
“Nada justifica que esta Corte Suprema tenha melhores condições de definir o que os próprios representantes do povo, com a reivindicação da sociedade civil organizada em diversas etapas do processo legislativo, deliberaram”, afirmou o ministro Edson Fachin
O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, nesta quinta-feira (15), a votação sobre o piso salarial dos enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e manteve suspensa a lei aprovada pelo Congresso Nacional.
Por 7 votos a 4, atendendo à ação dos representantes da Saúde privada e planos de saúde, que, através da Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde), protestaram contra a piso, o STF barrou os efeitos da lei até que o Congresso elenque alternativas para seu custeio.
A medida afeta 2,7 milhões de profissionais da enfermagem, que atualmente sobrevivem com salários de miséria. Conforme estudo elaborado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), 56% dos enfermeiros recebem abaixo do piso de R$ 4.750,00 estipulado pela lei; 85% dos técnicos de enfermagem recebem abaixo de R$ 3.325,00, e 52% dos auxiliares de enfermagem também recebem abaixo do piso de R$ 2.375,00.
A suspensão foi determinada pelo ministro Luís Roberto Barroso, acompanhado por Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Luiz Fux.
Contrários à suspensão da lei votaram os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Nunes Marques e André Mendonça.
Em seu voto favorável ao piso, o ministro Edson Fachin rebateu os argumentos apresentados na ação.
“VÍCIO DE INICIATIVA”
Um dos pontos foi o de que a lei seria inconstitucional por “vício de iniciativa”, ou seja, argumentam que, por abranger tanto entes públicos como privados, apenas o Presidente da República poderia dar início ao processo legislativo.
“À luz da jurisprudência desta Suprema Corte, a resposta é negativa”, afirmou Fachin.
“A Constituição da República prevê, em seu art. 61, § 1º, II, “a” e “c”, competir ao Presidente da República a iniciativa para leis que disponham sobre ‘criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração’ e ‘servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria’”.
“No entanto, quando a lei aplica-se indistintamente a toda uma categoria e estabelece piso salarial para todos os servidores e servidoras dessa ampla categoria, abrangendo inclusive os empregados da iniciativa privada, a iniciativa deixa de ser privativa e passa a ser comum, como decidiu este Tribunal, no julgamento da ADI 5.241”.
“No caso dos presentes autos, ao instituir um piso nacional salarial para toda uma categoria, abarcando inclusive empregados da iniciativa privada, não se deve exigir reserva de iniciativa para a lei impugnada”.
“Dois motivos justificam tal compreensão. Primeiro porque a competência legislativa plena é do Congresso Nacional e qualquer restrição às prerrogativas do parlamento deve ser restritamente interpretada. Não se olvide que o Congresso Nacional, no ponto, regulamentou um direito constitucional fundamental, sendo desnecessária norma constitucional expressa para garantir um direito fundamental social. Vale dizer, o piso salarial é um direito fundamental social per se, instituído pelo art. 7º, V, de modo que não se pode exigir emenda constitucional para dar a ele concretude”.
“Segundo porque, ainda que se considerasse haver iniciativa privativa para a fixação de salário mínimo profissional para uma determinada categoria, não haveria inconstitucionalidade formal no caso específico sob análise desta Suprema Corte”.
ESTADOS E MUNICÍPIOS
Outro argumento apresentado foi o de que haveria “ofensa à autonomia de Estados e Municípios”, que não poderiam ser obrigados pela União a arcar com o ônus da instituição do piso salarial.
“Quanto à inconstitucionalidade por ofensa à autonomia dos entes federativos, basta lembrar não só o precedente firmado por este STF na ADI nº 4.167, mas também o próprio precedente da ADI nº. 5.241, ambas já referidas, para se reconhecer que não há ofensa à autonomia dos entes. Trata-se antes, tal como nesses precedentes, do reconhecimento de um direito fundamental social a uma categoria que presta relevante serviço público”.
