Iniciados no dia 18 de abril, os massivos enfrentamentos contra o corte do orçamento da educação e o rebaixamento do salário dos professores e da pensão dos aposentados na Nicarágua lotaram as ruas das principais cidades do país.
A repressão movida pelo governo contra as gigantescas mobilizações, por justiça e pela democratização do país centro-americano, já ceifou a vida de pelo menos 128 pessoas.
De forma cada vez mais enfática, a juventude que toma a frente dos protestos repudia a traição neoliberal do presidente Daniel Ortega e de sua mulher, a vice-presidente Rosario Murillo. Os dois abandonaram de vez os princípios da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) que derrubou a corrupta ditadura pró-EUA dos Somoza em 1979.
“A FSLN praticamente desapareceu. Só resta este projeto de ditadura dinástica dos Ortega Murillo, que é o que tem a Nicarágua em sua crise atual”, denunciou a histórica comandante guerrilheira Dora María Téllez, ministra da Saúde logo após a Revolução. Segundo Dora, “o país sofreu nestes últimos dias o pior massacre dos últimos quase 40 anos”, pois “estamos falando de jovens, meninos e meninas, que foram assassinados por Daniel Ortega, que mandou a polícia disparar com armas de fogo”. E as ordens não foram só para os policiais, alertou, “também aos seus batalhões de choque, às suas quadrilhas. Estamos falando de uma ditadura que não somente restringe as liberdades, não somente censura os meios de comunicação, mas de uma ditadura repressiva, cruel, que está cometendo um genocídio na Nicarágua”.
O trágico número de assassinatos, reiteram os manifestantes, é o maior da história do país em tempos de paz. De acordo com as organizações de direitos humanos, ao menos quatro jovens foram executados a sangue frio por grupos de encapuzados montados em motocicletas e caminhonetes no final de semana. Em Masaya, um adolescente de tão somente 15 anos chegou a implorar por clemência ao policial que o prendeu antes de disparar, relatou o sacerdote Edwin Román.
Assassinatos, disparos, saques e incêndios também se repetiram em Granada, onde um grupo de 30 paramilitares pró-governo matou com um tiro no coração, na madrugada de terça-feira, o jovem José Maltés. Os encapuzados atacaram com armas de fogo e morteiros uma barricada de oposicionistas.
Foi esta nítida orientação fascista, que lembra as trágicas marcas da ditadura pró-estadunidense – derrubada pela revolução popular sandinista – quem tem levado cada vez mais nicaraguenses às ruas para dizer “Basta”.
De acordo com Henry Ruiz, o mais veterano dos guerrilheiros na montanha, houve um engano com Ortega, “pois inicialmente parecia a todos que seu programa apontava rumo a uma economia de desenvolvimento nacional”. Infelizmente, “foi rapidinho assegurar aos grandes empresários que iria garantir seus negócios e impulsionar privatizações. Vocês façam a economia e eu farei a política, Ortega lhes disse”. O resultado desta política é que, conforme as organizações sindicais, 80% da mão de obra nicaragüense encontra-se à margem, sem direitos trabalhistas, completamente precarizada.
Parceiro da FSLN desde o primeiro momento, o jornalista portugês Manuel Urbano Rodriguez, acredita que “assim como o somozismo, a memória de Sandino, de Carlos Fonseca e da epopeia da insurreição que destruiu a ditadura de Somoza permanece viva no povo nicaragüense”. Alguns dos mais destacados comandantes da guerra contra Somoza, lembra Miguel Urbano, “haviam rompido com Ortega pela orientação que impunha ao partido, entre eles Ernesto Cardenal, Luis Carrión, Víctor Tirado e Henri Ruiz”. “Ortega havia optado por uma política de alianças incompatível com os princípios e ideologia do sandinismo. No âmbito da ‘reconciliação nacional’ estabeleceu um acordo com o ex-presidente Arnoldo Alemán, condenado a 20 anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro. Alemão havia sido, sublinhe-se, um esforçado somozista”, condenou.
E o baita fiasco parece não ter fim. Como denunciou Miguel Urbano, “três dos seus filhos são milionários”. “Laureano negociou com a China o projeto de um novo canal transoceânico que atravessará a Nicarágua do Atlântico ao Pacífico e Juan controla o audiovisual. Outros dois filhos ganharam milhões com a distribuição de petróleo barato recebido da Venezuela bolivariana”. Quanto ao comandante Humberto Ortega, seu irmão, “recebeu a medalha militar dos EUA e sua adesão ao capitalismo foi rápida. Ganhou milhões no negócio de madeiras”.
“O ministro da Agricultura de Ortega, Jaime Weelock (ex-comandante), também é hoje um próspero empresário e Bayardo Arce, outro dos comandantes da insurreição, igualmente é atualmente um homem muito rico”, acrescentou Urbano.
Se a realidade é esta, questiona Ernesto Cardenal, renomado poeta, sacerdote e ministro da Cultura da FSLN entre 1979 e 1990, que há dois anos denunciou ser perseguido pela “ditadura” de Ortega-Murilo, “o diálogo não tem sentido, porque o diálogo é para entender-se e nós não podemos nos entender”. “O que queremos é que haja outro governo, uma república democrática. Para quê diálogo? Nada de diálogo”, enfatizou.
Criticando a “loucura e a arrogância do governo”, do alto dos seus 93 anos, o poeta vivo mais importante da terra de Ruben Dario está confiante, uma vez que, “agora, repentinamente por todo o país surgiram os jovens em protestos, tomando as ruas”. E vibrou: “meu irmão Fernando Cardenal (ministro da Cultura de 1979 a 1987), terá visto agora desde a eternidade que, em todas as partes, a Nicarágua ressuscitou”.
LEONARDO SEVERO