
A sra. Michelle Bolsonaro, em sua preleção durante a convenção eleitoral do PL, afirmou (ou teria reafirmado?) que seu marido fora ‘escolhido por Deus’ para continuar à frente do Poder Executivo.
A retórica da 1ª dama representa uma espécie de senha de que os apelos à religiosidade, ou à falsa religiosidade, própria da família presidencial, tendem a se multiplicar ao longo da campanha eleitoral.
Motivos não faltam, afinal, que argumentos a sra. Michelle, seu marido e os filhos dele teriam para explicar tamanho descalabro econômico e social – além do sanitário, que atinge ineditamente o país e o povo ao longo dos quase quatro anos de desgoverno, quiçá, o período mais tormentoso desde a Revolução de 30 do século passado.
O que dizer do desemprego e, notadamente, do subemprego que subtrai dramaticamente os direitos e a renda do trabalhador?
O que dizer da inflação de dois dígitos provocada, entre outros fatores, pela política de vassalagem aos preços internacionais dos combustíveis que vitaminam, como nunca, os preços dos alimentos, jogando mais da metade da população na insegurança alimentar e o país de volta ao mapa da fome?
O que dizer da alienação criminosa do patrimônio público a grandes conglomerados econômicos, especialmente estrangeiros, em áreas estratégicas como petróleo, energia, comunicações, entre outras?
O que dizer do literal abandono das políticas públicas de educação, saúde, cultura, ciência e tecnologia, entre outros setores vitais à população, principalmente a mais vulnerável?
O que dizer dos escândalos de corrupção que se multiplicam a cada dia e que envolvem a cúpula governista e sua base fisiológica de sustentação na política tão condenada pelo chefe do Executivo no passado?
O que dizer, enfim, das reiteradas ameaças aos demais poderes republicanos, com ênfase nos poderes do Judiciário, e aos seus integrantes, bem como à democracia e ao estado democrático de direito?
“SENHOR DAS ARMAS”
Um determinado artigo atribuiu, recentemente, a Bolsonaro o título de ‘senhor das armas’ frente à sua neurose por um gatilho.
Compreensível, afinal, os números são espantosos para um país avesso, histórica e culturalmente, à proliferação de armas de fogo no seio da população civil – um notável contraponto ao que se disseminou nos Estados Unidos da América, especialmente depois do segundo grande conflito mundial.
A quantidade de novas pistolas que foram liberadas pela Polícia Federal (PF) durante o atual governo cresceu em cerca de 170%, após a flexibilização das normas que deram mais acesso do cidadão comum à compra de armas de calibres mais potentes e que antes eram restritas às forças policiais.
Somente em 2021 ocorreram 108 mil novos registros de pistolas, em comparação com os 40 mil registros feitos em 2018, antes de Bolsonaro assumir a Presidência. O número de novos registros no primeiro semestre deste ano já é superior aos de 2018.
Uma das temáticas principais da gestão de Bolsonaro tem sido a facilitação da compra de armas pela população. Durante seu governo já foram editados 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções, três instruções normativas e dois projetos de lei no sentido de flexibilizar as determinações de acesso a armas e munições.
Por outro lado, o grupo de CACs, sigla que reúne colecionadores de armas, atiradores profissionais e caçadores, cresceu significativamente na atual gestão.
Em meio à política pró-armamento do governo, esse contingente aumentou 474%: passou de 117.467, em 2018, para 673.818 este ano, até 1º de julho, conforme revelou reportagem recente do Estadão.
O número de pessoas cadastradas como CACs é maior do que os 406 mil policiais militares da ativa que atuam em todo o país. Também é maior do que o efetivo de 360 mil homens das Forças Armadas.
Atualmente, existem 2,8 milhões de armas registradas em acervos particulares. Além da quantidade definida como pertencente a CACs, que chega a 957,3 mil. Outras 692,5 mil armas pertencem a cidadãos comuns com autorização para posse ou porte.
Assim como os registros de novas armas e o credenciamento de CACs, as lojas de armamento e os clubes de tiros também cresceram exponencialmente no atual governo.
Hoje, somam-se 2.066 clubes em todos os estados. Alguns têm em seus nomes inspiração pretensamente nacionalista: Patriotas do Brasil, Pátria Armada, Brasil Atividades de Tiro e Armas Brasil.
Esse número, como observou a reportagem do jornal paulista, é muito superior ao quantitativo de diretórios de vários partidos políticos organizados oficialmente pelo país.
Essa ‘adoração’ pelas armas nada tem a ver, no entanto, com algum apreço de Bolsonaro pelas Forças Armadas ou às demais forças militares e civis que integram a segurança pública nacional.
