CARLOS LOPES
Há poucas vidas de que pode-se dizer, como a de Eduardo de Oliveira, que foram um triunfo completo da justiça sobre a injustiça; da generosidade sobre a mesquinharia; da ternura sobre o rancor; da felicidade sobre o ressentimento.
Em suma, uma vitória completa do amor sobre o ódio, da bondade sobre a perversidade, do humano sobre o desumano.
Como podia aquele homem reunir em si a firmeza sem concessões da luta, por décadas, contra as mais odiosas discriminações e preconceitos com tanta capacidade de compreender os outros seres humanos, suas motivações, até mesmo – aliás, principalmente – suas discordâncias?
No entanto, poucos de nós tiveram de lutar, como aconteceu com ele, desde o nascimento. Ele dizia, com aquele jeito ao mesmo tempo doce e enérgico que é (pelo menos para o autor destas linhas) impossível de reproduzir por escrito: “eu não tenho ascendência – não sei quem foi meu pai ou minha mãe, muito menos quem foi minha avó ou meu avô”.
Era como se a sua origem tivesse definido as vicissitudes – e as conquistas – posteriores. E, com efeito, foi assim. Ele era um homem – e um herói. Um dos poucos a quem esta última palavra não apenas descreve simplesmente um fato, mas, além disso, não parece exagerada.
Todos o conheciam como “o professor”, o que era menos uma designação profissional, que o reconhecimento à sabedoria que estava em sua aura. Seu legado pertence a todos os seres humanos, em especial aos brasileiros – e, entre estes, especialmente aos negros -, mas há algo que somente os que o conheceram pessoalmente guardarão na lembrança: o modo como o ambiente parecia iluminado – isto é, mais alegre, mais feliz – quando Eduardo de Oliveira entrava, sempre modestamente, nele.
Durante as homenagens no velório da noite na última quinta-feira, na Câmara Municipal de São Paulo, em mensagem, Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias, citou os versos da música de João Nogueira e Paulo César Pinheiro: O corpo a morte leva/ A voz some na brisa/ A dor sobe para as trevas/ O nome a obra imortaliza“.
Com efeito. E muito bem dito. Mas o que foi a obra de Eduardo de Oliveira?
A obra de um homem jamais é apenas o que ele escreveu. Não foram apenas os poemas, aqueles que, no dizer de Tristão de Athayde, fizeram dele, com Aimé Césaire e Leopold Senghor, um dos três grandes poetas da negritude, que constituem a obra de Eduardo de Oliveira.
Mas, talvez, na dimensão da poesia, esteja uma demonstração do que foi o conjunto de sua obra.
Como poeta, Eduardo de Oliveira era diferente de seus grandes companheiros – de poesia e de negritude.
No túmulo de Césaire, no Pantheon, em Paris, estão, extraídos de seu poema “Calendrier lagunaire”, os seguintes versos do poeta francês nascido na Martinica – e definido, na lápide, muito justamente, como “incansável artesão da descolonização, combatente de uma negritude fundada sobre a universalidade dos direitos do homem”:
“Eu habito uma ferida sagrada
Eu habito ancestrais imaginários
Eu habito um querer obscuro
Eu habito um longo silêncio
Eu habito uma sede irremediável“
São belos versos. Mas Eduardo de Oliveira jamais escreveria assim, e não é apenas uma questão de individualidade – ou, melhor, é uma questão do que constituiu, em cada um, a própria individualidade.
Lembremos os versos de Eduardo de Oliveira em homenagem a Patrice Lumumba, no seu livro “Banzo”, de 1965:
“Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Trago em meu corpo a marca das chibatas
como rubros degraus feitos de carne
pelos quais as carretas do progresso
iam buscar as brenhas do futuro.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Eu vi nascer mil civilizações
erguidas pelos meus potentes braços;
mil chicotes abriram na minh’alma
um deserto de dor e de descrença”
Ou os dois quartetos do soneto, escrito 32 anos depois, também em homenagem a Lumumba:
“Sobre sua cabeça congolesa
cada cabelo seu representava
uma esperança pelo ideal acesa
de sua raça incrivelmente escrava.
