MARIO DRUMOND
Logo depois do golpe de estado na Ucrânia, em 2014, numa de suas várias entrevistas publicadas sobre aqueles fatos, Putin disse “que a Rússia, a cada século, parecia ser chamada a salvar a Europa de si mesma”.
Não deixava claro, porém, se desta vez a Rússia atenderia à chamada.
Aparentemente não haveria tal disposição por parte do Kremlin pois, na mesma época, Putin e Xi Jinping fortaleciam, com firmeza, a estratégia de fomentar o papel geopolítico da união eurasiana a fim de que abrigasse com solidez política e militar a já inevitável rotação, de ocidente para oriente, do eixo econômico mundial.
A reunião de cúpula da OCX (Organização de Cooperação de Xangai) encerrada em 16 de setembro passado com a presença de 26 grandes países da região (que agora inclui o Oriente Médio), 12 dos quais membros efetivos (entre eles China, Rússia, Índia, Paquistão e Irã) e os demais em processo de efetivação ou em observação para candidatura, além de outras nações que oficializaram interesse, demonstra que tudo vai de vento em popa, mas não na direção de uma “Otan oriental” beligerante, como anotam as más línguas ocidentais, mas, talvez, como já se expressaram observadores mais capazes, de uma “nova ONU”.
De fato, a extensa Declaração de Samarkanda (no Uzbequistão, onde se realizou a cúpula), apesar de se posicionar na mais plena adesão aos estatutos da ONU, parece temer pelo futuro da mesma dado o assédio destrutivo que sofre por parte do Estados Unidos e a União Europeia contra todos os seus princípios fundamentais.
Assim, o teor do documento pode ser visto sob o ângulo de um projeto de estatuto com amplitude mundial e possibilidade de ser adaptado a uma eventual sucessão para o caso de falência institucional da ONU, hoje sob grave ameaça de perder sua própria finalidade e objeto existencial. A mesma localização dela em território estadunidense a ameaça dada a recorrência de negação de vistos aos diplomatas que os EUA consideram indesejáveis (agora, p.ex., tais vistos estão sendo negados à delegação russa, incluindo-se o próprio Lavrov).
A Declaração de Samarkanda, em seus 121 itens, sequer menciona a questão ucraniana que, evidentemente, foi tema de reunião bilateral aparte entre Xi Jinping e Putin e, provavelmente, nas demais reuniões apartadas de Putin com outros mandatários no conclave.
Formalmente, o Kremlin parece transmitir ao mundo a mensagem de que o assunto Ucrânia é coisa do seu quintal (e, se alguém quiser se meter, “vai ter”). Mas uma possível estratégia do Kremlin (ninguém sabe o que se pensa lá a respeito), se vista de fora e no distanciamento que abrange o desespero do “Ocidente” em conseguir a sua Terceira Guerra Mundial, é a que faz do conflito na Ucrânia uma espécie de válvula de escape da panela de pressão ocidental (EUA/UE/OTAN) pela sua deflagração.
Querem guerra? Aí está! Mas nos limites do território da Ucrânia (meu quintal) e da minha operação especial. Podem trazer seus brinquedos de guerra, os engenheiros e projetistas da nossa indústria de defesa querem muito conhecê-los.
É uma postura que tem seu custo, principalmente humano, de vidas preciosas. Mas sem comparação com o que seria o custo armajedônico de uma Terceira Guerra Mundial.
Mas tem também seus ganhos.
Na Síria, os russos testaram muitos novos armamentos criados pela sua eficiente indústria de defesa contra um exército proxi bem armado pelo “Ocidente”, porém com armas obsoletas e muitos dos inimigos usando turbantes e sandálias (sem menosprezo para a cultura árabe).
Na Ucrânia, a indústria de defesa da Rússia goza de um tipo de polígono de testes, bem na fronteira do país, quase sem custo de logística e zero custo de equipamento e munição adversária, no caso, de última geração, pois fornecidos por inimigo real, equipado e treinado pela OTAN (que se considera a força bélica mais poderosa do mundo depois da dos EUA).
Sem dúvida, os engenheiros e projetistas russos estão diante de um prato cheio. Além do que, o exército russo exercita sua musculatura nas disciplinas mais importantes da arte da guerra: a artilharia e a infantaria com botas em solo inimigo. Tudo no contexto da guerra moderna: armas combinadas com aviação, marinha, mísseis, satélites, EW (eletronic war), AD (airspace denied), e os cambáu.
Isto quer dizer que a Rússia conduz o conflito em casa, como quer e pelo tempo que achar necessário para testar suas táticas de avanços e recuos, aprimorar seus equipamentos, armas e munições e treinar seu pessoal, além de fazer com que a Otan/EUA atravesse o Atlântico com armas e munições, canibalize os estoques de seus aliados na Europa, recrute e treine mercenários mundo afora e enfrente onerosa e arriscada logística para introduzi-los no território da Ucrânia. E não raro ver tudo virar fumaça preta por um Kalibr lançado de algum ponto do Mar Cáspio, troféus para estudos nos laboratórios de guerra da Rússia ou grana de contrabando para as gangues de traficantes de armas e autoridades corruptas da Ucrânia.
E se afinal vier, o armagedon encontrará uma poderosa Rússia que se fortalece mais e mais, inclusive por suas renovadas alianças, e uma Otan/EUA que se enfraquece em ainda maior escala, não somente por sua atual e malfadada aventura russo-fóbica, mas também, e principalmente, pelas contradições e crises que se agigantam nas diversas nações que compõem essa maldita “aliança”.
Com a elegância e a diplomacia que caracterizam suas relações internacionais, a Rússia deu as costas para a Europa (bye-bye) e desta vez nada indica que a salvará de si mesma.
O Kremlin tem muito mais o que fazer junto com a China na construção da multipolaridade que gradual e paulatinamente conquistam em competente estratégia geopolítica, provocando a adesão em fila das nações na OCX (já representando quase 3/4 da humanidade).
São nações cujos povos e líderes estão de saco cheio de delírios “pós-humanistas”, o tal “caos controlado” e a tal “reinicialização”, e outras idiotices mais ou menos graves oriundas da gerontocracia esclerosada de Washington DC, com o concurso deslumbrado (“esquerda progressista” ou “trotskysta”) de iupes think thanks (trad: débeis mentais) e mais uns/umas borra-botas de Londres e Bruxelas (alguns/algumas com a suástica tatuada no pescoço).
O grande perigo, na verdade, é que nesse hospício todo há estoques de armas nucleares capazes, segundo os informes técnicos mais sérios, de destruir o mundo 25 vezes.
Há razões para crer que, no âmbito de suas atividades secretas, o Politburo do PC Chinês e o Kremlin estariam desenvolvendo inteligência, capacidades e meios para neutralizá-lo.
Belo Horizonte, 18 de setembro de 2022.
Matéria relacionada: