A frágil coalizão Lapid/Bennet, autodenominada “Governo da Mudança”, pouco mudou – além de afastar Netanyahu – e não se sustentou ao manter lei que privilegia assaltantes de terras e oprime palestinos em território ocupado
O governo que resultou da coalizão de sete partidos, articulada por Yair Lapid e com Naftali Bennet como premiê, admitiu seu colapso e enviou a proposta de dissolução ao parlamento, como estabelece a legislação israelense, nesta segunda-feira, dia 20.
A previsão é de que o atual governo siga interinamente e que novas eleições parlamentares que servirão de base para a formação de novo governo aconteçam no dia 25 de outubro deste ano.
Com isso, a próxima seria a quinta eleição israelense em três anos e meio.
A coalizão governamental conseguiu se impor sobre a formação que apoia Netanyahu com apenas 61 votos dos 120 que compõem o Knesset, parlamento israelense, uma maioria exígua além de muito instável tendo em vista a diversidade de forças (esquerda sionista, centro, partido de base árabe, com forte presença da ultra-direita judaico supremacista) e o revanchismo de Netanyahu, que não parou nem por um dia em seu esforço de pôr abaixo o novo governo.
Em abril, a deputada supremacista Idit Silman, atraída pelo canto de sereia de Netanyahu, anunciou que retirava seu apoio à coalizão sob o pretexto de que a este governo faltaria “identidade judaica”. Com isso, a coalizão permaneceu com 60 deputados bastando mais uma defecção para perder a maioria parlamentar necessária a sua sustentação.
O ESTOPIM FOI A ”LEI DO APARTHEID”
No começo de junho, uma votação se apresentou. A extensão por mais tempo da que ficou conhecida como “Lei do Apartheid”. A tal lei dá aos colonos judeus, vivendo em residências situadas em enclaves construídos sobre terras assaltadas aos palestinos, a condição de cidadãos israelenses plenos enquanto que os vizinhos palestinos, donos originais das terras que lhes foram assaltadas, perdem qualquer condição de cidadania democrática e têm suas vidas regidas por administrações militares.
As “administrações militares”, por sua vez, são determinadas por normas herdeiras da ocupação britânica sobre a Palestina e mantidas por Israel, incluindo arbitrariedades como as “prisões administrativas” onde palestinos podem ser presos por tempo indeterminado, sem julgamento ou mesmo acusação formal. Também cabe aos administradores militares a condição de conceder ou não permissões de construções aos palestinos, obviamente sempre negadas, ou autorização para entrar em Israel, autorização que pode ser suspensa a qualquer momento ao bel prazer do militar no comando da região.
Como tinham advertido os governantes da coalizão, os seus integrantes árabes em cargos de governo e com assento no Knesset, Mazen Ghnaim (Lista Árabe Unida) e Ghaida Rinawi-Zoabi (cineasta, filiada ao partido Meretz), votaram contra a lei.
Netanyahu, sob cujos governos a lei permaneceu inquestionada, orientou seus comandados no parlamento a votarem contra e assim ela não teve maioria necessária à aprovação, ficando com apenas 58 votos favoráveis.
Os dois líderes do governo, Bennet e Lapid, ao invés de buscarem alternativas à legislação da discriminação legalizada, preferiram partir para determinar o fim de seu governo e a convocação de novas eleições.
“GOVERNO DA MUDANÇA” NADA MUDOU
Em suma, aqueles que se autodenominaram “Governo de Mudança”, ao invés de adotarem mudanças reais na questão essencial, a questão palestina, preferiram a renúncia.
Antes disso, um outro incidente, já colocava o governo à beira de perder maioria no parlamento. Durante as discussões sobre a “Lei do Apartheid”, o deputado da coalizão, supremacista do partido “Rumo à Direita”, Nir Orbach, xingou o deputado árabe Ghnaim e declarou que a “inclusão de palestinos no governo de Israel fracassou”. Depois disso, Orbach também se declarou fora da coalizão, que poderia prosseguir como governo de minoria (59 apoios) desde que o bloco comandado por Netanyahu não obtivesse 61 votos para derrubar o governo. No entanto, Naftali Bennet e Yair Lapid preferiram abrir mão de um comportamento honroso e, como já dito, se declararam incapazes de seguir governando, o que abre espaço, de acordo com as primeiras pesquisas, ao retorno do nefasto Netanyahu.
Aliás, Netanyahu é réu em três casos de corrupção e investigado em um quarto com acusação formal pela polícia israelense. Também aí Bennet e Lapid vacilaram pois poderiam ter seguido sugestões dentro de sua coalizão de propor legislação proibindo réus por corrupção de exercerem cargos governamentais e não o fizeram.
As defecções de Idit Silman e Nir Orbach acontecem de forma oportunista para a direita, uma vez que pelo acordo da coalizão, Lapid (que hoje é vice e tem uma posição de centro e bem menos supremacista do que Bennet e foi quem articulou o ingresso pela primeira vez de árabes no governo de Israel) assumiria como primeiro-ministro a partir de outubro. Agora, nas eleições que se avizinham Netanyahu aparece novamente com chances de formar um governo de ultra-direita.
Netanyahu já celebrou a queda do governo Bennet contra o qual já instilou seu veneno dizendo que é “o pior governo da história de Israel” e que “era dependente de apoiadores do terrorismo [numa referência aos árabes no governo] e que “colocou em perigo o caráter judaico do nosso Estado”.
ESCALADA DA AGRESSÃO AOS PALESTINOS
A verdade é que, com relação aos palestinos, não foi de forma alguma um ‘governo de mudança”, ao contrário, como afirma Issa Amro, um ativista palestino da cidade de Hebron:
“Desde a formação do governo Bennet, o que vimos foi uma escalada na Cisjordânia: mais violência por parte dos colonos, mais razias militares, soldados abrindo fogo indiscriminadamente, sentindo que têm o apoio do premiê para fazer o que quiserem com total impunidade…”
Vimos isso na violenta repressão às manifestações de palestinos na mesquita Al Aqsa, durante o Ramadã em Jerusalém e no covarde assassinato da jornalista palestina da Al Jazeera, Shireen Abu Akle.
O pequeno saldo positivo deste governo que agora se auto-derrubou foi ter conseguido afastar Netanyahu, duas vezes criminoso, seja por corrupção, seja pelos bombardeios a Gaza, e o fato de quebrar o tabu de não permitir ministros árabes na composição governamental de Israel que pressionaram e conseguiram pequeno aumento em termos de verba orçamentária destinada a cidades e aldeias árabes em Israel.
“AS COISAS PIORARAM”
No que diz respeito às condições de vida dos israelenses, “as coisas pioraram” como afirmam manifestantes em Tel Aviv contra a manutenção das políticas neoliberais no terreno da economia que fazem o custo de vida subir, notadamente no que diz respeito à moradia, tanto aluguéis como o que é cobrado pela compra de imóveis. O investimento público em moradias foi reduzido e a especulação, inclusive com vendas de imóveis em Tel Aviv a compradores judeus abastados no exterior, tem aumentado.
Neste momento, jovens israelenses retomam movimento de 2011 contra a carestia referente à moradia, instalando tendas na avenida Rotchild em Tel Aviv, com dizeres como “Nosso teto está quebrado”.
Mas a sociedade se move apesar dos obstáculos a uma humanização do seu Estado: semanas de manifestações pela saída de Netanyahu precederam o fim de seu governo e os atos de ativistas judeus nos territórios palestinos contra a agressão ao povo vizinho prosseguem, assim como se avolumam as manifestações contra a carestia no interior de Israel.
NATHANIEL BRAIA