Abrindo no Meia Noite em Pequim, da TV Grabois, um ciclo de debates sobre a China com convidados especiais, o pesquisador e escritor Elias Jabbour discute com o professor Javier Vadell, um dos grandes intelectuais latino-americanos da atualidade, a “globalização com características chinesas”.
“Tem-se falado muito ultimamente que o mundo vive um processo de desglobalização. Eu queria saber sua opinião sobre isso, se existe um processo de desglobalização em curso ou se o que está acontecendo é uma nova forma de globalização – você tem escrito há muito tempo sobre isso -, que é uma globalização instituída pela China”, abre o debate Jabbour, dirigindo-se ao amigo Javier, argentino radicado no Brasil, professor da PUC de Minas, com larga trajetória de pesquisa e docência no exterior, inclusive na China.
“Numa perspectiva mais economicista, se fala em desglobalização quando há deoffshoring, quando as empresas voltam – dos países asiáticos, nesse caso – ao país de origem. Uma tentativa de Donald Trump fracassada e observamos que esse processo não está acontecendo, empresas japonesas e ocidentais estão produzindo na Ásia”, assinala Javier.
Em outro sentido – ele pontua -, “nós poderíamos falar de desglobalização no sentido do desafio que representa a globalização com características chinesas, frente à globalização neoliberal liderada pelos Estados Unidos”.
“Auge da globalização neoliberal: expansão da Otan, intervenção no Afeganistão, depois no Iraque, atentados terroristas, a cara visível da geopolítica”, acrescenta.
“Eu acho que estamos no meio de um processo de mudanças substantivas no sistema internacional, no qual a globalização com características chinesas é a projeção de poder de uma nova formação econômico-social como você vem trabalhando”.
GLOBALIZAÇÃO INSTITUÍDA PELA CHINA
“Essa formulação de globalização instituída pela China, é uma globalização baseada na exportação de bens públicos, em termos economicistas, ou vai muito além disso?”, questiona Jabbour, que também o provoca a falar sobre como foi sua trajetória acadêmica até se integrar nesse grande debate da atualidade.
Javier relatou que começou com o foco no neoliberalismo, “Hayek, Mises, li tudo”, até suas pesquisas se direcionarem para China e América Latina. “A gente vai entrar na China, mas a China nunca vai sair da gente”. “Então eu chego à globalização, entendendo a globalização neoliberal como ponto de partida e vendo os processos novos, e observo como a China está criando processos novos e resgatando princípios antigos”.
“Então todo processo de globalização esconde a geopolítica por trás, projeção de poder, reconfiguração espacial, mas também instituições, ideologia”. “Eu acho que o primeiro ponto de ruptura é a criação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, que é a primeira instituição multilateral do pós-Segunda Guerra Mundial que não foi liderada pelos Estados Unidos. Depois veio o novo banco de desenvolvimento dos BRICS”.
“E agora eu acho que tem dois elementos, ideologicamente. Um, são os princípios de Bandung [NR: a histórica conferência em 1955, com Nehru, Chu Enlai, Sukarno e Nasser, que abriu o caminho para o movimento dos países não-alinhados], de coexistência pacífica e cooperação sul-sul. O segundo, em que trabalha a nossa amiga Francesca, é a Comunidade de Futuro Compartilhado para a Humanidade”.
“Eu acho que tem três processos que aceleram essa nova globalização: a crise de 2008, a pandemia, e agora a intervenção – chame como quiser – da Rússia na Ucrânia”, ressalta Javier.
Jabbour, fazendo questão de assinalar sua concordância com a formulação do convidado, indaga “até que ponto o conflito na Ucrânia acelera esse processo de globalização instituída pela China, globalização com características chinesas?” É uma questão – acrescenta – que estou colocando para você, “a partir da incorporação da Rússia no território econômico chinês, não falo incorporação no sentido colonial, no sentido de que existe uma relação assimétrica, a Rússia em um processo de substituição de importações e de complementaridade econômica em alto nível, vamos dizer assim.”
Javier concorda que essa “colonialidade”, que implica numa “infantilização da relação”, “isso não aconteceu entre a Rússia e a China”. “Em primeiro lugar, eu falei dos elementos ideacionais desse processo, e dos institucionais, não dos materiais. E o material, o esqueleto da globalização, é a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), que não poderia existir sem a parceria com a Rússia”, enfatizou.
RÚSSIA É ESSENCIAL
“Temos seis corredores no BRI, sendo que em quatro a Rússia é essencial. E tem mais um, o Ártico. Há um consenso muito consolidado que é uma aproximação que vem dos anos 1990, não é novo isso”.
“Eu acho que você está perguntando um ponto crucial, a Rússia, a liderança do Kremlin, e o Partido Comunista da Rússia, que representa hoje 27% dos votos, aí temos uma massa de consenso dentro da Rússia que é praticamente de 85% ou mais”.
