
O PSB protocolou uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a suspensão de dois decretos do governo de Jair Bolsonaro, emitidos neste ano, que instituíram novas regras que afrouxam normas e estimula o garimpo no Brasil. O partido considera que a prática do garimpo é “altamente danosa ao meio ambiente” e que os decretos de Bolsonaro “formalizam” atividades ilegais atualmente em curso. A ação, ajuizada no dia 25, terá como relator o ministro André Mendonça.
O Decreto 10.966/2022 institui o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (Pró-Mape), cuja finalidade é desenvover políticas públicas de estímulo à mineração, com foco na região da Amazônia Legal.
Já o Decreto 10.965/2022, ao dar nova redação ao Decreto 9.406/2018, estabelece critérios que facilitam a outorga de empreendimentos de mineração pela Agência Nacional de Mineração (ANM) e cria hipótese de registro de licenciamento tácito.
Para o partido, os decretos de Bolsonaro são incompatíveis com o sistema de proteção constitucional ao meio ambiente, na medida em que buscam formalizar e incentivar práticas ilegais, que resultam em retrocesso em matéria ambiental.
Na peça, a legenda destaca que a publicação do decreto foi recebida com “enorme preocupação por especialistas e entidades voltadas à proteção do meio ambiente e de povos tradicionais, que apontam para o indevido incentivo ao garimpo – prática altamente danosa ao meio ambiente – e para o declarado intuito de ‘formalização’ de atividades ilegais atualmente em curso”.
“Observa-se que a simplificação dos processos de autorização e o registro tácito de licenciamento flexibilizam e facilitam a formalização de empreendimentos de garimpo – atividade que, justamente por trazer tantos impactos socioambientais negativos, deveria ter sua fiscalização e acompanhamento intensificados por parte das autoridades competentes”, argumenta o PSB.
Para Alessandra Munduruku, liderança que denuncia o aumento massivo de balsas garimpeiras dentro da Terra Indígena Munduruku, desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, em 2019, o decreto 10.966/2022 escancara as portas para invasores. “Nós vamos fazer de tudo para segurar a porta dessa nossa casa, que é a floresta, para que os garimpeiros não entrem, não arrombem tudo, não nos matem. Porque esse governo, desde o começo, sempre quis nos matar”, disse Alessandra à DW Brasil, pontuando que uma das promessas de campanha de Bolsonaro era não demarcar terras indígenas.
A Constituição Federal proíbe a atividade garimpeira nesses territórios, mas muitas licenças concedidas pela Agência Nacional de Mineração (ANM) estão geograficamente próximas a áreas indígenas, e a exploração avança também sobre unidades de conservação.
“Esse decreto mostra como o governo vem trabalhando na Amazônia: ele quer pegar todas as operações ilegais e transformar em legais, em mercado formal”, afirma Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas, entidade que atua em defesa do meio ambiente.
Um estudo coordenado por Rodrigues detalha como o metal precioso é extraído na clandestinidade. Em Raio X do Ouro, os autores concluem que quase metade da produção registrada de 2015 a 2020 tem origem duvidosa. Cerca de 229 toneladas, das 487 estimadas no período, podem ser ilegais – e mais da metade (54%) vem da Amazônia.
NÃO EXISTE MINERAÇÃO ARTESANAL
“Não existe ‘mineração artesanal’. O garimpo não é pequeno, rudimentar, como o título do decreto tenta passar. É uma cadeia industrial bem organizada, com muitos laços familiares e de negócios que vão gerar conflito de interesse na hora de fazer controle da origem de ouro”, diz a pesquisadora.
Ainda não foi definido como o Pró-Mape irá funcionar na prática. A expectativa, porém, é que as regras detalhadas sejam conhecidas em breve. No entanto, o decreto complementar 10.965 publicado na sequência, dá mostras do desmonte ambiental: a resolução determina que a ANM adote critérios simplificados para dar autorização ao garimpo.
“Na prática, todo mundo que fizer pedido de garimpo terá a concessão. Esse decreto tira o poder da agência de fazer análises”, analisa Rodrigues. O resultado, denuncia a pesquisadora, será uma explosão de garimpos na Amazônia.