“De fato, nas ADIs nºs 4.167 e 5.241, considerou-se não haver nenhuma violação ao pacto federativo, por se tratar de legislação que dá concretude direta ao art. 7º, V, da Constituição da República, regulando, ainda, a política educacional. É dizer, o Supremo Tribunal Federal nunca considerou que a prévia vigência de norma específica sobre piso salarial é requisito de constitucionalidade formal de leis reguladoras e minudenciadoras deste mesmo piso. Tem a União, portanto, iniciativa legislativa plena para legislar sobre o tema, como de resto tem para instituir política de salário mínimo”.
“CONSEQUÊNCIAS ECONÔMICAS”
O terceiro e último argumento respondido pelo ministro rebateu a alegações de que “a medida seria eleitoreira e não teria levado em conta as graves consequências econômicas possíveis”.
“Por fim, considero, com a devida vênia, pouco plausíveis os argumentos que apontam para uma inconstitucionalidade material. Não porque não se deve ter cuidado com os impactos e consequências das decisões públicas, mas porque não houve qualquer violação das normas constitucionais”.
“As informações trazidas pelas Casas do Congresso Nacional indicam que, ao contrário do que alega a Confederação Nacional de Saúde, o Legislativo levou em conta os possíveis impactos que a medida poderia implicar. Se há outros dados ou outros elementos que deveriam ter sido levados em conta, essa não é matéria que deva ser submetida à juízo de delibação, porque demanda instrução processual apta a, de forma completa, espancar qualquer dúvida sobre a suficiência de informações”.
“Não se pode presumir, em sede de controle de constitucionalidade, que as informações trazidas por apenas uma das partes interessadas no processo legislativo sirva para diminuir a presunção de plena constitucionalidade das manifestações congressuais”.
“Além disso, se, de um lado, é certo que a preocupação em reduzir o desemprego deve ser vista como um objetivo nacional, de outro, as manifestações nestes autos de diversas entidades representativas dos trabalhadores parece apontar que também essa preocupação foi levada em conta quando da elaboração da lei”.
“Nada justifica, teórica ou empiricamente, que esta Corte Suprema tenha melhores condições de definir o que os próprios representantes do povo, com a reivindicação da sociedade civil organizada em diversas etapas do processo legislativo, deliberaram”.
“Nesse particular, importante esclarecer que o debate legislativo durou tempo suficiente para o amadurecimento dos impactos que a norma teria na realidade social, principalmente na realidade econômica. Ademais, aprovação da Emenda Constitucional n. 124/2022 demonstrou, inequivocamente, a intensidade da vontade legislativa para a criação do piso salarial dessa categoria”, concluiu o ministro.
Em seu voto, a ministra Rosa Weber também reforçou que a ação protocolada pela CNSaúde tem como base dados sobre os impactos causados pelo piso produzidos “unilateralmente” pela entidade.
“Entendo que a avaliação de riscos e impactos negativos produzida unilateralmente pela entidade autora não pode prevalecer, ao menos em juízo delibatório, sobre as conclusões formuladas pelo Congresso Nacional com base em estudos e relatórios elaborados em conjunto com os representantes dos setores público e privado, inclusive com órgãos e entidades da sociedade civil organizada”, disse a ministra.
Segundo Rosa Weber, “a fonte de receitas necessária a sua implementação [do piso] deverá ser indicada na legislação interna que vier a ser editada em cada ente federativo, não na própria lei federal instituidora do piso”.
CONGRESSO
Para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a decisão do STF, embora suspenda temporariamente a lei, não sepulta o piso da enfermagem.
“Diante da decisão colegiada do STF, cabe-nos agora apresentar os projetos capazes de garantir a fonte de custeio a estados, municípios, hospitais filantrópicos e privados”, disse.
Ele disse que buscará, até segunda-feira, “soluções possíveis”.
“Se preciso for, faremos sessão deliberativa específica para tratar do tema mesmo em período eleitoral. O assunto continua a ser prioritário e o compromisso do Congresso com os profissionais da enfermagem se mantém firme. Espero solução para breve”, asseverou.
“Lamentavelmente, o STF formou maioria pela suspensão do piso da enfermagem. Continuamos seguros que a Lei é constitucional. Ela foi fruto de mobilização de décadas da categoria. Um reconhecimento mais que merecido. Vamos à luta para reforçar as fontes e fazer valer este direito”, afirmou a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ).