento nacional de combustíveis é uma questão de segurança nacional. Principal empresa do setor de petróleo do Brasil e uma das mais destacadas petroleiras do mundo, é preciso que o governo atue, inclusive como acionista, no sentido de fortalecer o compromisso social e econômico da companhia com o desenvolvimento nacional, devendo para isso remontar a empresa mediante a recuperação de setores que já foram alienados, entre eles a distribuição e parte do refino”.
E num país que, engessado pela valorização da moeda e pela “abertura comercial”, teve sua indústria devastada pela concorrência predatória de capitais e produtos estrangeiros e sua infraestrutura sucateada, não resta outro caminho para a reconstrução e a geração de empregos senão a reindustrialização e o lançamento de obras de infraestrutura de qualidade. A reindustrialização exige um marco institucional favorável. Para que o Estado acione seus mecanismos (protecionismo, financiamento, compras governamentais) para fortalecer as empresas genuinamente nacionais, é preciso retomar o que definiu a Constituição de 1988: distinguir empresa nacional de empresa estrangeira. Além disso, deve-se “construir a escada tecnológica”, com forte apoio do Estado, para reconstruir a indústria com tecnologia “no estado da arte”. Aproveitando-se do mundo em transição, que está promovendo a ascensão da China, o Brasil pode e deve fazer parcerias estratégicas com a China na área de infraestrutura, como programas metroviários e ferroviários, além, obviamente, de retomar as obras paradas.
Segundo a Plataforma, recursos para financiar a reconstrução nacional e o desenvolvimento existem (emissão monetária, desoneração fiscal descabida, fuga dos mais ricos ao pagamento de imposto, pagamento de gigantescas somas de juros pela dívida pública, renda do pré-sal…), mas, para aplicá-los produtivamente no aumento da capacidade produtiva, temos que nos desvencilhar dos obstáculos que estão no caminho, a começar por desarmar o tripé macroeconômico, que é ancorado nos juros altos e no câmbio valorizado. Ao mesmo tempo, revogar a emenda do teto de gastos que congela os gastos públicos, derrubando fortemente os investimentos públicos. O Banco Central deve deixar de submeter-se aos interesses dos banqueiros para seguir a orientação do governo.
A Plataforma propõe também enfrentar a carestia, que penaliza mais aos mais pobres. Parte da constatação de que a inflação atual não resulta de pressão da demanda, como alardeia o governo, mas do choque de oferta. Pressão da demanda vinda de onde se a renda do trabalho caiu 11%, se temos quase 30 milhões de desempregados e subempregados e 116,8 milhões de pessoas padecem de insegurança alimentar? Diz o documento: “O caminho passa por enfrentar o choque de oferta e a ‘dolarização’ da economia. Para isso, deve ser garantido o abastecimento alimentar interno (taxando ou bloqueando exportações e realizando estoque regulador na próxima safra), o refino interno do petróleo de todos os derivados de que o País necessita, a desdolarização da política de reajuste das tarifas dos serviços públicos. No caso dos derivados do petróleo, além do mais, propõe-se criar um Fundo de Estabilização que coíba o impacto interno das oscilações do câmbio e do preço internacional do produto”.
No processo de reconstrução nacional, uma questão decisiva é reconstruir o Estado Democrático. Diz a Plataforma: “Serão revogadas as medidas antidemocráticas adotadas pelo governo Bolsonaro e trabalharemos pela reconstrução do Estado Democrático (…). Para tanto, devem ser reconstituídos imediatamente os conselhos de controle social e as conferências, cujas decisões devem ser fortalecidas”. Mais: “Nosso objetivo é a construção de uma nação democrática, próspera e solidária que amplie a liberdade política para o povo, promova a democratização dos meios de comunicação de massa, proceda a uma reforma do Sistema de Justiça e amplie a representação das mulheres e da diversidade étnico-cultural”.
Em tempos de Pandemia, a questão da saúde, que já era muito difícil antes, tornou-se dramática, uma verdadeira calamidade pública. A saúde tem prioridade na Plataforma, que afirma: “Considerando o papel estratégico do Sistema Único de Saúde (SUS), que ficou evidenciado no combate à Pandemia, o PCdoB lança ao País a proposta de fortalecer o seu caráter público, integral e universal, começando pela ampliação urgente do financiamento por parte do governo federal, estabelecendo um piso emergencial que acrescente pelo menos 35 bilhões de reais ao orçamento atual”. O fortalecimento do SUS só se completa com a reimplantação do complexo industrial nacional da saúde: “é necessário promover os investimentos estratégicos no desenvolvimento e ampliação do complexo econômico industrial da saúde, destinados a garantir a produção de imunobiológicos, vacinas, equipamentos, medicamentos, ingredientes farmacêuticos ativos, intermediários de síntese, além da construção de plataformas tecnológicas, baseadas no domínio da biotecnologia moderna, na engenharia genética e na bioprospecção da flora e fauna de forma sustentável”. “Ao mesmo tempo, deve-se garantir às indústrias nacionais, farmacêuticas, farmoquímicas, biotecnológicas e de equipamentos, sejam públicas ou privadas, as condições necessárias para a produção nacional dos insumos estratégicos para a saúde, economizando divisas e garantindo a verticalização da produção interna e a nossa autossuficiência nacional neste setor vital da economia e da vida. Superar a dependência internacional e a vulnerabilidade nacional. Integrar saúde, economia, meio ambiente, inovação e produção é uma necessidade do século XXI”.
