Uma operação deflagrada pela Polícia Federal nesta quinta-feira (17) prendeu três pessoas por suspeita de envolvimento em um esquema milionário de arrendamento ilegal de uma terra indígena para pecuaristas em Ribeirão Cascalheira (MT). Os presos são Jussielson Gonçalves Silva, coordenador regional da Fundação Nacional do Índio (Funai), o sargento da Polícia Militar Gerrard Maxmiliano Rodrigues de Souza e o ex-policial militar do Amazonas, Enoque Bento de Souza. As prisões ocorreram durante a Operação Res Capta, deflagrada pela Polícia Federal, nesta quinta-feira (17), contra o arrendamento de terras indígenas para pecuaristas.
Militar inativo da Marinha, Jussielson Gonçalves Silva foi nomeado para chefiar a Coordenação Regional (CR) de Ribeirão Cascalheira em março de 2020. A substituição de servidores de carreira por militares foi uma manobra do governo de Jair Bolsonaro para paralisar a política indigenista prevista na Constituição, segundo já denunciaram indígenas e indigenistas. Militares já ocupam 60% das CRs da Funai na Amazônia.
A terra indígena estava arrendada para pecuaristas, com a autorização do cacique Cacique Damião Paridzané, que recebia R$ 900 mil por mês. Também foi apreendida um caminhonete SW4 que ele teria recebido em troca da permissão da concessão ilegal da área. O veículo está avaliado em R$ 366, 9 mil. Mais de 70 mil cabeças de gado eram criadas na área, segundo a PF.
O Ministério Público Federal (MPF) não tem dúvidas de que o dinheiro das contas do cacique é “oriundo das parcerias espúrias formadas no interior da terra indígena para a exploração maciça da área indígena sem qualquer controle por parte da Funai”.
Segundo a PF, por mês, recebia em torno de R$ 900 mil dos fazendeiros. Servidores da Funai também ganhavam propinas, mas não há informações sobre os valores pagos a esses funcionários. No entanto, segundo o MP, eram pagas quantias milionárias para que os fazendeiros tivessem acesso à Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante. Os arrendamentos teriam começado em 2017.
Além disso, a polícia também identificou transferências bancárias de suspeitos de envolvimento no esquema à conta do cacique. Uma delas foi em janeiro deste ano, no valor de R$ 120 mil, à Cooperativa de Crédito de Livre Admissão de Associados do Alto Xingu. Os pagamentos, realizados em espécie, ocorriam dia 15 de cada mês por meio de transações bancárias. A “comissão” do coordenador da Funai era de 10% por cada medição, conforme a polícia. Ele ainda recebia para recrutar perfis dispostos a engrossar o bando dos crimes ambientais.
“PARCERIAS”
Ironicamente, a Coordenação Regional (CR) da Funai chefiada por Jussielson era considerada modelo pela gestão do presidente da órgão, Marcelo Xavier. Na região, o órgão indigenista incentiva diretamente “parcerias” entre povos originários e grandes fazendeiros.
O esquema era disfarçado sob a forma de projeto. Em junho de 2021, matéria publicada no site oficial da Funai destacava um projeto de “promoção da segurança alimentar e etnodesenvolvimento dos Xavante”, que promovia a mecanização da lavoura dentro de uma terra indígena no município de Canarana, na área coordenada por Jussielson. “Esse é o caminho. O coordenador regional Jussielson Gonçalves e a prefeitura de Canarana estão de parabéns. Isso pode ser reproduzido em outras aldeias. Pode servir de modelo”, disse o presidente da Funai, em comunicação institucional.
Xavier também se gabava pelos “feitos” da CR de Ribeirão do Cascalheira. “A Funai vem apoiando diversas atividades produtivas desenvolvidas por comunidades indígenas da etnia Xavante ao longo dos anos. Em 2021, a fundação deu suporte à coleta de sementes, frutos e batatas tradicionais na aldeia Santa Cruz da Terra Indígena (TI) Pimentel Barbosa. Ainda na TI Pimentel Barbosa, a Funai apoiou a lavoura de milho”, prossegue a matéria da Funai.
