
Após 134 anos da Abolição da Escravatura, celebrados nesta sexta-feira, 13 Maio, é espantoso perceber que ainda há indivíduos, famílias e empresas que, para benefício próprio, querem restaurar a escravidão no Brasil.
É o caso de uma família, no Rio de Janeiro, que por 72 anos manteve uma mulher negra sob trabalho escravo doméstico. A mulher, hoje com 84 anos, foi resgatada após uma ação de fiscalização da Auditoria Fiscal do Trabalho no Rio, que contou com a participação do Ministério Público do Trabalho. O caso foi relatado em matéria publicada no Repórter Brasil.
A doméstica, que chegou à casa da família onde serviu a três gerações, aos 12 anos, nunca recebeu salário, tinha visitas e telefonemas controlados, o contato com o mundo externo dificultado, e ainda dormia na antessala do quarto da empregadora.
Durante toda a sua vida, diariamente cuidou dos afazeres da casa e dos moradores, incluindo as crianças. Ao ser resgatada, atuava como cuidadora da empregadora, embora as duas tenham praticamente a mesma idade.
Segundo o Ministério do Trabalho e Previdência essa é a mais longa duração de exploração de uma pessoa em escravidão contemporânea desde 1995, quando o Brasil criou o sistema de fiscalização para enfrentar esse tipo de crime. Os dados do ministério apontam que nesses 27 anos, mais de 58 mil pessoas submetidas ao regime de trabalho escravo ou análogo à escravidão foram resgatadas pelo poder público.
Conforme o auditor fiscal do trabalho, Alexandre Lyra, que coordenou a ação, a família alega que ela era “como se fosse da família” e que os serviços prestados não eram trabalho, mas uma colaboração voluntária no âmbito familiar.
Mas durante as investigações, vizinhos confirmaram que ela era tratada como empregada doméstica e não como “se fosse da família”, como alegado.
A irmã e uma sobrinha da trabalhadora também confirmaram a relação de emprego, afirmando que ela havia se mudado com a família para o Rio na intenção de estudar.
“Em casos como este ouvimos sempre a afirmação de que a vítima é ‘como se fosse da família’. Mas para essa pessoa da família não foi permitido estudo, nem laços de amizade externos ou mesmo conduzir a própria vida. Essa pessoa da família dorme em um sofá, em um espaço improvisado como dormitório em uma antessala do quarto da empregadora, de quem ela era cuidadora”, diz o auditor Alexandre Lyra.
Para a coordenadora e psicóloga social do Projeto Ação Integrada, que atua junto ao Ministério do Trabalho, Yasmim França, “o pós-resgate é um momento para que as vítimas pensem em projetos de vida e fortaleçam vínculos familiares e comunitários. Uma caminhada longa”, diz, já que muitas vezes os trabalhadores têm a compreensão de que não são membros da família, mas avaliam que, em um cenário sem opções, essa foi a única que tiveram.
“Isso gera um sentimento de lealdade, há uma servidão por dívida de gratidão”, afirma Yasmim ao comentar o fato de a trabalhadora declarar à fiscalização que estava preocupada com a empregadora, que não ia ter mais ninguém para cuidar dela.
“No trabalho escravo doméstico, o abuso de vulnerabilidade é levado a um extremo que pode dificultar o reconhecimento da condição pelas próprias vítimas e mesmo a atuação dos órgãos de repressão. É importante a atuação do Estado para a necessária assistência e proteção a fim de que elas sejam acolhidas e possam sair dessa situação”, explica o procurador do Trabalho, Thiago Gurjão.