Alma sem cor, à liberdade presa,
sorria auroras quando agonizava
e a lágrima do Congo, de tristeza,
transformava-se na mais ardente lava.“
Há uma vivacidade que não se encontra, apesar de todos os seus méritos, que são imensos, em Aimé Césaire. Ao contrário deste, Eduardo de Oliveira jamais seria atraído, por exemplo, pelo surrealismo (ou, no caso de Senghor, pelo cubismo). Seu terreno é sempre o da realidade nua, crua – e cruel. Mas, por isso mesmo, a luta – e, portanto, a esperança – percorre cada um dos seus versos. O “deserto de dor e descrença” é diretamente oposto a “mil civilizações/ erguidas pelos meus potentes braços”. E a “lágrima do Congo, de tristeza/ transformava-se na mais ardente lava“.
Também como poeta, ele enfrentou a incompreensão. Apesar de poemas que nem um adepto da “pura estética” (?) poderia desprezar:
“A pedra é a obsessão dessa quietude
que aterroriza o horror da própria morte,
quando lamenta a sua triste sorte
sem ter, sequer um sentimento rude!
A pedra aprisionou-se no ataúde
das coisas primitivas e sem norte!
neste caso, não pode haver transporte
que altere a sua estática atitude!
Quem será que tolheu seus movimentos,
sem sentir os seus mudos sofrimentos
na imutabilidade que a devora?
É a própria natureza, aí, calada,
na horrível sensação de não ser nada
na sequência dos séculos afora!“
Existe algo semelhante a Augusto dos Anjos neste soneto – mas, afinal, Augusto dos Anjos também foi subestimado (e por Bilac, aquele que a República Velha chamava “o príncipe dos poetas”).
A VIDA
Eduardo de Oliveira, criança e órfão, foi adotado por um homem decente, a quem sempre foi grato – mas, este homem adotara também uma menina, branca (“ele queria fazer uma bandeira paulista através dos filhos”, dizia o poeta, rindo). Foi o suficiente para que se fabricasse um escândalo em São Paulo – e não porque o pai adotivo, que era celibatário, tivesse qualquer comportamento inapropriado, mas porque, segundo a Justiça (Deus!) da época, era promiscuidade a convivência de um menino negro e uma menina branca na mesma casa. Assim, a alternativa da odiosa sentença era: ou um ou outro. A criança negra foi, então, desadotada – se é que a palavra existe, mas a injustiça existiu. O poeta não guardava ressentimento pela decisão do pai adotivo, de manter a menina branca: “eu tive que ser internado outra vez, mas ele nunca esqueceu – fazia sempre reuniões de nós três na casa dele”.
Aqui está a essência da obra de Eduardo de Oliveira: uma recusa absoluta a esmagar-se diante das dificuldades. Algo que não podemos encontrar totalmente em Césaire ou em Senghor.
Qual o homem, com essa vida, que poderia, como ele fez em “Gestas Líricas da Negritude” (1967), ter escrito: “Eu seguirei feliz, de braços dados/ com meus irmãos dos cinco continentes…/ que a todos amam, porque são amados.// E quando se ama a Humanidade inteira,/ os ideais – por mais nobres, mais ardentes -/ irmanam-se numa única bandeira.“?
Mas talvez não seja uma novidade que a libertação dos negros, que são parte da Humanidade, esteja diretamente ligada, indissoluvelmente, à libertação da própria Humanidade. Já se disse: uma nação que oprime outras não pode ser livre. Menos ainda uma etnia – uma parte da Humanidade – que oprime outras.
No entanto, menos claro, hoje, é que a obra de libertação dos negros é a libertação do Brasil. Este é o país que os negros têm de assumir, pois eles o construíram. O fim do racismo não é uma necessidade apenas dos negros, mas do Brasil. Como poderemos encontrar nosso destino, se uma parte de nós for discriminada por outra? Mas é verdade que é nas mãos sobretudo dos negros que está essa missão de liberdade. Nesse sentido, eles são os portadores, por excelência, ainda que não exclusivos, dos destinos da Pátria. Dois homens condensaram essa missão dos negros: Luiz Gama e Eduardo de Oliveira. Num outro soneto, também de 1997, diz ele que “Meu legado, que é rico e tão valioso” é “ter dado ao Brasil a própria vida!“.
