CARLOS LOPES
Não precisamos, graças aos Céus, e aos nossos leitores, provar que o nazismo tinha um caráter antiético, que era oposto – e se opunha – a qualquer ética (evidentemente, ética humana, pois até agora não se descobriu alguma em outra espécie).
É tentador – porque economizaria bastante esforço, trabalho – dizer que não precisamos provar que o neoliberalismo é também oposto a qualquer ética. Mas isso, nos tempos atuais, ainda não é óbvio para muitas (e boas) pessoas.
Em um trabalho escrito há sete anos (“O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica”), citamos alguns ideólogos neoliberais. Por exemplo, o autor mais citado por Ronald Reagan:
“… o progresso material é inelutavelmente elitista: faz os ricos ficarem mais ricos e aumenta o seu número, exaltando os poucos homens extraordinários que podem produzir riqueza acima das massas democráticas que a consomem. (…) Para serem bem sucedidos, os pobres necessitam, antes de tudo, da espora da sua pobreza” (George Gilder, cit. in John Kenneth Galbraith, “A Journey Through Economic Time”, Houghton Mifflin, 1994, págs. 214 e 215).
Naquele trabalho, estávamos mais preocupados com os aspectos históricos que se referiam à economia política: por que, até mais ou menos 1980, o neoliberalismo era apenas uma seita desprezada até pelos monetaristas do establishment norte-americano, provocando, no máximo, aquele tipo de menção acadêmica que nada quer dizer (ou que significa, como as manifestações de respeito de Keynes por Hayek, o oposto) – e, então, a partir daí, tornou-se hegemônico no campo do imperialismo.
Sobre esse aspecto da questão, Paul Sweezy, em 1944, na resenha que publicou sobre o livro de Hayek, “O Caminho da Servidão”, sumarizou:
“O ataque intelectual ao socialismo assume duas formas principais. Ou o socialismo não pode funcionar e qualquer tentativa nesse sentido causará o caos e a miséria universal, ou então o socialismo pode funcionar, mas inevitavelmente leva a uma forma corrupta de totalitarismo. O professor Hayek é um dos poucos e versáteis críticos que operam em ambas as frentes com igual diligência e entusiasmo. Em alguns de seus primeiros escritos, ele provou, para sua satisfação, e a de outros quantos individualistas bravos e destemidos, que o planejamento econômico é impossível, e um meio seguro de alcançar a ruína. Em ‘O Caminho da Servidão‘, ele adota a aparência do filósofo político para advertir seus contemporâneos dos terríveis perigos totalitários que se escondem por trás das belas promessas dos planejadores socialistas.
“Rapidamente, o argumento de Hayek é mais ou menos o seguinte. O mundo no século XIX era um lugar encantador. A propriedade privada, a concorrência e a liberdade avançavam triunfantes, deixando atrás de si um rastro de riqueza e de cultura. Isto se devia à difusão das ideias liberais a partir da Inglaterra, difusão que começou com o crescimento do comércio no início da época moderna. Por volta de 1870, e por alguma razão obscura que o professor Hayek não revela, a maré liberal alcançou seu ponto culminante e começou a retroceder. Um novo sistema de ideias, gerado desta vez na Alemanha, começou a invadir o mundo ocidental. Os lemas deste novo movimento intelectual eram ‘socialismo’ e ‘organização’. A maior parte da Europa, incluídas, é claro, Alemanha e Rússia, sucumbiu. Desde 1931, inclusive a própria Inglaterra, ponta de lança do liberalismo, se embarafustou pelo caminho da ruína, e tudo faz supor uma aceleração desse passo nos próximos anos. A menos… bom, a menos que os ingleses decidam, por um ato de vontade, supõe-se (‘a vontade humana fez do mundo o que ele é’), renunciar a essas ideias de planificação e organização e instalar uma economia de livre concorrência e atomizada” (cf. Paul M. Sweezy, “Hayek y el camino de servidumbre”, in “El Presente como Historia – ensayos sobre capitalismo y socialismo”, trad. G. Tortella Casares e Carlos Bustelo, Tecnos, Madrid, 1968, pp. 123-124).
Apontaremos que o ataque de von Hayek ao “coletivismo” em geral – portanto, inclusive ao socialismo – é dirigido também ao nacionalismo. Ele percebe perfeitamente que a nação é um coletivo, daí a relação entre nacionalismo e coletivismo.
