CARLOS LOPES
Após a I Guerra Mundial, em 1919, Paul Valéry escreveu: “Nós, as civilizações, sabemos agora que somos mortais”.
Para um homem que seria dentro em breve o poeta oficial da França, mantendo uma posição chauvinista desde a época do caso Dreyfus, e trabalhara no Ministério da Guerra francês durante todo o conflito interimperialista, essa era uma constatação assustadora.
[NOTA: Para ser justo com Paul Valéry, é preciso acrescentar que, quando da ocupação nazista da França, ele, com mais de 70 anos, foi de uma dignidade exemplar, recusando-se a colaborar, não se dobrando às perseguições, e somando-se à Resistência. Morreu algumas semanas depois de encerrada a II Guerra, homenageado por todo o seu povo.]
Significativo é o título da obra de Valéry em que ele escreveu essa frase (aliás, é a primeira frase desse duplo ensaio): “La crise de l’esprit”, ou seja, “A crise do espírito”.
Por exemplo, diz ele:
“A crise militar pode ter acabado. A crise econômica é visível em toda sua força; mas a crise intelectual, mais sutil, e que, pela sua própria natureza, toma as aparências mais enganosas (pois ela se passa no reino da dissimulação), esta crise dificilmente deixa entender seu verdadeiro ponto, sua fase.
“Ninguém pode dizer o que amanhã estará morto ou vivo na literatura, na filosofia, na estética. Ninguém sabe ainda quais ideias e quais modos de expressão serão incluídos na lista de perdas, que novidades serão proclamadas.”
A questão que está no fundo dessa incerteza, para Valéry, é a crise de valores éticos: daí a anotação, muito perspicaz para a época – e para um homem como o poeta de “O Cemitério Marinho” – de que essa crise “se passa no reino da dissimulação”.
Mas, que “civilizações nós sabemos agora que somos mortais”?
A que “civilizações” Valéry estava se referindo?
Basicamente, aos países imperialistas da Europa: França, Inglaterra, Alemanha – com uma extensão duvidosa aos EUA, considerado a parte “europeia” da América, mas, também, sempre considerado pela elite francesa, como dizia uma personagem de Maugham, “um país de apaches”.
Durante mais de 40 anos houve uma paz, ainda que armada, injetando tantas ilusões, que até hoje existe quem chame esse período (1871-1914) de “belle époque” – uma bela época que, evidentemente, não foi conhecida pelos africanos e asiáticos, massacrados nesse mesmo período, ou pelos latino-americanos. Nem pelos milhões de europeus famintos que emigraram – sobretudo da Itália, Alemanha, Espanha, Irlanda e Suécia – nessa mesma brilhante época.
É esse mundo de ilusão que constituiu a matéria dos impressionistas, que se tornaram dominantes na pintura francesa, após a prisão, condenação e exílio do artista mais notável da escola realista, Gustave Courbet, por sua participação na Comuna de Paris.
Tomemos qualquer tela de Monet. Por exemplo, “Mulher sentada sob salgueiros” – para escolher um quadro em que existe uma figura humana, algo não muito comum em Monet.
Ou, também por exemplo, de Renoir, a “Dança no Moulin de la Galette” ou “Le déjeuner des canotiers”.
Temos ali, talvez ou quase, a felicidade perfeita – inclusive, sem miséria, ou, melhor, sem miseráveis.
Por baixo dessa aparência luminosa, havia a mais brutal intensificação da exploração sobre os trabalhadores (que, em 1885, seria o tema do melhor romance de Émile Zola, “Germinal”), a violência cruenta para se apoderar de colônias na África e Ásia e o enrijecimento da dependência na América Latina (temas de Joseph Conrad, especialmente em “O Coração das Trevas”, de 1899, e “Nostromo”, de 1904) – e a transformação do capitalismo em capitalismo financeiro, em capitalismo monopolista.
Para as elites das capitais europeias, tinham pouca significação acontecimentos como a guerra entre a Rússia e o Japão (1904-1905), a revolução russa de 1905-1907, ou a Revolução Mexicana, iniciada em 1910.
No entanto, havia crises políticas graves, que indicavam algo de monstruoso avolumando-se abaixo da superfície. A principal, e mais conhecida, foi o caso Dreyfus, que partiu em dois pedaços (talvez mais…) a França, de 1894 até 1906.
Esse caso tem uma importância crucial para o nosso tema. Foi a primeira vez em que uma parcela da burguesia europeia rompeu com qualquer ética dentro de seu próprio país – não apenas com a ética burguesa que explicitamos com os ditos de Benjamin Franklin, mas com qualquer uma.
Alguns leitores poderão arguir que a ética burguesa sempre é falsa, hipócrita.
Mas isso, além de não ser inteiramente verdade – não são poucos os burgueses que foram (e são) coerentes com sua ética, inclusive afrontando perigos para sustentá-la – não nos faz avançar em absolutamente nada.
Há muito, Engels escreveu que “a ideologia é um processo que, é certo, aquele que se diz pensador cumpre conscientemente, mas com uma consciência falsa” (cf. Carta de Engels a Franz Mehring, 14/07/1893).
Mas Engels estava se referindo a que a ideologia – e a ética é uma ideologia ou faz parte de uma ideologia – é elaborada sem que o “pensador” tenha consciência dos verdadeiros interesses que o impulsionam nessa elaboração.
Isso não quer dizer, obviamente, que as pessoas usem a ideologia do mesmo modo que usam máscaras no carnaval.
Aliás, a primeira condição para que a ideologia tenha alguma eficácia é, precisamente, que as pessoas acreditem nela.
Logo, a abordagem do que Engels chamou de “consciência falsa” é dada pela seguinte premissa:
“Quanto mais o domínio particular, que estamos investigando, se afasta do domínio econômico, aproximando-se do domínio da ideologia puramente abstrata, tanto mais encontraremos acasos em seu desenvolvimento, tanto mais sua curva será em ziguezague. Porém, quanto mais longo for o período considerado, e quanto mais amplo for o campo tratado, esta curva será, cada vez mais, quase paralela à curva do desenvolvimento econômico” (cf. Carta de Engels a Starkenburg, 25/01/1894).
Do que se trata aqui é, precisamente, de um rompimento com uma ideologia anterior – ou com um seu aspecto, a ética – devido a uma mudança, a uma degeneração da base econômica.
No primeiro momento, na medida em que não corresponde mais aos interesses de classe, essa ética anterior torna-se uma fantasmagoria, servindo, no máximo, para esconder o seu oposto.
Foi assim no caso das colônias, em que a exploração sem peias era feita em nome de “civilizar” africanos e asiáticos. Houve até mesmo quem postulasse, já na década de 60 do século passado, que as metrópoles haviam se sacrificado em benefício das colônias (o principal propagandista dessa posição foi Raymond Cartier; v. Jacques Valette, “La France et l’Afrique. L’Afrique subsaharienne de 1914 à 1960”, SEDES, Paris, 1994, pp. 237 e segs.).
Porém, não é esse tipo de degeneração “intermediária” – onde se continua recorrendo a uma ética, mas para fazer o contrário do que ela preconiza – que estamos tratando aqui.
O que há de específico, quanto a esta questão, nos tempos em que vivemos, é, pelo contrário, que a ética anterior não foi substituída por alguma outra, mas pela lei da selva – algo que, antigamente, não por acaso, era conhecido por “darwinismo social”, como se não houvesse diferença entre as hienas, ou as gazelas, e os seres humanos.
Não é, diga-se de passagem, a primeira vez que uma degeneração desse tipo acontece na História.
A decadência romana foi um caso desse tipo, como registrou Tácito em seus “Anais”. O que é esta grande obra, senão a história da corrupção, truculência e decadência moral da elite romana, ainda que somente em seu início, isto é, até o governo de Domiciano, encerrado no ano 96 d.C?
Da mesma forma, algo semelhante aconteceu, também, no final do “Ancien Régime” – o período anterior à Revolução Francesa – com aqueles nobres amorais que Choderlos de Laclos retratou em “Ligações Perigosas”, ou padres e freiras devassas – como aquelas de “A Religiosa”, de Diderot.
Quase se pode dizer que, dentro da nobreza dessa época, o marquês de Sade era apenas um exagerado (ou um indiscreto).
