CARLOS LOPES
(17/03/2010)
Do ponto de vista dos diversos componentes do Produto Interno Bruto (PIB), o “crescimento negativo” de -0,2% em 2009, divulgado pelo IBGE na quinta-feira pela manhã, e ainda sujeito a revisões, deve-se a duas outras quedas, cada uma com um peso diferente no cálculo do PIB:
1) O volume de valor agregado (ou “valor adicionado”) na produção interna de mercadorias, e na oferta de serviços, em relação ao ano anterior, caiu: -0,1%.
2) Os impostos sobre os produtos (portanto, incorporados ao seu “valor final”, isto é, ao seu preço) caíram 0,8%.
O PIB é uma conta geral sobre o valor dos serviços e das mercadorias produzidas durante um ano dentro do país. Por isso, é interessante examinar seus componentes. O problema, portanto, é o que significam esses números, até porque o estardalhaço de parte da mídia serrista (a privilegiada mente do Otavinho logo produziu a manchete: “Brasil teve o pior PIB em 17 anos” – o que é literalmente falso) não tem apenas o objetivo de fazer campanha para Serra.
Ou, melhor, seria mais exato dizer que, para se prestar a panfleto de campanha eleitoral, essa mídia tem que evitar e desviar a atenção de qualquer análise séria sobre o que aconteceu, já que é diretamente responsável por esse resultado – não apenas pelo terrorismo pró-crise a partir do final de 2008, mas, sobretudo, porque o resultado do PIB de 2009 é uma consequência do que ainda não foi modificado na política econômica, em relação àquela do governo que ela apoiou, bajulou e açulou durante oito anos – ou seja, o governo em que seu candidato a presidente foi ministro do Planejamento.
“CHAVE DE OURO”
A “Veja”, que é mais competente em patifarias – e é serrista porque, antes de tudo, é “wallstreetista” – preferiu apoiar a linha “chave de ouro” do ministro Mantega, segundo a qual o resultado do PIB mostra que a economia brasileira está muito bem, pois outros países foram piores, e, de qualquer forma, os resultados do quarto trimestre de 2009 mostrariam que já saímos da crise, portanto não temos mais que falar no assunto. Essa impressionante solidez econômica, naturalmente, é devida ao descortínio de… Fernando Henrique, que deixou o país tão bem que nem um operário metalúrgico conseguiu estragá-lo. Segundo a revista dos Civita, “os juros devem subir” em 2010, mas “a perspectiva é maravilhosa” (sic), “caso não haja outra crise internacional”. De onde se conclui que a “Veja” conseguiu terminar com a crise atual nos EUA, Europa e Japão. Só falta avisar ao Obama, ao Sarkozy e a outros homens de pouca fé.
Por mais que seja rebarbativo lembrar mais uma vez, não é a ministra Dilma que eles querem na Presidência. Aliás, na mesma edição, continua de uma maneira particularmente sórdida a campanha de difamação contra o PT e o presidente Lula. Como sabe o leitor, no dia em que a “Veja” defender algo a favor do Brasil, do povo brasileiro ou do atual governo, teremos a certeza de que o mundo vai acabar. Portanto, desse perigo nós não vamos morrer.
Mas voltemos ao PIB: no resultado de 2009, a questão que essa mídia – e tudo o que há de mais reacionário no país – procura esconder é: por que entramos na crise dos países centrais?
Este é o problema expresso pelos números do PIB de 2009: por que essa crise, externa ao país, nos atingiu, ao contrário de crises anteriores nos EUA e Europa, em que o nosso país cresceu – e conseguiu, até mesmo, iniciar um novo ciclo de desenvolvimento durante a crise dos países centrais?
Não há “chave de ouro” que nos permita fugir a essa questão, exceto para quem considera que o Brasil tem automaticamente de entrar em crise quando os EUA entram em crise; para quem acha que o Brasil e sua economia devem ser, para todo o sempre, apêndices dos EUA e da economia norte-americana, mesmo quando a última está à beira da falência; e que tudo deve ser assim porque tem de ser assim. A mídia, ao contrário dos babaquaras que acreditam nela, sabe que nada disso é natural e que não é fácil manter o Brasil nessa camisa de força. Por isso, emprega tantos escribas de aluguel para afirmar que essa é a ordem normal das coisas.
No entanto, o problema poderia, ainda, ser formulado de outro modo: por que houve países que não entraram em crise? Por que a crise nos atingiu apesar dos esforços do presidente Lula – a história fará sua homenagem – que, na pior crise externa dos últimos 80 anos, impediu o desastre que houve aqui nas quebras do México, Ásia e Rússia, em que, segundo Fernando Henrique, nada havia a fazer, exceto piorar a situação com um aumento cavalar dos juros?
