O veto de Jair Bolsonaro ao reajuste na merenda escolar e o aumento abusivo dos alimentos têm provocado racionamentos nas refeições pelas escolas do Brasil. Relatos de falta de comida e mudança da alimentação para suco e bolacha são encontrados por todo o país.
Em um dos casos, as crianças chegaram a repartir 1/4 de ovo para almoçar.
A foto do prato oferecido na Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) Ipiranga, em Belo Horizonte, rodou nas redes sociais. Ela mostra que a refeição servida leva a quarta parte do ovo, uma colher de arroz, um pouco de verdura e molho de carne.
Reportagem do jornal Estado de S. Paulo mostrou casos de alunos que tiveram a mão carimbada para não repetir o prato. Além de cortes de itens básicos, como arroz e carne, estão entre as queixas espalhadas pelo país. Com o alto número de pais sem trabalho, a merenda é uma chance de refeição equilibrada para parte das crianças.
Em agosto, a gestão Jair Bolsonaro vetou o reajuste, com correção pela inflação, aprovado pelo Congresso. A justificativa foi que isso poderia drenar verbas de outros programas e estourar o teto de gastos. Depois, ele não previu reajuste no Projeto de Lei Orçamentária.
A responsabilidade de custeio da merenda escolar é da União, Estados e municípios, mas a participação federal é importante, principalmente em cidades pobres. Gestores locais dizem que a defasagem do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem feito os municípios gastarem mais. A inflação da cesta básica, que inclui feijão e verduras, teve alta de 26,75% de maio de 2021 a maio deste ano.
O PNAE atende 41 milhões de alunos no País. O valor diário enviado a Estados e municípios para cada aluno é definido conforme a etapa e a modalidade de ensino. É de R$ 1,07 na creche; R$ 0,53 na pré-escola e R$ 0,36 para o fundamental e o médio. Em nota, o Ministério da Educação (MEC) diz que o PNAE alcança todos os matriculados na rede pública. E cada escola recebe alimentos conforme o número de alunos.
Afirma ainda que o FNDE, órgão do ministério responsável pelo programa, não tem autonomia para elevar os valores per capita. Toda escola em área de vulnerabilidade social ou que recebe alunos de área vulnerável pode oferecer refeição extra, diz a pasta.
“A alimentação escolar deve ser responsabilidade compartilhada entre União, Estados e municípios”, diz Gabriele Carvalho, do Observatório da Alimentação Escolar. “Se um desses falha, afeta o equilíbrio do sistema, pois os outros são obrigados a complementar.” Dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional mostram que a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos: de 9,4% em 2020 para 18,1% este ano.
A questão da falta de merenda nas escolas agrava ainda mais a situação da fome no país. Na última quarta-feira (14) a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) divulgou dados complementares do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, onde aponta que, em números absolutos, mais de 125,2 milhões de brasileiros sofrem com algum nível de insegurança alimentar, sendo que 33,1 milhões passam fome.
A edição recente da pesquisa mostra que mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome) – e que o país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990.
Com a economia estagnada, agravada pelo negacionismo do governo durante a pandemia e o desmonte das políticas públicas, Bolsonaro fez explodir a fome no país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 10,3 milhões de pessoas viviam em domicílios com insegurança alimentar grave entre 2017-2018, o número saltou para 33,1 milhões.
O risco da fome atinge 37,8% dos domicílios onde vivem crianças de até 10 anos e a maior proporção de famílias nessa situação está nas regiões Norte e Nordeste do país, aponta a pesquisa.
CASOS
Em Porto Alegre, a vice-diretora de uma Escola de Educação Infantil, Francisca Carneiro diz que mães agradecem ao saber que o filho come carne e frutas. “São itens que subiram muito de preço e às vezes faltam em casa”. Na cidade, não faltou merenda porque a prefeitura dobrou o repasse próprio (de R$ 3 milhões em 2019 para R$ 6 milhões este ano). A verba federal, diz o município, só dava para o 1.º semestre.
Neste mês, imagens de alunos do Centro Educacional 3 de Planaltina, no Distrito Federal, com a marca de carimbo na mão para não repetirem a merenda circularam nas redes. A diretoria da escola justificou que a medida foi de um professor para evitar “fura-fila”, com alunos servidos mais de uma vez e outros ficarem sem. Já a Secretaria da Educação disse repudiar a medida e afirmou não faltar alimentos nem haver veto a repetir. Segundo a pasta, o caso foi isolado e é apurado pela Corregedoria. O sindicato dos professores diz que há restrições em mais escolas.
