Maior empresa de energia da América Latina é entregue a estrangeiros. “Nenhum país de base hidroelétrica significativa privatiza seu setor elétrico. China, Estados Unidos, Canadá, Rússia, Japão, Suécia, Noruega e Índia não caíram nessa esparrela, diz especialista
Durante a noite da última quinta (9), o governo Bolsonaro deu início ao processo da oferta pública de ações da Eletrobrás nas bolsas brasileira e de Nova York, o que resultou na privatização da estatal e no fim da soberania do povo brasileiro sobre o setor elétrico. A Eletrobras é responsável por 16 empresas de geração de energia elétrica. Entre elas, a Chesf, a Eletronuclear, Furnas, Eletronorte e 50% de Itaipu.
O preço por ação na oferta da Eletrobrás foi definido em R$ 42, levantando um total de R$ R$ 29,29 bilhões, segundo comunicado divulgado nesta sexta-feira (10) pela direção da companhia. O total da operação pode chegar a R$ 33,68 bilhões, considerando o lote suplementar, que corresponde a 15% do lote inicial de 697.476.856 ações ordinárias.
O prazo de intenção de compra e reserva de ações teve início na sexta-feira (3) e se encerrou na quarta-feira (8). A oferta foi aberta para especuladores locais e estrangeiros, além de ser abastecida com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) dos trabalhadores. O governo autorizou o uso de até 50% do valor da conta vinculada ao FGTS para trabalhadores participarem da operação.
Os recibos de ações American Depositary Receipt (ADR), ou Depósito de Recibo Americano, vendidos na oferta começaram a ser negociados nesta sexta-feira (10) na Bolsa de Nova York (Nyse). No caso do FGTS, os recursos sairão diretamente do Fundo de Garantia.
Com a entrega da maior empresa de geração e transmissão de energia elétrica da América Latina, a participação do governo deve cair de 72% a cerca de 45%. Neste processo de pilhagem do patrimônio nacional, o fundo soberano de Cingapura GIC, o canadense CPPIB e o grupo brasileiro 3G – pertencente a Jorge Paulo Lemann e seus sócios na Ambev, devem se tornar os maiores acionistas da Eletrobrás, segundo fonte ouvida pela Folha de São Paulo. Além destes, o Banco Clássico, de José Abdalla Filho, um relevante acionista da Petrobrás, também foi apontado entre os maiores acionistas privados da estatal.
CRIME DE LESA-PÁTRIA
O processo de privatização da Eletrobrás foi marcado por denúncias de irregularidades e ilegalidades e alertas de especialistas do setor para a tragédia e o crime de lesa-Pátria praticado pelo governo Bolsonaro.
De acordo com o especialista do setor, Roberto Pereira D’Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina), “nenhum país de base hidroelétrica significativa privatiza seu setor elétrico. China, Estados Unidos, Canadá, Rússia, Japão, Suécia, Noruega e Índia não caíram nessa esparrela”, criticou.
Com base em dados do site Statista, sobre “as mais valoradas” empresas do setor elétrico Roberto D’Araújo afirmou que “a Eletrobrás não pode valer um quarto de uma empresa inglesa, que tem muito menos transmissão do que Eletrobrás e nenhuma usina”. A décima colocada é a inglesa National Grid, “uma empresa que só tem transmissão, não tem nenhuma usina e vale US$ 44 bilhões”.
“Se uma empresa que só tem transmissão – e muito menos transmissão do que a Eletrobrás – e não tem nenhuma usina vale 44 bilhões de dólares, como é que a Eletrobrás vai valer 10 bilhões de dólares?”, questionou o engenheiro eletricista. “É doar de graça uma empresa com um potencial impressionante”, criticou D’Araújo.
O mestre em engenharia nuclear e doutor em energia pela USP, Joaquim Francisco de Carvalho, também critica a entrega da Eletrobrás para o setor privado. “O controle das grandes usinas hidrelétricas é estratégico. Por esta razão, até nos Estados Unidos, as grandes hidrelétricas pertencem e são operadas por entidades públicas”, lembrou Carvalho.
“A energia elétrica é um monopólio natural, do qual dependem a produção industrial, as comunicações, o ensino, a conservação dos alimentos, ou seja, praticamente tudo. Assim, as tarifas elétricas não devem visar à maximização de lucros para grupos privados, pois influenciam todos os custos da economia, podendo gerar tendências inflacionárias, inviabilizar indústrias e excluir do consumo as famílias menos favorecidas”, acrescentou Carvalho, lembrando que 77% dos consumidores ingleses querem a reestatização das empresas de energia elétrica que foram privatizadas pela premier Margareth Thatcher.
De acordo com cálculos da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobrás (Aesel), somente os valores de ativos de transmissão da estatal somam R$ 50 bilhões. Para se construir toda a estrutura da estatal, hoje teriam que ser investidos entre R$ 470 bi e R$ 600 bi, segundo a associação.
O diretor da Aesel, Íkaro Chaves, destaca que os cerca de R$ 30 bilhões que o governo deve arrecadar com a privatização, é metade do valor que a empresa tem em caixa e a receber nos próximos 4 anos. “A Eletrobrás tem R$ 15 bilhões em caixa agora e mais R$ 44 bilhões para receber nos próximos quatro anos”, disse.
Com a privatização da Eletrobrás, a conta de luz vai subir de 15% a 25%, segundo estimativas do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese). O órgão sindical de pesquisa explica que para atender os consumidores residenciais a energia de 20 hidrelétricas que pertencem a Eletrobrás é gerada a preço de custo. Sob o controle privado, o caráter social da empresa irá se perder, já que os novos controladores seguirão afio os ditames do chamado “mercado”, visando somente o aumento dos lucros dos acionistas.
AÇÕES CONTRA A PRIVATIZAÇÃO
A Justiça Federal deu um prazo de 72 horas para que o governo Bolsonaro forneça explicações sobre o processo de privatização da Eletrobrás. A determinação veio por meio da ação popular movida pelo líder da oposição no Senado, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que tenta barrar a venda da estatal.
O senador apontou na ação que não foram cumpridas as condicionantes para a privatização e o processo descumpre a lei ao prever a capitalização antes da assinatura de contratos de novas concessões para a geração de energia elétrica.
“O desrespeito ao devido processo legal torna este processo passível de anulação. Bolsonaro está vendendo uma empresa estatal para tentar contornar os seus atos que entregaram o povo brasileiro à miséria”, disse Rodrigues na ocasião.
As siglas partidárias Partido Democrático Trabalhista (PDT), Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido dos Trabalhadores (PT), Socialismo e Liberdade (PSOL) e Rede Sustentabilidade também buscam barrar na Justiça o processo de privatização da Eletrobras, por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6932, conta a lei que autoriza a privatização a companhia.
Na medida provisória (MP) que propôs a privatização da Eletrobrás foram introduzidos vários ”jabutis” – como são chamados os penduricalhos ‘estranhos’ ao texto original, negociados com os parlamentares para a aprovação da MP – como contratação de termelétricas, a carvão, mais caras e mais sujas para o meio ambiente – que serão pagos pelos consumidores. A União pela Energia, que reúne associações do setor elétrico, calcula que o impacto será de R$ 84 bilhões, valor a ser repassado para as tarifas.
“Trata-se de matéria que foge ao escopo da MP proposta pelo Executivo e que modifica a matriz energética brasileira, criando reservas de mercado adotadas sem o devido planejamento técnico”, denunciam os partidos na ação.