PANAMÁ
Hoje, revendo os acontecimentos do caso – a condenação injusta do capitão Alfred Dreyfus por traição e espionagem; o acobertamento de Esterhazy, o verdadeiro espião, pelo governo francês e pela cúpula do exército francês; a publicação, pelo editor de “L’Aurore”, Georges Clemenceau, do “J’accuse”, o libelo escrito por Émile Zola contra os acusadores de Dreyfus; a condenação, exílio e morte suspeita do próprio Zola, etc. – chama atenção um aspecto dessa época.
O que fez com que se engajassem, na defesa de Dreyfus, indivíduos até então completamente alienados da política, sobretudo, até então, alienados de qualquer política progressista?
Por exemplo, o que fez Marcel Proust – até aí um deslumbrado com a “alta sociedade” do Faubourg Saint-Germain, isto é, com os restos da nobreza guilhotinada no final do século XVIII – se movimentar a favor de Dreyfus, inclusive convencendo o escritor francês de maior sucesso na época, Anatole France, a também aderir à causa?
É pouco provável que a resposta para essa questão esteja no antissemitismo tresloucado, delirante, alucinado, dos acusadores de Dreyfus. A maior parte dos grupos antissemitas eram de um ridículo atroz – sobretudo em um país onde os judeus desfrutavam, há muito, de um razoável sucesso social, desde o ramo francês dos Rothschild até Sarah Bernhardt.
Em relação a isso, já que mencionamos Proust, destaquemos que seu pai, o notável epidemiologista Adrien Proust, tinha posição oposta a de seu filho. No entanto, o Dr. Proust, apesar de católico praticante, era casado (e bem casado) com uma judia que jamais se converteu ao cristianismo.
O que não o impedia de ser um visceral “antidreyfusard”.
Hannah Arendt remonta a origem do caso Dreyfus ao escândalo do canal do Panamá, cinco anos antes – em que 85 mil compradores de papéis da companhia formada para a construção do canal, foram arruinados, quando a empresa quebrou, em 1889, deixando a descoberto a corrupção no parlamento e no governo francês.
Realmente, depois do escândalo do canal do Panamá houve uma onda de antissemitismo na França, estribada em que os operadores da companhia, que distribuíam propinas no parlamento, eram judeus (por exemplo, lembra Arendt: “Quanto mais incerta era a situação da companhia, mais altas, naturalmente, eram as comissões, até que, no fim, a própria companhia recebia apenas uma pequena parte dos fundos que lhe eram destinados. Um pouco antes da falência, Herz recebeu, por uma única transação intraparlamentar, um adiantamento de nada menos que 600 mil francos. Esse adiantamento, porém, foi prematuro. O empréstimo não foi realizado, e os acionistas simplesmente haviam perdido 600 mil francos”).
O objetivo de Arendt, ao remeter a origem do caso Dreyfus ao escândalo do canal do Panamá, é sublinhar a importância do antissemitismo – o capitão Alfred Dreyfus era um milionário judeu, assim como seus irmãos e sua esposa, também herdeira de uma rica família judia, até mais rica que os Dreyfus.
A tentativa de Arendt não seria importante, se Émile Zola, uma das figuras mais destacadas do caso, não tivesse feito o mesmo, em 1898. Mas Zola fez isso para destacar que, atribuir a culpa das fraudes aos judeus em geral, foi o modo de deixar impunes os principais culpados.
MINISTÉRIO
Talvez uma parte da resposta sobre o engajamento de tantas pessoas inesperadas na defesa de Dreyfus, esteja nos seus inimigos.
Como disse uma contemporânea dos acontecimentos, em 1901:
“O caso Dreyfus despertara todas as forças reacionárias latentes na França. O militarismo, esse velho inimigo da classe operária, se mostrara de corpo inteiro, e era necessário dirigir todas as lanças contra esse corpo. Pela primeira vez se convocou a classe operária a combater em uma grande batalha política. Jaurés e seus amigos conduziram a classe operária à luta, abrindo assim uma nova era na história do socialismo francês” (Rosa Luxemburgo, “A crise socialista na França”, in O.E., Ed. Izq. Rev., 2008, p. 106).
Apesar das concessões posteriores de Jean Jaurés, líder dos socialistas franceses, que Rosa Luxemburgo critica, é verdade que o caso Dreyfus foi a primeira “grande batalha política” em que a classe operária interveio – e vitoriosamente – depois da Comuna de Paris, mais de vinte anos antes.