Mas aqui ele faz uma de suas confusões, completamente intencional: é o socialismo que conduziria ao nacionalismo. Por quê? Simplesmente porque ele quer colocar o nazismo (“nacional-socialismo”) na conta do coletivismo e do socialismo, como se a ditadura de Hitler – a submissão de todos a uma individualidade perversa – tivesse algo a ver com coletivismo (e, pior ainda, com socialismo).
Assim, o nazismo seria um produto não do capitalismo monopolista, mas do socialismo (essa afirmação é repetida várias vezes no livro de von Hayek).
É óbvio que concepção Hayek quer apagar. Aquela que encontrou sua expressão mais clara no informe de Dimitrov ao VII Congresso da Internacional:
“O fascismo no poder é a ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro.
“A variedade mais reacionária do fascismo é o tipo alemão. Tem a audácia de chamar-se nacional-socialismo, apesar de não ter nada em comum com o socialismo. O fascismo alemão não é apenas um nacionalismo burguês, é um chauvinismo bestial. É o sistema de governo do banditismo político, um sistema de provocações e torturas contra a classe operária e os elementos revolucionários do campesinato, da pequena burguesia e dos intelectuais. É a crueldade e a barbárie medievais, a agressão desenfreada contra os demais povos e países” (Jorge Dimitrov, “La ofensiva del fascismo y las tareas de la Internacional en la lucha por la unidad de la clase obrera contra el fascismo”, 02/08/1935).
Há outras confusões, no livro de von Hayek, igualmente intencionais, associadas a esta, que são, também, meramente, truques sem escrúpulos de um escroque ideológico – por exemplo, a confusão entre o chauvinismo da burguesia dos países imperialistas e o nacionalismo dos povos de países oprimidos e espoliados.
Sweezy sublinha, também, o absurdo da ideia de que o planejamento da produção conduz inevitavelmente ao “totalitarismo”:
“… em favor do professor Hayek, devemos também reconhecer que os planejadores socialistas errarão, de vez em quando. Podem, por exemplo, superestimar a taxa de natalidade e determinar a produção em excesso de carrinhos de bebê. Porém, podemos assegurar ao professor Hayek, que não se decretará um aumento na atividade procriadora porque ocorreu algo ‘não previsto pelo plano’. Há uma solução muito mais simples: acrescentar o excedente de carrinhos de bebê ao estoque e reduzir a produção, na quantidade necessária, no ano seguinte” (Sweezy, op. cit., p. 127).
LIBERDADE
O livro de von Hayek é considerado, por seus acólitos, a obra inicial do neoliberalismo. Escrito antes do término da II Guerra, é uma coleção de ressentimentos anticomunistas – e não apenas, pois, frequentemente, Hayek se queixa de tendências políticas ou pessoas que jamais foram, nem longe, comunistas.
Pareceu notável a muitos comentaristas da época que von Hayek diga que, essencialmente, não havia diferenças entre o nazismo e o comunismo, no momento em que a URSS, com extremo sacrifício e heroísmo, era a principal força antinazista do mundo.
Resumindo a pregação de von Hayek (e, também, de Ludwig von Mises, professor de von Hayek), escreveu Galbraith:
“O seguro-desemprego, as pensões de aposentadoria e o auxílio aos pobres só terminariam por levar à repressão socialista e à resultante degradação do espírito humano. (…) O monopólio, uma preocupação do pensamento econômico americano, seria na realidade algo basicamente irrelevante que não justificava o mal maior da intervenção governamental – embora um certo grau de coibição pudesse ser pertinente no caso dos sindicatos” (cf. J.K. Galbraith, “O Pensamento Econômico em Perspectiva – uma história crítica”, trad. Carlos Malferrari, Pioneira, 1989, p. 172, grifo nosso).
Desde o fim do século XIX, como vimos na parte anterior deste trabalho, Émile Zola identificara a relação entre a hostilidade à liberdade e a falta de limite moral da reação – que, naquele momento, se expressava pela horda “antidreyfusard”.
Um dos sinais agudos da falência moral do neoliberalismo – e logo em seu início – é que von Hayek propõe um sistema de espoliação brutal dos seres humanos em nome da “liberdade”.