Em Cascavel (PR), pais também reclamam da falta de itens básicos, como arroz. A prefeitura diz ter notificado a empresa vencedora da licitação para corrigir eventuais faltas e destacou ter comprado R$ 33 milhões em alimentos. Auxiliar de escritório, Thais Amaral, de 29 anos, tem um filho de 6 anos na rede. “Faz mais de uma semana que ele diz que não tem arroz.” A Secretaria de Educação de Cascavel afirma que o cardápio é feito pela equipe de nutricionistas e o arroz não é o único item que compõe a lista.
Em Melgaço (PA), relatório do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, de agosto, aponta que a merenda, de baixa qualidade, não é oferecida todo o mês. Quando falta, diz o documento, muitos alunos “ficam com fome e têm seu rendimento prejudicado. Até mesmo a ida para a escola é condicionada à existência da merenda”. Educadores relataram que, na maioria das vezes, são ofertados suco e bolacha.
Em Cachoeira de Goiás (GO), a Justiça mandou repassar os R$ 755 mil da Festa do Divino Pai Eterno para a merenda, já que as escolas serviam só bolacha, leite e suco. Em Alcântara (MA), a Justiça mandou regularizar o fornecimento.
SITUAÇÃO INSUPORTÁVEL PARA MUNICÍPIOS
A União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) repudia o veto ao reajuste pelo governo Bolsonaro.
O presidente da Undime, Luiz Miguel Garcia, considera que “não é admissível que o valor da merenda para os estudantes dos ensinos médio e fundamental seja apenas 36 centavos”. “Isso é impraticável”, afirma, lembrando que a alimentação escolar é fator primordial para a garantia da aprendizagem. “É preciso garantir o mínimo necessário”, alerta.
Garcia pondera, ainda, que passado o período crítico da pandemia a expectativa recai sobre a implementação de programas complementares de alimentação nas escolas, como forma de garantir a recuperação da aprendizagem. “Mas o que vivenciamos é uma frustração total”, lamenta, observando que a única saída seria a intervenção do Poder Legislativo. “A situação está insuportável para os municípios. Poucos são os que conseguem relocar recursos de outras fontes. Não faz sentido aceitar a perda de qualidade da alimentação escolar. Estamos retrocedendo 30, até 40 anos no tempo. É inadmissível”, disse.
Para a gerente de Conhecimento Aplicado na Fundação Maria Cecília Souto Vidgal, Beatriz Abuchaim, o papel da escola no desenvolvimento infantil é fundamental. Entre outros pontos, afirma, a escola é capaz de garantir estímulos adequados ao desenvolvimento integral, promovendo aprendizagens significativas. Além disso, completa, os estabelecimentos de ensino também desempenham papel protetivo, de identificação da exposição de crianças a situações de violência e fome, por exemplo. “É papel da escola prover merenda escolar”, alerta.
Abuchaim lembra que a alimentação escolar é um direito garantido pela Constituição Federal, como um programa suplementar à educação e que o Estado tem a obrigação de garantir que os estudantes recebam alimentação durante o período em que estiverem na escola. “Essa merenda, no Brasil, é subsidiada pelo Governo Federal para todos os alunos da educação básica de escolas públicas e filantrópicas. O repasse é feito diretamente aos estados e municípios, com base nas matrículas declaradas no censo escolar”, pontua.
Ela é mais uma a observar que em um cenário pós-emergência da covid-19, no qual a insegurança alimentar é realidade no país, o veto presidencial contra o reajuste do PNAE impacta diretamente nas crianças. “A insegurança alimentar precisa ser combatida, pois representa uma violação aos direitos da criança e pode resultar em impacto negativo para o seu desenvolvimento pleno”, diz.
https://22fca616e8b08f9a6857d61d84396042.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html Além disso, frisa a especialista que diferentes pesquisas acadêmicas indicam que o acúmulo de deficiências nutricionais causado pela fome ou pelo consumo de alimentos de baixa qualidade impactam diretamente na aprendizagem e no desenvolvimento infantil.
“Não podemos esquecer que o último Censo Escolar da Educação Básica, realizado pelo INEP em 2021, apontou que cerca de meio milhão de estudantes matriculados em período integral realizam pelo menos uma refeição na escola. Em muitas famílias em situação de vulnerabilidade, as crianças acabam por depender das escolas para se alimentar de forma adequada. Assim, é imprescindível garantir recursos para uma alimentação escolar suficiente e de qualidade, que possa contribuir para o desenvolvimento saudável das crianças”, conclui.