Trata-se de algo muito mais complexo e doentio.
Trata-se de sua identificação com o mundo miliciano, aquele sobre o qual o Estado não pode exercer qualquer controle ou exerce controle muito limitado.
Com esse poder paralelo, às margens e à deriva do Estado e da Lei, Bolsonaro pretende, na verdade, transformar a rede armamentista e seus integrantes, movidos invariavelmente pelo desejo de destruir o oponente, com as exceções de sempre, numa espécie de partido político oculto.
Um verdadeiro exército de mercenários, arrebatados pelo sentimento de vingança e de justiçamento decorrente do recrudescimento da prática criminosa que viceja e é estimulada com prodigalidade nos ambientes famélicos e miseráveis, como os que se multiplicaram nos últimos tempos e se agravaram como nunca na era Bolsonaro.
São muitos os que pretendem representar essa vertente no futuro Congresso Nacional, nos legislativos estaduais e, até, nos seus executivos, afinal, sua expressão maior pretende um novo mandato, nada mais, nada menos, do que na Presidência da República.
São os adeptos da Associação Proarmas, cujos interesses, certamente, não ficam restritos à seara política, mas adentram, com igual ou mais voracidade, aos comerciais que envolvem os crescentes lucros dos grandes fabricantes de armas, nacionais e estrangeiros.
Não fosse o crescente movimento nacional pela democracia e de resistência ao ódio e à violência praguejada por essa gente, certamente, tal agremiação oculta poderia fazer inveja à atual ‘bancada da bala’ existente no legislativo.
A OBSESSÃO ÀS ARMAS E SUAS MOTIVAÇÕES
Muito já se falou sobre essa obsessão de Bolsonaro e de sua turba pelas armas de fogo de todos os calibres.
A análise dessa compulsão já foi objeto de especialistas de distintos ramos do conhecimento.
Todas têm o seu fundamento.
Alguns consideram a obstinação armamentista a um movimento de fanáticos, ainda que subjetivo do ponto de vista de classe social, na defesa e preservação da propriedade privada, das menores às maiores.
Com esse flácido e furtivo pretexto, tentaram arrebanhar os donos das terras, das indústrias e dos estabelecimentos comerciais. Muitos acreditaram nessa falácia ao invés de confiar nas instituições e nos profissionais da segurança pública treinados para a proteção da sociedade, inclusive da propriedade privada, conforme determina a lei.
Hoje, entretanto, diante da inelutável corrosão da trapaça, a realidade está mudando com a manifestação das representações de proprietários de vários setores da economia nacional, inclusive do agronegócio, contra o golpe urdido por Bolsonaro e em favor do atual sistema democrático.
Outros atribuem a fixação às armas a um fetiche comumente associado ao universo da sexualidade. Resumidamente, significa aquilo que as pessoas desejam fazer e que é socialmente proibido ou interditado.
No sentido freudiano, o fetiche é algo que se cultua e é capaz de provocar satisfação, prazer, excitação. É um objeto ou parte do corpo que pode ser erotizado para satisfazer os desejos de alguém.
Especialistas já trataram largamente do tema: “Tornar a arma um objeto icônico, objeto de desejo, de potência, de controle, da vida e da morte, é torná-lo um objeto de fetiche. O homem portador de uma arma assume-se detentor do controle, da razão e da verdade. A arma confere ao sujeito uma mudança de papel social, uma realocação na pirâmide de subjetivação. Freud diria que a arma seria uma extensão do pênis, a potencialização da virilidade, o desejo de dominação do outro”. Para eles, o fetiche pela arma representa o acesso a um objeto dotado de vida própria, com poder misterioso e mágico.
Nesse sentido, o questionamento é inevitável: o que acontecerá – ou aconteceria – após este acesso incontrolável e massivo às armas? A criminalidade desapareceria num estalar de dedos? Pessoas armadas – e não suficientemente treinadas quanto ao uso apropriado delas – desarmarão os criminosos? O tal contrato social que confere ao Estado o monopólio da violência será em parte desfeito, substituído, ignorado?
BOLSONARO, O GOLPE E O ESTADO MILICIANO PARALELO
A mais perceptível das análises, entretanto, está no terreno da política.
Bolsonaro, pelo seu histórico declarado de adorador das ditaduras e, até, dos torturadores, continuará perseguindo o golpe. Quanto a isso, a percepção é cada vez maior, especialmente frente ao seu crescente isolamento social.