Se a crise conseguiu rebaixar um crescimento de +6,6% (terceiro trimestre de 2008) para -0,2% (2009), apesar de todos os esforços, isso somente quer dizer que algo necessita ser mudado para que esses esforços não sejam baldados. Mas isso é, exatamente, o que a oposição, na mídia e em outros antros, não quer que seja mudado.
Voltemos, então, às duas questões iniciais.
VALOR AGREGADO
A segunda delas não demanda maiores explicações. A queda nos impostos incorporados aos produtos é devida à diminuição de 2,9% no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e de 11,9% no Imposto sobre Importação (II). A queda no IPI incorporado ao preço dos produtos foi em razão de isenções e reduções estabelecidas pelo governo após a eclosão da crise dos EUA (só no primeiro semestre de 2009, essas isenções e reduções fizeram o governo arrecadar menos R$ 1,817 bilhão de IPI, o que foi compensado só parcialmente por outros impostos). A queda no II teve por causa a própria queda nas importações – não que elas fossem poucas (US$ 127,6 bilhões em 2009, o equivalente a 7% do PIB); mas caíram em relação aos US$ 173 bilhões de 2008.
Quanto à primeira questão – a queda no “valor agregado” – nós temos, realmente, um problema, que já foi bastante abordado antes da crise atual, entre outros pelo ex-ministro Delfim Netto. Portanto, é um problema que nada tem a ver com a crise atual, mas que esta tornou prementemente agudo.
Para os leitores que estão pouco acostumados à essa terminologia, que às vezes transforma coisas simples em algo que parece o próprio bicho de sete cabeças: “valor agregado” (ou, como prefere o IBGE, “valor adicionado”) é a diferença entre o valor da produção e o valor dos insumos e/ou bens intermediários usados nessa produção. Ou, o que é dizer a mesma coisa, a diferença entre o valor das mercadorias produzidas pelas empresas e o valor dos produtos que essas empresas consumiram para produzir essas mercadorias. Em suma, é o valor acrescentado (“adicionado” ou “agregado”) no processo de produção de uma mercadoria. Como sabe intuitivamente a maioria das pessoas, o aço produzido por uma siderúrgica tem mais “valor” do que a soma do valor dos insumos (minério de ferro e outros) que foram utilizados para produzi-lo, diferença de valor que se expressa na diferença de preço dessas mercadorias.
Evidentemente, quanto menos valor uma economia mercantil “agrega” ou “adiciona”, mais primitiva, mais dependente e mais miserável ela será, ou seja, menos possibilidade terá de criar riqueza real e satisfazer aos seres humanos – pois qualquer economia é, no final das contas, uma associação de seres humanos com a finalidade de produzir – e mais espoliado será o país.
Em 2009, comparado ao ano anterior, o volume de valor agregado pela indústria foi -5,51%. Na agropecuária, -5,2% (houve queda na produção de trigo, milho, café em grão e soja). Somente no setor de serviços o volume de valor agregado subiu: +2,6%, sobretudo devido à “intermediação financeira e seguros” (+6,5%). Porém, dentro dos serviços, o valor agregado caiu no comércio e nos transportes – ou seja, nos serviços mais ligados à produção.
Não foi somente a crise a responsável pela queda no valor agregado da economia. Na verdade, o terreno já estava minado. A crise fez explodir algumas dessas minas. A queda na taxa de investimento, com um decréscimo de -9,9% na Formação Bruta de Capital Fixo (compra de máquinas, equipamentos e outros fatores necessários à produção), é a mais evidente consequência desse terreno minado, que, por outro caminho, poderia ter sido evitado.
INDÚSTRIA
Vejamos os fatos no setor-chave para a agregação de valor, a indústria: entre 1971 e 1980, a variação média anual no volume de valor agregado pela indústria às mercadorias foi +9,38%. Depois da crise da dívida, na década de 80, e do barbarismo perpetrado pelo governo Collor, a indústria conseguiu chegar quase ao mesmo nível do período 1971-1980: em 1993, o volume de valor agregado na indústria, em relação ao ano anterior, foi +8,06% e +8,05% em 1994 (ver tabela abaixo).
Nessa época, as empresas brasileiras, como escreveu o atual presidente do BNDES, “vislumbravam planos de investimento de grande escala” (cf. Luciano Coutinho, “A especialização regressiva: um balanço do desempenho industrial pós-estabilização”, in J.P. Reis Velloso (org.), “Brasil: desafios de um país em transformação”, José Olympio, 1997, pág. 104 – grifo nosso).