Análise de mais de 40 mil registros da ANM e de imagens de satélite, aponta que a comercialização do ouro com indícios de ilegalidade envolve as principais empresas que compram o minério de garimpos na Amazônia, informa o Instituto Escolhas. “Nessa teia, há ligação delas com o garimpo ilegal”, denuncia Larissa Rodrigues.
Extração em terras indígenas ou unidades de conservação; títulos fantasmas usados para lavagem de ouro; extração para além dos limites geográficos autorizados; ausência de informação sobre os títulos de origem; exportação do metal sem os registros da produção oficial. Esses são os principais crimes apontados no comércio do ouro.
Com tanta ilegalidade, seria impossível que autoridades não detectassem os problemas. “Se o nosso estudo, que usou dados abertos, consegue comprovar que é possível monitorar o ouro, o governo também consegue e poderia fazer o mesmo imediatamente”, critica Larissa Rodrigues.
Erika Berenguer, pesquisadora sênior das universidades de Oxford e Lancaster, na Inglaterra, avalia que o decreto sinaliza o rumo que o último ano do atual mandato de Bolsonaro vai seguir. “Pode ser uma estratégia eleitoral de liberar o que não passou no Congresso. Será o ano mais difícil e duro para o meio ambiente no país”, analisa em entrevista à DW Brasil.
Ela é responsável por um dos capítulos dedicados aos impactos da mineração na Amazônia do relatório do Scientific Panel for the Amazon (SPA). O painel tem como objetivo reunir resultados publicados em estudos e traçar um panorama do que a ciência já sabe sobre a região. “Não faltam evidências do grande problema que é o garimpo na Amazônia, que provoca desmatamento, poluição e destruição de rios, contaminação de mercúrio nas populações humanas”, resume Berenguer.
CONTAMINAÇÃO
Uma das conclusões mais preocupante do estudo pelo qual ela é responsável é o impacto da atividade na segurança alimentar das populações locais. “O avanço do garimpo é tão alto em certas áreas, como no médio Tapajós, que os peixes estão tão contaminados que as populações que se alimentam dos peixes já apresentam uma série de problemas neurológicos por causa do mercúrio”, revela.
“Mercúrio não é expelido pelo corpo, ele se acumula. Há estudos que falam em aborto natural em botos na Amazônia por conta da contaminação de mercúrio. Há jacarés com alto nível de mercúrio. São animais, como o ser humano, que estão no topo da cadeia alimentar”, diz a pesquisadora.
O mercúrio, substância altamente tóxica, é usado pelos garimpeiros para unir os fragmentos de ouro e formar amálgamas. Ao fim do processo de extração, as partes que não interessam, como os restos contaminados, normalmente são descartadas no rio.
Em comunidades onde o peixe é a principal fonte de proteína, o mercúrio se acumula no tecido adiposo, o que gera graves problemas de saúde. “Estudos com os Munduruku no Tapajós falam em problemas neurológicos como insônia, ansiedade, dificuldade locomotora e cognitiva nas crianças. Está sendo indicado que eles não pesquem mais. Agora, como eles vão viver, o que eles vão comer?”, questiona Berenguer.
“É como promover uma matança dos rios, dos povos indígenas”, diz Alessandra Munduruku sobre o impacto direto do mercúrio”. Alvo de ataques e de ameaças constantes por denunciar invasões de garimpeiros no território, líder indígena sustenta que não vai parar de chamar a atenção para os crimes ambientais e violações dos direitos indígenas.
“Garimpo não é sustentável. Esse decreto é feito de mentiras e vai facilitar também a entrada de mineradoras em terra indígena. Junto com o garimpo, vem droga, prostituição, álcool, pistas clandestinas de pouso, máquinas que fazem estrada de pouso para os aviões – porque não tem fiscalização”, explica. Ela cita que no território Yanomami, nos estados de Roraima e Amazonas, há cerca de 20 mil garimpeiros ilegais atualmente. “Quem usa anel e colar de ouro, quem vende mercúrio para os garimpeiros – todos têm responsabilidade”, aponta a líder Munduruku.