Continuará tentando inverter a lógica que representa, nesse terreno, uma das nossas conquistas civilizatórias a que nos referimos anteriormente: cabe ao Estado a missão de garantir a segurança pública, ou seja, a segurança do cidadão e da sociedade, embora, na prática, nem sempre isso aconteça, não por responsabilidade do Estado, em si, mas, sim, por conta de suas imperfeições, especialmente, em nosso caso, as derivadas de um sistema econômico capitalista, ainda, fundamentalmente, dependente e subdesenvolvido, reprodutor em abundância de desigualdades sociais.
Qual a lógica bolsonarista: criar um ‘estado miliciano paralelo’, sombreado por integrantes de organizações da segurança pública, militares e civis, capaz de garantir seu poder, pois, no fundo, não confia nas Forças Armadas, instituição que quase o expulsou no passado, embora continue tentando arrastá-las para sua sanha golpista.
A manifestação mais grotesca dessa realidade foi a tentativa, ainda não inteiramente dissolvida – é fato, de incitar as Forças Armadas a tutelar a Justiça Eleitoral, face ao pavor de levar uma surra nas urnas eletrônicas que tanto demoniza, entre outros temores do que pode acontecer a ele e ao seu séquito mais próximo, a partir de janeiro de 2023, depois de tantas tragédias acumuladas nesses quase quatro anos de desgoverno.
Difícil, cada vez mais difícil, pois a grande massa dos militares – e, certamente, boa parte da oficialidade, depois dos longos 21 anos de agonia ditatorial, se orientarão pela Carta Constitucional e não pelo desejo doentio de alguém que está prestes a colher uma rotunda derrota eleitoral.
Pela sua natureza, a milícia armada constituirá, provavelmente, o derradeiro recurso – ou refúgio – de Bolsonaro para manter-se no poder, o que induz à avaliação de que episódios assemelhados ao do Capitólio, nos EUA, protagonizado por Trump e sua horda, podem se repetir aqui, no 1º ou no 2º turno das eleições, caso aconteça o que todas as pesquisas indicam: a derrota de Bolsonaro nas urnas.
Os integrantes de nossas gloriosas Forças Armadas e de nossas não menos ilustres organizações militares e civis que, por dever de ofício, detém o porte de armas, definitivamente, não merecem tal senhorio, afinal, em nossa história, honrados patriotas brasileiros, como Duque de Caxias, patrono do Exército, entre tantos outros, antes e depois da República, souberam dignificar o uso das armas na defesa de nossa soberania e da democracia, quando ameaçadas, enquanto Bolsonaro as manipulam simplesmente para seus intentos medíocres e nada republicanos.
Ora, se a Bolsonaro não se deve conferir o título de ‘senhor das armas’, muito menos o de ‘enviado de Deus’, conforme pregou, numa clamorosa heresia, a 1ª dama.
Deus, que, para os religiosos, é uma entidade superior, justa, bondosa e infalível, seguramente, não cometeria tamanho erro em sua escolha, muito menos com os brasileiros, afinal, como diz a máxima, em que muitos acreditam, ‘o Papa pode ser argentino, mas Deus é brasileiro’.
Não sendo uma coisa, nem outra, salvo melhor juízo, a definição mais apropriada ao atual ocupante do Planalto, seguindo a lógica religiosa, às avessas, é óbvio, da sra. Michelle, é uma só: senhor das trevas!
Felizmente, pelo heroísmo do sofrido povo brasileiro e, decerto, como dizem os homens e as mulheres de boa fé, por graça de Deus, já se podem ver algumas luzes ao final dessa árdua e extenuante caminhada.
MARCO ANTÔNIO CAMPANELLA
Bolsonaro declarou guerra.
Chamou os signatários da Carta pela Democracia de “cara de pau” e “sem caráter” e disparou mais uma vez contra o STF, dessa vez nominando quatro dos seus membros, incluindo seu presidente. Subiu o tom do confronto. Chamou o Barroso de criminoso e que Fux fosse incluído no inquérito das fakes news, ambos por defender as urnas eletrônicas.
A chance de derrota vem crescendo muito, pode tornar-se irreversível, e com as atitudes dos últimos dias reafirma, nesse momento decisivo, sua opção principal, a subversão, o golpe.
Colocar esse exército mercenário na rua, para ganhar ou perder, com algum apoio ou não de polícias e de alguns das forças armadas.
Na primeira hipótese “fatura resolvida”, na segunda apostar na no “dia seguinte”.
Um governo vacilante no poder, pode dar a chance para uma nova investida.
A frente ampla pode crescer ainda e principalmente se consolidar.