Esses planos foram abortados logo em seguida. Em seu primeiro ano de governo, Fernando Henrique conseguiu reduzir para 4,72% o crescimento do valor agregado pela indústria; no ano seguinte, 1996, essa percentagem caiu a 1/8 daquela de 1994; o aumento em 1997 (4,24%) esteve longe de chegar ao patamar anterior ao governo Fernando Henrique – aliás, nem chegou ao resultado de 1995; em 1998, a variação no volume de valor agregado foi negativa, o que se repetiu no ano seguinte, e o resultado de 2000 (+4,83%) parece quase um milagre, apesar de sua mediocridade em relação a períodos anteriores. Mas, em 2001, essa taxa voltou a ser negativa (-0,62%), seguindo-se outra (+2,08%, em 2002) nada animadora.
VALOR ADICIONADO INDÚSTRIA (Variação real anual) |
|
1993 |
8,06% |
1994 |
8,05% |
1995 |
4,72% |
1996 |
1,07% |
1997 |
4,24%
|
1997 |
4,24% |
1998 |
-2,59% |
1999 |
-1,91% |
2000 |
4,83% |
2001 |
-0,62% |
2002 |
2,08% |
2003 |
1,28% |
2004 |
7,89% |
2005 |
2,08% |
2006 |
2,21% |
2007 |
5,27% |
2008 |
4,44% |
2009 |
-5,51% |
Fonte: IBGE |
O governo Lula, que herdou uma economia perto da implosão, em 2004, com a queda nos juros, uma política ativa do BNDES nos financiamentos à indústria nacional no ano anterior e com o BC não conseguindo ainda sobrevalorizar o real, fez com que a variação do valor agregado pela indústria quase voltasse ao nível anterior ao governo Fernando Henrique: +7,89%.
Infelizmente, não se conseguiu manter essa tendência – a alta dos juros, a hipervalorização do real e a entrada em volumes crescentes de “investimento direto estrangeiro” (IDE) não o permitiram.
CRISE
O sr. Luciano Coutinho, em outra época, escreveu que o governo Fernando Henrique “instalou um desincentivo à agregação de valor manufatureiro no país (….) com forte substituição de insumos locais por importados [e] rápida desnacionalização da indústria (….) reduzindo-se o grau de agregação de valor ao longo das respectivas cadeias industriais” (cf., op. cit., págs. 87, 92 e 94 – grifos nossos).
Para recuperar e aumentar o grau de valor agregado na indústria, portanto, não é remédio instalar filiais de multinacionais aqui dentro, ao invés de importar produtos acabados. Quando isso acontece – e tem acontecido muito amiúde – as importações passam a ser feitas pelas próprias filiais de multinacionais, sobretudo com o real hipervalorizado, como o BC o mantém desde 2005, o que barateia as importações de bens intermediários e componentes – e o resultado é que temos fábricas de celulares que apenas montam os componentes importados, fábricas de medicamentos que se especializam em importar insumos, fábricas de automóveis que são montadoras em sentido estrito, importando as peças de suas matrizes, e até fábricas de bens de capital que apenas revendem máquinas importadas – e que se dane o valor agregado dentro do país.
Em 1997, o sr. Coutinho fez duas advertências, que se mostraram inteiramente verdadeiras, sobre a estúpida entrada de “investimento direto estrangeiro” (IDE):
“… é também provável que gerem empreendimentos que operarão com coeficientes mais elevados de insumos e componentes importados (portanto, com nível significativamente mais baixo de agregação de valor no país)”.
E, na página seguinte do mesmo livro:
“… dadas as características dos projetos (parte importante destinada a aquisições e fusões), não se deve esperar que os investimentos em curso tenham impacto igualmente significativo na expansão da renda e do emprego” (op. cit., págs. 100 e 101 – grifos nossos).
O “desincentivo” à agregação de valor, portanto, é constituído pelos juros altos, pela sobrevalorização do real e pelo escancaramento do país para que o capital estrangeiro tome suas empresas.
Com a crise externa, seria necessário baixar imediatamente – e a níveis racionais – os juros, acabar com a hipervalorização do real e dirigir os financiamentos do BNDES para as indústrias nacionais não-monopolistas – e para as empresas estatais -, que são aquelas que mais compram insumos e bens intermediários dentro do país, portanto, as que mais agregam valor “ao longo das respectivas cadeias industriais”.
O BC fez exatamente o contrário – manteve os juros altíssimos e continuou com a hipervalorização do real, mesmo quando a guerra cambial americana já tinha sido desencadeada, precisamente com o objetivo primordial de sobrevalorizar as moedas dos outros países em relação ao dólar. E não nos deteremos mais no sr. Meirelles, pois nos parece óbvio o papel que jogou para que a crise entrasse no país.
Quanto ao sr. Coutinho, jamais nos pareceu do tipo que pede aos outros que esqueçam o que escreveu. Mas, diante da política do BNDES a partir da eclosão da crise nos EUA – aumentando a concentração dos financiamentos nos monopólios internos e nas multinacionais, isto é, nos maiores importadores de insumos e bens intermediários, portanto, nos que menos agregam valor na indústria – talvez ele é que tenha se esquecido.
Portanto, não custa lembrar.