Seguindo a linha do autoelogio, há essas e outras dezenas de matérias disponíveis no site da Funai que relatam experiências semelhantes de introdução da lógica do agronegócio em terras indígenas do Mato Grosso. No lugar do modo de vida tradicional em harmonia com a floresta, extensas lavouras mecanizadas com produção de commodities agrícolas
“Porque tem gente roubando o senhor, cacique, tem gente roubando o senhor. (…) Porque ele é para pagar 200 mil e paga 80 mil”. “Até o ano que vem, o senhor tem que estar ganhando um milhão e meio”. Em transcrição de áudio divulgada pelo Ministério Público Federal (MPF) de Mato Grosso, Jussielsson aparece estimulando a liderança indígena Xavante a cobrar mais pelo arrendamento das terras.
Em outro momento, o coordenador relata que vai “começar a medição do pasto para aumentar o valor do arrendamento”. “Essa semana agora que vem já vamos começar a pressionar o pessoal para fazer o pagamento, ‘tá’?”, diz o integrante da Funai ao cacique da terra indígena invadida.
Nota da PF diz ter identificado “extenso dano ambiental provocado por queimadas para formação de pastagem, desmatamento e implantação de estruturas voltadas à atividade agropecuária”.
Para reparar os danos causados somente por quatro dos 15 mil arrendamentos ilegais, calcula-se a quantia de R$ 58 milhões. A Justiça Federal determinou que as 70 mil cabeças de gado levadas à terra indígena sejam retiradas no prazo de 45 dias, sob pena de prisão.
Em coletiva, o delegado da PF de Barra do Garças, Mário Sérgio Ribeiro de Oliveira, disse que a operação apura diversos crimes com o aval de lideranças indígenas locais, como queimadas para a formação de pasto, corrupção de agentes públicos da Funai, desmatamento para a construção de curral e cerca.
“A Justiça Federal de Barra do Garças determinou a prisão de três pessoas. Além dessas preventivas, durante o cumprimento dos mandados, uma pessoa foi presa em flagrante em razão de estar portando uma arma de fogo sem registro”, informou.
Os arrendatários irão responder criminalmente. A PF afirma que são pessoas com elevado poder aquisitivo.
Em nota, a Funai disse não compactua com nenhum tipo de irregularidade e que está à disposição para colaborar com as autoridades. “A Fundação Nacional do Índio (Funai) esclarece que não coaduna com nenhum tipo de conduta ilícita e está à disposição das autoridades policiais para colaborar com as investigações”. Informa, ainda, que o arrendamento de Terras indígenas é vedado e que o coordenador será afastado da função.
CONDECORAÇÃO
Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro e diversos ministros do seu governo foram condecorados pelo titular da pasta da Justiça, Anderson Torres, com a medalha do mérito indigenista em “reconhecimento pelos serviços relevantes em caráter altruísticos, relacionados com o bem-estar, a proteção e a defesa das comunidades indígenas”. Lideranças indígenas Kalapalo, Xavante, Surui e Kamayurá, presentes à cerimônia, também foram homenageados com a medalha. O que levaria lideranças indígenas a participar das pataquadas desse governo? “Estímulos” financeiros, talvez.
Um dos maiores sertanistas do país, ex-presidente da Funai Sidney Possuelo, devolveu a medalha que havia recebido em 1987 ao saber que o presidente seria agraciado. Responsável pela demarcação da Terra Yanomami –constantemente criticada por Bolsonaro porque seria grande demais–, Possuelo enviou a comenda com uma carta ao ministro da Justiça.
“Entendo, senhor ministro, que a concessão do Mérito Indigenista ao senhor Jair Bolsonaro é uma flagrante, descomunal, ostensiva contradição em relação a tudo que vivi e a todas as convicções cultivadas por homens da estatura dos irmãos Villas Boas”, escreveu Possuelo na carta em que devolveu a medalha ao ministério.
O sertanista disse ainda que recebeu com “surpresa e natural espanto” a notícia da medalha para Bolsonaro e recordou que Bolsonaro, quando deputado, afirmou que a “cavalaria brasileira foi incompetente” por não ter dizimado todos os índios no país, como teria feito a norte-americana.