Partindo da constatação de que a agressão ambiental se agrava com o efeito das mudanças climáticas e de que o governo Bolsonaro exacerba essa agressão ao patrocinar desmatamentos e queimadas, além de desmontar os órgãos de controle, a Plataforma estabelece que “é preciso reconstruir e fortalecer o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e os órgãos de apoio à definição de políticas ambientais e de fiscalização” e “será barrado o uso predatório dos nossos recursos naturais a fim de compatibilizar as necessidades atuais com as das futuras gerações. O aumento da produção agropecuária deve resultar, principalmente, do aumento da produtividade nas áreas já ocupadas, e não da incorporação de novas áreas, garantindo, assim, as metas de redução de desmatamentos”. Além disso, ”nas áreas urbanas, a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que conseguiu acabar com os lixões em menos da metade dos municípios brasileiros, deve garantir o seu cumprimento integral, promovendo a coleta seletiva e disposição adequada de resíduos sólidos”; “deflagrar um processo que conduza à cobertura de 100% da coleta e do tratamento de esgoto nos centros urbanos, fortalecer a transição para combustíveis menos poluentes e estimular políticas de transporte coletivo movido a eletricidade”.
A Reforma Agrária é prioridade na Plataforma, que afirma: “O PCdoB tem compromisso com a Reforma Agrária. Nossa meta inicial para a fase de emergência é assentar as 130 mil famílias acampadas. A agricultura familiar e os assentados da Reforma Agrária receberão forte apoio para aumentar o bem-estar no campo e produzir alimentos para as populações urbanas, além de fortalecer o mercado interno (…). Realizará uma Reforma Agrária que elimine a grande propriedade territorial improdutiva, a começar pela grande propriedade que sonega impostos, prioritariamente nas margens de rodovias, ferrovias e açudes federais”.
A Reforma Urbana é outra reforma fundamental no processo de reconstrução nacional. A Plataforma a trata, por tanto, com destaque: “Merece especial atenção a questão da moradia popular. O déficit habitacional é semelhante ao número de imóveis fechados, que se aproximam de 6 milhões, porém, a serviço da especulação imobiliária. Essa aberração social cria um mecanismo que leva os preços dos imóveis e do aluguel às alturas (…) garantir que os imóveis desocupados, com nítidos fins de especulação imobiliária, sejam fortemente taxados a fim de obrigar os mesmos a cumprir a função social da propriedade e os recursos arrecadados sejam direcionados aos Fundos de Habitações de Interesses Sociais e assim estimular a produção de novas moradias e outros equipamentos de uso coletivo”.
A Plataforma expressa o compromisso do PCdoB com a luta pela emancipação das mulheres: “Cabe ao Estado proporcionar às mulheres todas as garantias para que possam se desenvolver plenamente e construir sua emancipação, sobretudo ao promover sua inserção produtiva no mercado de trabalho, garantindo para isso a exigência de salário igual para trabalho igual (aprovar PL nº 130/2011), a ampliação da licença maternidade, que seus filhos tenham acesso a creche e educação em tempo integral e implementação de equipamentos como restaurantes e lavanderias coletivas”.
A educação cumpre um papel estratégico na concepção expressa na Plataforma: “O PCdoB propõe uma estratégia de desenvolvimento alavancada por educação, ciência, tecnologia, inovação, cultura e as artes. É fundamental a aprovação do Sistema Nacional de Educação (SNE) que regulamenta o regime de colaboração entre a União, os estados e municípios, instrumento imprescindível para a superação do desmonte e o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação”.
“A educação como direito universal, bem público, dever do Estado com a manutenção de um sistema público de educação, conquistado durante a nossa história com muita luta, sofre um forte ataque e uma ação política de desmonte pelo governo Bolsonaro, que viola, em descumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito de acesso e permanência na escola a milhares de crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória, descaracterizando a escola enquanto espaço de proteção e aprendizagem para filhas e filhos de trabalhadores, aprofundando assim a desigualdade social e comprometendo o futuro do nosso país”.
É compromisso essencial do PCdoB “promover a cultura nacional para emancipar as consciências”. Afirma a Plataforma: “Nossa proposta para a área de Cultura implica promover a cultura nacional na sua diversidade e riqueza, que se manifesta, de modo singular e plural, em todas as regiões deste imenso Brasil. O fomento à Cultura deve avançar para ser uma política de Estado que promova a afirmação e o florescimento da cultura brasileira e da consciência nacional, assumindo seu papel de formulador e indutor das prioridades culturais públicas”.
A política externa independente e a defesa nacional são duas dimensões decisivas da reconstrução nacional soberana. Para isso, contamos com uma situação internacional ao mesmo tempo contraditória e favorável. Sobre a política externa, diz a Plataforma: “O Brasil pode ter um lugar de destaque, num mundo em transição, com a ascensão da China e o declínio dos EUA. Nesse contexto, sem alinhamento automático, retomaremos de imediato a tradição da diplomacia brasileira com a Política Externa Independente (…), a parceria estratégica com a China e com os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), para garantir o fortalecimento e a defesa da Nação contra a dominação imperialista e com a autonomia necessária para a criação de condições para o desenvolvimento nacional independente”. Será prioridade da nossa PEI “a retomada do processo de integração latino-americana, apoiando-se em blocos como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul)”.
Sobre a defesa nacional, diz, em síntese, a Plataforma: “É fundamental que as Forças Armadas se preparem para sua função específica: defender a Pátria e consequentemente a soberania nacional e a nossa integridade territorial em face de eventuais ameaças de agressões externas. Não é papel das Forças Armadas a intervenção na vida política ou a sua utilização para fins de segurança pública, sendo assim necessária a imediata alteração do Artigo 142 da Constituição Federal, de onde seria excluído o poder de as FFAA serem os defensores da lei e da ordem”.
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