Um pensador afirmou há tempos que o “otimismo” que ignora as agruras da realidade é completamente estranho ao patriotismo. Daí, em “Lamento negro”, diz o poeta:
“A pátria de hoje
É um pedaço de tristeza
e de soluço dos meus avós,
atirada pelas tumbas sem legendas.”
Fiel a si próprio, Eduardo de Oliveira, fundador e presidente do Congresso Nacional Afro-Brasileiro, era membro-fundador e dirigente nacional do Partido Pátria Livre (PPL).
LEGADO
Era homem de cultura imensa.
Em 2009, descobri, entre os livros digitais gratuitos do “Domínio Público”, um exemplar de “Primeiras Trovas Burlescas de Getulino“, o livro de poemas de Luiz Gama, há muitos anos sem reedição. Fiquei eufórico. No mesmo dia, o professor Eduardo visitou nossa redação. Disse a ele que estava pensando em publicar um dos poemas de Gama, “Quem sou eu?”.
Imediatamente, ele respondeu: “ah, sim, ‘A Bodarrada’”. Ele conhecia o poema – e seu nome popular, pois, nele, Gama satiriza àqueles que falavam do cheiro dos negros e os apelidavam de “bodes” (dizia o abolicionista: “todo mundo tem a mesma catinga”: “Bodes há de toda a casta,/ Pois que a espécie é muito vasta…/ Há cinzentos, há rajados,/ Baios, pampas e malhados,/ Bodes negros, bodes brancos,/ E, sejamos todos francos,/ Uns plebeus, e outros nobres,/ Bodes ricos, bodes pobres,/ Bodes sábios, importantes,/ E também alguns tratantes…“).
Era para mim impressionante encontrar alguém que lera as “Primeiras Trovas Burlescas de Getulino“, um livro, que, em geral, é conhecido apenas pela crítica – elogiosa – que Sílvio Romero fez dele, ainda no século XIX.
Mas, bobagem, é claro que o professor Eduardo havia de conhecer a obra de Luiz Gama…
Como este seu predecessor, nada mais estranho a Eduardo de Oliveira do que a mentalidade de gueto, da qual, infelizmente, não nos livramos totalmente. Aliás, não é à toa que aparecem alguns na Rede Globo incentivando tal atraso mental.
Era capaz de ver méritos – e méritos reais – onde ninguém conseguia ver. Um dia ele chegou à nossa redação com um artigo manuscrito sobre a escritora Adelaide Carraro. Imediatamente, teve de aguentar a minha resistência à publicação. Para mim, na época, os livros da escritora eram subliteratura. Mas, explicou o professor Eduardo – sem dar sinal, em nenhum momento, de que pudesse perder a paciência diante do meu comportamento algo (muito) insolente -, o que tornara Carraro um anátema, nos meios ditos “respeitáveis” de São Paulo, não eram os defeitos de seus livros, mas as qualidades: a crítica, verdadeiramente desabusada, à hipocrisia de uma elite que já era cadáver, mas recusava a deitar-se. E isso, completou ele com outras palavras, era um mérito literário.
O mínimo que posso dizer hoje é que ele tinha razão.
NEGRITUDE
Eduardo de Oliveira tinha 86 anos quando completou sua vida entre nós, na quinta-feira. Foi professor, político – o primeiro vereador negro da cidade de São Paulo –, um líder do povo brasileiro durante toda a sua vida, e, naturalmente, um poeta.
Aos 16 anos de idade, compôs o “Hino à Negritude”, “pois que as páginas da História/ São galardões aos negros de altivez“.
Poderíamos terminar esta breve memória, dizendo que Eduardo de Oliveira entrou para a eternidade. Mas isso já é verdade há muito. Os grandes homens não precisam morrer para lá chegar.
A covardia da injustiça,permeiam as repartições de nossa sociedade, e o grito de zumbi dos Palmares , ainda zumbindo esta entre os ouvidos sensíveis ,dos que vivem antenados na outrora ilha de vera cruz, hoje Brasil da impunidade , e injustiça contra estes que gritam …