É em nome da “liberdade” e do “estado de direito” (sic) que Hayek quer acabar com o “estado previdenciário” (sic), e, a rigor, com qualquer conquista popular (cf. Friedrich von Hayek, “O Caminho da Servidão”, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, pp. 16-19, 89 e segs).
Von Hayek considera que o núcleo de seu livro é constituído pelo capítulo “A planificação e o estado de direito”. Diz von Hayek:
“A característica que mais claramente distingue um país livre de um país submetido a um governo arbitrário é a observância, no primeiro, dos grandes princípios conhecidos como o estado de Direito” (idem, p. 89).
Deve ser por isso que von Hayek, sempre fiel ao “estado de Direito”, sempre adepto da “liberdade”, foi um dos conselheiros, apologistas e entusiastas de Pinochet. Disse ele, em abril de 1981, quando, em Santiago, foi entrevistado pelo jornal pinochetista “El Mercurio”: “Pessoalmente, eu prefiro um ditador liberal do que um governo democrático carente de liberalismo” (El Mercurio, 12/04/1981, págs. D8/D9).
A condição para esse “estado de direito” é que ele deixe a economia completamente sem qualquer controle ou fiscalização – o que queria dizer, naquela época (e ainda quer dizer, até mais que naquela época), entregar a economia ao domínio e estrangulamento pelos monopólios financeiros privados.
A “liberdade” de von Hayek é para os monopólios e seus controladores. Quanto ao conjunto da sociedade, na medida em que o Estado estaria proibido de interferir, teria o papel de se submeter à “liberdade” dos seus senhores.
Porém, e como observou Galbraith, há exceções, para von Hayek, onde o Estado pode e deve interferir, pois este é o seu papel. Por exemplo, ao pregar que, no pós-guerra, os salários devem ser rebaixados em relação aos níveis que prevaleceram durante a guerra, von Hayek considera que:
“Se, pois, os sindicatos resistirem com êxito a uma redução dos salários de tais categorias, restarão apenas duas alternativas: ou usar a coação (isto é, escolher certos indivíduos e transferi-los compulsoriamente a outras funções menos bem remuneradas), ou então deixar que aqueles que já não podem ser empregados com os salários relativamente altos percebidos durante a guerra permaneçam desempregados até se disporem a aceitar trabalho menos bem pago” (idem, p. 195).
Esta é a moralidade, a “liberdade” e o “estado de direito” dos neoliberais.
Explicitamente, escreve von Hayek:
“O conceito de um código moral completo nos é estranho e é preciso um esforço de imaginação para percebermos o que ele envolve” (von Hayek, op. cit., p. 76).
Por que a palavra “completo”, colocada após a expressão “código moral”?
Von Hayek recusa “um código moral completo” porque “o bem-estar e a felicidade de milhões não podem ser aferidos numa escala única de valores” (idem, p. 75).
Por que é preciso existirem várias “escalas de valores” (valores éticos, morais)?
Segundo von Hayek, “o fato de estarmos sempre escolhendo entre valores diferentes, sem qualquer código social que prescreva de que modo devemos escolher, não nos causa surpresa nem nos leva a pensar que o nosso código de moral seja incompleto” (idem, p. 76, grifo nosso).
Mas, se não é “incompleto”, por que ele rejeita um “código moral completo”?
A resposta parecerá evidente para os leitores que nos acompanharam até aqui: ele rejeita uma ética que seja válida para todos os indivíduos de uma sociedade. É a isto que ele chama “código moral completo”.
Em 1944, residindo na Inglaterra, von Hayek não se atreve a dizer que a moral ou a ética deve valer para alguns – e não para outros; ou que deve existir uma ética para uns – e outra ética para outros. O nazismo ainda não tinha sido completamente derrotado, e milhões de pessoas se mobilizavam contra ele. E essa era, exatamente, a concepção dos nazistas.
Portanto, von Hayek tem que dar uma volta pelo “código moral completo” para chegar a isso:
“… o sistema de objetivos do indivíduo deve ser soberano, não estando sujeito aos ditames alheios. É esse reconhecimento do indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos, é a convicção de que suas ideias deveriam governar-lhe tanto quanto possível a conduta que constitui a essência da visão individualista” (idem, p. 77).
Assim, “… não tem grande importância se os objetivos de cada indivíduo visam apenas as suas necessidades pessoais ou se incluem as de seus amigos mais próximos, ou mesmo dos mais distantes”.
Von Hayek, justiça se lhe faça, consegue envolver bem o conteúdo de suas ideias em lubrificante, para consumo dos incautos. Aqui, é evidente que ele considera a preocupação que vai além do meramente individual, uma aberração – embora, como vimos, aceite uma intervenção “social”: a repressão (“coação”) sobre a maior parte dos indivíduos, isto é, sobre o povo.
Por fim, vejamos a brilhante visão histórica de von Hayek sobre a moral:
“… desde o homem primitivo, restringido por um complicado ritual que abrangia quase todas as suas atividades cotidianas, limitado por inúmeros tabus, e que mal podia conceber uma conduta diferente da dos seus companheiros, a moral vem apresentando uma tendência a tornar-se cada vez mais uma simples linha divisória a circunscrever a esfera em que o indivíduo pode agir livremente”.
Portanto, o problema do homem das cavernas era excesso de moralidade…
MUSA
A maior parte dos ideólogos do neoliberalismo é, ao modo da senhora Ayn Rand – a musa, literata e “filósofa” da turma -, adepta de uma ideologia de psicopata, se é que o sujeito não é realmente um psicopata.
O melhor exemplo é a própria senhora Rand, com seus escritos medíocres, elevada (?!) ao altar (??!) pelos neoliberais.
Leitora fanática de Nietzsche desde jovem, Rand escreveu o elogio de um assassino que raptou e esquartejou, antes que morresse, uma menina de 12 anos, Marion Parker.
Segundo Rand, esse monstro era “a incrível imagem de um homem sem qualquer consideração por tudo o que uma sociedade considera sagrado, e com uma consciência própria. Um homem que realmente está sozinho, em ação e em alma. Ele tem a verdadeira, a inata psicologia de um super-homem. Ele pode nunca perceber e sentir ‘outras pessoas’. Outras pessoas não existem para ele, e ele não vê porque elas deveriam existir. (…) um rapaz brilhante, incomum, excepcional” por seu “imenso e explícito egotismo”, e somente falhou porque “um homem forte pode calcar a sociedade sob seus pés. Aquele rapaz [o assassino] não foi forte o suficiente para isso” (cit. por Johann Hari, “How Ayn Rand Became an American Icon – The perverse allure of a damaged woman”, Slate, 02/11/2009).
Este elogio define todo o resto que Rand escreveu: páginas e páginas em que o neoliberalismo aparece como suposta ficção pedagógica – aliás, chatíssima – com longas arengas contra, por exemplo, o costume de dar esmolas.
O inimigo, diz ela, é o altruísmo – é preciso jamais se preocupar com os outros, jamais ter consideração pelos outros. Existe uma única virtude no mundo: “o egoísmo”.
Quanto às “massas”, elas são constituídas por “piolhos”, “parasitas”, “lama a ser moída sob os pés, combustível a ser queimado”.
Um crítico norte-americano perguntou uma vez por que os personagens de Rand sempre declaravam não precisar de qualquer outro ser humano, e, ao mesmo tempo, se queixavam, a todo momento, de que os outros não se curvavam diante deles…
MAIS LIBERDADE
Se o leitor acha que Ayn Rand é caricatural, apesar de monstruosa, tem razão, até pela vida da figura: sem entrar em questões pessoais constrangedoras, Rand nasceu na Rússia, com o nome de Alisa Rosenbaum, e somente conseguiu frequentar a universidade e se formar, em 1924, devido à Revolução Russa. Como lembrou um de seus biógrafos, os judeus – e, menos ainda, as judias – na Rússia de antes da Revolução, não podiam estudar na universidade.
Mas isso apenas aumentou a sua ingratidão. Para o resto da vida, sobretudo depois de emigrar para os EUA, os bolcheviques, os soviéticos, seriam o seu objeto persecutório.
Realmente, tudo no neoliberalismo parece uma caricatura.
Já abordamos o panfleto de Friedrich von Hayek. Agora, tomemos outro panfleto neoliberal, de outro de seus “pais fundadores”, Milton Friedman, que, entre outras coisas, foi também conselheiro de Pinochet, Videla e outras ditaduras plantadas pelos EUA na América Latina.
Portanto, trata-se de um especialista em liberdade.
Por isso, seu panfleto é um livro intitulado “Capitalismo e Liberdade”.
(CONTINUA)