“O que é uma coisa muito clara desde 2014, que foi o golpe de Estado na Ucrânia, impulsionado pelos Estados Unidos. A Rússia a partir desse momento ela vai virando e num ponto crucial, porque eles começam a planejar várias ações e uma delas é a virada para o desenvolvimentismo e para leste”.
“Não vou falar para o comunismo, mas para o desenvolvimentismo. E se transformando em uma potência alimentar. Direcionou sua economia para leste”.
Então, vão falar – ressalta Javier -, “fracassou a interconectividade com a Europa”. “Não, não fracassou não. Só um dos corredores, que é o que passa pela Ucrânia, foi afetado nesse processo. O resto, vai continuar ativo e continua ativo”. Ele sublinha que os europeus estão tendo que seguir “a linha dura dos Estados Unidos, independência, acabou, alinhamento total, está sofrendo as consequências”. “Tem as rotas marítimas, um conector fundamental é a Turquia. Tem o conceito euroasiático. A saída dos Estados Unidos do Afeganistão também é um processo que reflete essa aceleração da nova globalização”.
AMÉRICA LATINA É ESPELHO
E essa nova globalização – destaca o professor Javier – também tem “um espelho, que é como a América Latina reagiu às sanções contra a Rússia”.
Javier aponta que o secretário de Estado Anthony Blinken teve agora uma conversa com o chanceler chinês Wang Yi, em Bali, dizendo que a China ‘não pode’ se alinhar com a Rússia. “A China está alinhada com a Rússia, só que do jeito chinês. Vai continuar fazendo negócio com os Estados Unidos, mas alinhada com a Rússia”, reitera o professor argentino.
Ele entra na discussão levantada por Jabbour sobre os “bens públicos” exportados pela China, obras que permitiram, por exemplo, muitos países da África contar com infraestruturas que, por outro caminho, ficariam inexistentes. “Você falou bem, bens públicos. Os Estados Unidos há muito tempo não fornecem bens públicos para ninguém. Não é um fornecedor, como fala a teoria da estabilidade hegemônica”. Ele lembra o papel da China no fornecimento de vacinas na pandemia, “se coloca explicitamente no documento sobre ajuda internacional e cooperação”.
Javier sublinha que cabe a nós “monitorar e cobrar”, e adverte contra o pensamento liberal, “que diz que a China está fazendo ‘armadilha da dívida’, o que tecnicamente está errado, ‘mas a China está impondo outra colonização’”.
A CHINA TE TRATA COMO ADULTO
Não – esclarece o pesquisador argentino -, “a China te trata como adulto, se você continua criança, ‘ah, porque a China não promove diversificação das nossas economias’”. “A China não é pra isso, não vai promover isso, não. Cada país tem que promover isso, porque a China não coloca obstáculos a isso, como tem mostrado com Vietnã, Camboja, Laos”.
“Agora, se observamos o Equador…, mas aí tem de cobrar da elite equatoriana. Então nosso pensamento liberal é achar que nosso relacionamento mecânico com a China vai promover uma diversificação mágica”, reitera Javier.
PENSAMENTO LIBERAL: SOLUÇÃO ‘VEM DE FORA’
É interrompido por Jabbour para “concordar e discordar ao mesmo tempo”. “É um problema liberal, mas também um pouco de achar – nós temos uma necessidade aqui no Brasil e nós estendemos isso para as análises de relações internacionais, de achar que a solução dos nossos problemas vai ter de vir de fora”.
“Por exemplo, se a China não ajudar o Brasil a construir o socialismo, então ela não é socialista, é neocolonialista. É sempre preto no branco, não existem mediações. Não foi a China que dolarizou a economia do Equador, não foi a China que implantou o Plano Real no Brasil, não foi a China, mas ela é vista como um elemento do aprofundamento da nossa regressão produtiva”, observa Jabbour, questionando o “‘senso comum’ imposto a nós de cima para baixo, em pesquisas que unem de neoclássicos a marxistas, eles pensam a mesma coisa em relação a isso”.
Se você observar o balanço de pagamentos dos países africanos, vai ver que é para a China que eles menos devem, assinala Jabbour. “As pessoas fazem artigos para falar das relações da periferia com a China mas não colocam todos os dados. Colocam o balanço de pagamentos, colocam a tendência à reprimarização, mas não colocam o IDH na África hoje, a complexidade econômica desses países que aumentou muito desde a presença chinesa”.
Para Jabbour, é um “campo minado, uma tempestade semiótica, em que muita gente, inclusive para não ser cancelada, acaba aderindo e só agrega desinformação” e, por isso, Javier, “seu trabalho é fundamental”.
Elias Jabbour é professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ.
Javier Vadell é professor da PUC de Minas. Argentino radicado no Brasil, tem larga experiência com pesquisa e docência no exterior, inclusive na China