Notemos, sobre isso, que a menção ao militarismo como “ velho inimigo da classe operária” tinha uma significação específica, na época em que Rosa Luxemburgo escreveu esse texto: o ministro da Guerra da França, a partir de 1889, e pelos 11 anos seguintes (ou seja, no auge do caso Dreyfus), era o general e marquês de Galliffet, o açougueiro da Comuna de Paris, que, em 1871, submergira em sangue a capital francesa.
Um aspecto algo negligenciado (embora presente) nas obras sobre o caso, é que, se é verdade que o caso conduziu quase a uma situação revolucionária na França, isso se deu porque a burguesia se dividiu.
Em outras palavras: o caso Dreyfus foi, no primeiro momento, uma luta dentro da burguesia francesa, uma luta pela hegemonia entre as frações da burguesia.
Daí a ação, na defesa de Dreyfus, dos “republicanos radicais” – que passarão a ter, a partir desse caso, como principal nome, Georges Clemenceau. É compreensível que Hannah Arendt diga que o herói do caso “não é Dreyfus, mas, sim, Clemenceau”. Mas seu julgamento é demasiado influenciado pela figura algo tola do próprio Dreyfus, “que se gabava junto aos seus amigos das altas somas da fortuna da família que gastava com as mulheres”.
Numa república em que o presidente, Felix Faure, era rei nos bordéis – sua morte, em 1899, no Palácio do Eliseu, quando se relacionava com uma amante casada, a poucos metros do cômodo onde estava a sua esposa, provocou mais comicidade que espanto –, o comportamento de Alfred Dreyfus era próximo ao do burguês-padrão que Zola fixou em “Nana” (1880).
Mas, os inimigos de Dreyfus conseguiram, com sua falta de escrúpulos, com seu total desprezo pela verdade, com seu rompimento em relação a qualquer princípio civilizado, escandalizar boa parte da própria burguesia francesa.
Pois jamais aquilo acontecera, desde finais do século XVIII, isto é, desde a Grande Revolução: foi em nome da “ordem”, de sua preservação, que mais de uma revolução fora esmagada na França, durante o século XIX.
Porém, o que ocorria agora, de 1894 em diante, é que os apologistas da “ordem” estavam, eles mesmos, rompendo abertamente com a ordem – inclusive com a ordem jurídica, tão cara, até então, aos burgueses da França.
Os sujeitos que assim agiam – Maurice Barrès, Paul Bourget, Henri Rochefort, Léon Daudet, Charles Maurras, toda a cúpula do exército, todo o governo de Felix Faure e a maioria do parlamento – não era a ralé que apoiou o golpe de Estado de Luís Napoleão, mas os representantes ideológicos, políticos, literários e militares da grande burguesia francesa, isto é, sobretudo (embora não exclusivamente) da fração financeira, imperialista, monopolista dessa burguesia.
Esse era o escândalo que conduziu tantos homens diferentes à defesa de Dreyfus. Hannah Arendt faz uma observação que é pertinente:
“É peculiar daquele período que um erro judicial pudesse despertar tais paixões políticas e inspirar uma sucessão tão infindável de julgamentos e revisões, para não mencionar os duelos e as lutas corporais. A doutrina da igualdade perante a lei estava ainda tão firmemente implantada na consciência do mundo civilizado que um único erro da Justiça era capaz de provocar a indignação pública, de Moscou a Nova York. (…) O mal causado a um único oficial judeu na França pôde provocar no resto do mundo reações mais veementes e mais unidas do que todas as perseguições a judeus alemães uma geração depois. Até a Rússia czarista pôde acusar a França de barbárie, enquanto na Alemanha os membros da entourage do Kaiser expressavam abertamente sua indignação” (Hannah Arendt, “Origens do Totalitarismo”, trad. Roberto Raposo, Cia das Letras, p. 113, grifo nosso).
Naquele momento, a política do governo francês, e dessa elite, é o revanchismo – por isso, a questão da Alsácia e Lorena, anexadas pelos alemães em 1871, aparece a toda hora. Não é estranho ao caso que parte da família Dreyfus esteja na Alsácia, súditos do kaiser, isto é, dos alemães. Aliás, o principal empreendimento da família, uma fábrica têxtil, está em território alemão – na mesma cidade em que Alfred Dreyfus nasceu, Mulhouse, que passou da França para a Alemanha após a guerra franco-prussiana (1870-1871).
No entanto, a oposição avançava – os republicanos radicais, representantes de parcelas não-monopolistas da burguesia, e os socialistas, representantes da classe operária e da pequena-burguesia.
Sobre os últimos, é preciso uma observação: foi durante o caso Dreyfus, com a agitação popular à beira de levar de roldão a Terceira República inaugurada com o massacre da Comuna, que a ala direita dos socialistas resolveu entrar para o governo – o mesmo governo que, no Ministério da Guerra, tinha o sanguinário Galliffet.
Foi então que Alexandre Millerand se tornou ministro do Comércio, Indústria, Correios e Telégrafos, 1899.
Tratava-se, escreveu então Lenin, do “socialismo ministerialista”, aquele que trocava qualquer princípio, mesmo de fachada, por um lugar no governo…
COLABORACIONISTA
Temos, aqui, algo que já conhecemos, ainda que em imagem negativada, pois não existe diferença moral entre ver ou falsificar provas onde elas não existem e negar que existam provas, ou tentar apagá-las, onde elas existem.
Não havia prova contra Dreyfus. O “bordereau” – um bilhete para o adido militar alemão, conde Maximilian von Schwartzkoppe, encontrado no lixo da embaixada alemã pela senhora Bastian, faxineira que era agente da inteligência francesa – era uma prova de sua inocência, uma prova a favor dele.
Em março de 1896, um ano e cinco meses após a prisão de Dreyfus, o tenente-coronel Picquart, novo chefe do Deuxième Bureau (o serviço de informações do exército), identificou um oficial de nome Esterhazy como o verdadeiro autor do bilhete.
No entanto, isso garantiu apenas o desterro de Picquart, subitamente nomeado para um comando na Argélia.
Nem depois que o escândalo estourou publicamente, os acusadores de Dreyfus voltaram atrás.
E não porque acreditassem que ele era culpado. Quando se descobriu que um oficial, o tenente-coronel Hubert-Joseph Henry, falsificara o dossiê que servira de base para a condenação de Dreyfus (e, depois de preso, o falsário se suicidara), apareceu, na Gazette de France, um artigo de Charles Maurras que ficaria célebre pela canalhice: “Sua malfadada falsificação será aclamada como um de seus mais nobres feitos de guerra!”, escrevia Maurras (cf. George D. Painter, “Marcel Proust: A Biography”, Vol. One, Penguin Books, 1965, p. 219).
Maurras terminaria a vida condenado, em 1945, à prisão perpétua, por trair a França, ao colaborar com os nazistas durante a ocupação, na II Guerra Mundial. As provas de sua traição eram públicas – mas ele não encontrou nada melhor para dizer do que “é a vingança dos dreyfusard”…
Na verdade, era o contrário: o governo fantoche de Petain, servil aos nazistas até o fim, e que teve em Maurras um dos seus mais nojentos ideólogos, é que fora uma revanche dos “antidreyfusard”.
FAÇANHA
Está claro porque, em 1898, na sua “Carta à França”, Émile Zola colocou o problema moral em primeiro plano. Ainda que sem entender completamente o que estava ocorrendo – algo que ele jamais tinha visto – Zola percebeu completamente a relação desse problema moral com a questão da liberdade, ou seja, ele relacionou a derrocada moral dos cães de fila “antidreyfusard” com aquilo que, alguns anos depois, seria conhecido por fascismo:
“De todos os lados, se ouve dizer que a ideia de liberdade foi à falência. E, quando o caso Dreyfus irrompeu, esse ódio crescente da liberdade encontrou uma ocasião extraordinária, as paixões começaram a arder, mesmo entre os inconscientes. Não veem que, se atacam M. Scheurer-Kestner com tanta fúria, é porque ele pertence a uma geração que acreditou na liberdade, que queria a liberdade?” (Émile Zola, “Lettre à la France: l’affaire Dreyfus”, E. Fasquelle, Paris, 1898, p. 11).
Auguste Scheurer-Kestner era o vice-presidente do Senado francês, um industrial, que, depois de uma investigação parlamentar, declarara, em 1897, a inocência de Dreyfus – o que fez com que o ódio e a difamação dos “antidreyfusard” se voltassem contra ele.
(CONTINUA)