30 mortos. Crise se arrasta desde outubro passado. Presidente interino pede antecipação das eleições. Para internautas, aos ocupantes norte-americanos, depois do ‘momento Saigon’ e do ‘momento Cabul’, vem aí o ‘momento Bagdá’
Na terça-feira (30), discurso do líder xiita Muqtada Al Sadr transmitido pela tevê, chamando seus seguidores a deixarem a Zona Verde de Bagdá, depois de um dia de sangrentos confrontos, com 30 mortos e centenas de feridos, conteve por agora a crise política no Iraque que desde outubro – quase um ano! -vem se agravando, diante da incapacidade de formar um governo de maioria, sob os critérios sectários e divisionistas da ‘constituição’ fabricada pelos ‘juristas’ de W. Bush e sacramentada pela ocupação – e ainda hoje em vigor.
Os manifestantes chegaram a ocupar o Palácio Republicano, sede do governo, e os embates se estenderam às províncias ao sul, como Basra, Nassiria e Hillah. Após a saída dos apoiadores de Al Sadr da Zona Verde, o exército iraquiano suspendeu o toque de recolher que havia sido decretado nacionalmente.
A Zona Verde fortificada, onde ficam os ministérios, o parlamento, a sede de governo e as embaixadas, durante os anos da ocupação se tornou o triste símbolo dos desmandos de Washington na nação árabe.
O confronto na Zona Verde acabou trazendo à luz o peso que a ingerência norte-americana ainda tem no Iraque. Apesar das negativas da Casa Branca sobre relatos de que ordenara a evacuação do pessoal de sua embaixada em Bagdá, viralizaram na internet vídeos e imagens que parecem mostrar funcionários da embaixada dos EUA sendo evacuados por um helicóptero militar.
“MOMENTO BAGDÁ”
Imagens que levaram internautas a postarem que, depois do “momento Saigon” e do “momento Cabul”, Washington parece estar próximo ao “momento de Bagdá”, como assinalou o Global Times.
A rejeição à ingerência norte-americana – que ainda mantém bases e tropas a título de evitar o retorno do Daesh (sigla em árabe para Estado Islâmico) – aprofundou-se com o atentado cometido pelo governo Trump, a covarde execução do principal líder militar do Irã, general Qassem Soleimani, quando visitava o Iraque em missão diplomática visando manter um canal de negociações.
Desde então, variadas forças políticas têm exigido o fim dessa intervenção, inclusive Al Sadr, que após ter seu movimento apontado como vencedor nas eleições de outubro passado, disse que a independência do Iraque e a ocupação eram “incompatíveis”. Outros setores xiitas, sempre que há uma oportunidade, disparam foguetes contra instalações militares onde há ianques.
‘DEMOCRACIA’ ETNO-SECTÁRIA PARIDA POR WASHINGTON
Em suma, a ‘democracia etno-sectária’ imposta sob mira de arma por Washington – que divide ministérios e recursos – ou seja, a renda do petróleo – entre ‘xiitas’, ‘sunitas’ e ‘curdos’ e divide o próprio país, mantém o Iraque numa crise política quase permanente. A democracia dos marines também baniu os baathistas, o partido de Saddam Hussein. O Iraque é atualmente o segundo maior produtor de petróleo da OPEC, e o preço vem bombando.
Ainda sob esse sistema, o presidente tem de ser um curdo; o primeiro-ministro, um xiita; e o presidente do parlamento, um sunita. Conforme um relatório de 2021 da NPR [Rádio Pública norte-americana], Washington impôs um sistema de rateio sectário “e este sistema de quotas divide os ministérios e seus recursos entre os partidos etno-sectários”, o que conduz à escalada de confrontos entre os diferentes grupos étnicos e religiosos e as forças políticas após cada eleição, dificultando a constituição de novos governos e impõe barreiras à união nacional.
IMPASSE SE ARRASTA HÁ QUASE UM ANO
A aliança sadrista, apesar de ter eleito o maior número de parlamentares, não conseguiu formar governo, apesar de ter efetivado uma aliança com forças curdas e sunitas, já que bloqueio dos derrotados nas urnas impediu a eleição do novo presidente (o que exige quorum de dois terços).
Para pressionar contra o bloqueio, a bancada sadrista renunciou em massa. O movimento permitiu que a aliança xiita pró-Irã anunciasse o nome de Muhamad Al Sudani – tido como um aliado do detestado ex-primeiro-ministro Nuri Al Maliki – para o cargo de primeiro-ministro.
O que deu início à escalada de pressões e contrapressões, com os sadristas ocupando o parlamento e depois fazendo manifestações em frente, até desembocar na crise na Zona Verde do final de semana.
ANTECIPAÇÃO DAS ELEIÇÕES, PEDE SALIH
Visando abrir um caminho para superar o impasse, o presidente interino, Barham Salih, pediu a antecipação das eleições, proposta que vem sendo defendida desde junho pelos sadristas. “Realizar novas eleições antecipadas de acordo com um consenso nacional representa uma saída para a crise sufocante”, afirmou.
Salih acrescentou que ir às urnas novamente é “uma solução melhor do que entrar em confrontos políticos, conflitos e rivalidades”. Ele defendeu ainda que esta medida “vai garantir a estabilidade política e social” e “parar o ciclo de crises”.
Agrupamentos próximos à coalizão Quadro de Coordenação, pró Teerã, voltaram a insistir na constituição de um novo governo antes de quaisquer novas eleições. Al Sadr pediu a uma corte constitucional que dissolva o parlamento.
AL SADR CONVOCA RECUO
Al Sadr, considerado por muitos como um “camaleão” – seus seguidores por um período combateram de armas na mão os invasores norte-americanos mas depois se envolveram nos massacres que serviram para dividir as forças de resistência nacionais e para estabilizar a ocupação, bem como participaram de diferentes acomodações no poder em Bagdá -, em seu discurso pela tevê pediu desculpas pelos confrontos sangrentos, direto da cidade santa de Najaf, ao povo iraquiano – “o único afetado pelos eventos” – e deu “60 minutos” aos seus seguidores para que deixassem a Zona Verde.
No sábado, fora seu anúncio de que iria “se retirar” da política e dando a entender que sua vida corria risco – pediu inclusive que “rezassem pela alma dele, se isso acontecesse”-, que impulsionara seus seguidores até à Zona Verde.
HERANÇA MALDITA
A invasão dos EUA destruiu em grande parte a infraestrutura do país, que chegou a ser um dos mais avançados do Oriente Médio. Antes da pandemia, manifestações tomaram o país em 2019 contra os blecautes, a corrupção, o desemprego e a falta de perspectivas, atraindo enorme participação dos jovens.
Também a política de Washington para mudança de regime na vizinha Síria, para o que cevou extremistas da Al Qaeda e do Daesh, causou enorme devastação dentro do Iraque, que durante meses teve uma vasta região tomada pelos fanáticos, o que só foi revertido com enorme preço em vidas humanas, especialmente em Mossul – além da volta das operações de guerra por tropas e aviação norte-americanas.