Um despacho do presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Eduardo Bim, pretende anular multas ambientais estimadas em R$ 16,2 bilhões, conforme o próprio órgão.
A portaria de estímulo aos crimes ambientais é de 21 de março e se refere às multas aplicadas entre 2008 e 2019 que utilizaram edital para avisar os infratores sobre a necessidade de apresentarem sua defesa no final do processo. A informação foi divulgada pelo Portal UOL, que teve acesso aos valores por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
O Ibama informou, em atendimento à LAI que seus fiscais notificaram por edital 60% das 66 mil multas aplicadas no período. Os processos, que precisam ser anulados um a um pelos servidores, vão “presentear”, desde desmatadores, incendiários a transportadores ilegais de madeira.
A reportagem informa que o valor não foi corrigido pela inflação porque o Ibama não indicou individualmente as multas expedidas em diferentes datas entre 2008 e 2019 sob o argumento de que “à época, as notificações por edital não eram registradas devidamente”.
O número exato de multas anuladas não é conhecido. De acordo com o despacho do Ibama, a autuação ainda poderá ser levada adiante caso o processo não tenha ficado mais de três anos parado.
Do contrário, deverá ser anulado. O órgão alega não saber informar o número de ações que se enquadra nesse critério por “falta de dados consolidados”.
Mas como já faz três anos que a lei proibindo o uso de edital mudou, os processos que não foram movimentados desde então acabarão anulados de qualquer forma.
A notificação por edital estabelecia que depois de passadas todas as etapas do processo, o Ibama informava o infrator ambiental que tinha um prazo de dez dias para apresentar sua defesa definitiva.
Um decreto de 2008 possibilitava ao Ibama fazer o aviso por edital. Desse modo, um documento era publicado no site do instituto e disponibilizado em sua sede administrativa. A partir de agora, esse aviso precisa ser feito pelo correio.
A maioria das notificações eram feitas por edital, informa Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.
“Isso nunca foi problema porque os autuados e seus advogados estavam acostumados com essa regra e acompanhavam as movimentações das diferentes etapas do processo sancionador”, explica.
“Muitos advogados inclusive contratam serviços de acompanhamento processual”, prossegue Araújo. “Essa decisão é como um terremoto que desmonta todo o processo fiscalizatório”, compara. “Joga todo o trabalho dos fiscais no lixo e estimula novas infrações”, avaliou a ex-presidente do Ibama.
Além de perder arrecadação, enfraquecer a fiscalização e estimular o crime, Suely acredita que o despacho também pode acarretar um desfalque aos cofres públicos. “Se os infratores convocados por edital chegaram a pagar a multa, eles podem entrar na Justiça ou mesmo administrativamente, no Ibama, e pedir o dinheiro de volta alegando que a modalidade de convocação por edital foi anulada”, prevê.
BENEFICIADOS
O Banco Santander é um dos maiores beneficiados com a medida. Em 2016, a instituição foi autuada em R$ 47,5 milhões por financiar a produção de grãos em área de proteção ambiental na Amazônia. Em valores atualizados, a multa corresponde hoje a R$ 64 milhões, informa o Uol.
O Santander pagou para que milhares de toneladas de milho e soja fossem semeados em 572 hectares em regiões embargadas pela fiscalização exatamente em razão de plantações irregulares registradas anteriormente nas cidades de Porto dos Gaúchos, Feliz Natal e Gaúcha do Norte, em Mato Grosso.
O Santander alegou “que sempre atua em conformidade com todas as normas ambientais em suas operações” e que “o banco recorreu contra a autuação mencionada […] por entender que foram cumpridos todos os requisitos vigentes à época da concessão do empréstimo.”
Afirmou ainda que a instituição vem elevando “voluntariamente os padrões de avaliação de financiamentos para além dos requisitos legais”.
Outro caso é o da Rumo Malha Norte, multada em R$ 25,5 milhões —R$ 43,8 milhões corrigidos. Em abril de 2103, 23 vagões de um de seus trens de carga descarrilaram, derramando gasolina e óleo diesel em um manancial. O combustível contaminou o lençol freático em Inocência (MS).
A companhia diz que “estava aguardando a decisão administrativa sobre o mérito de sua defesa quando tomou ciência da anulação da autuação”.
BIM
Em julho, o presidente do Ibama já havia atuado para beneficiar criminosos ambientais, alterando normas. Bim estabeleceu que, para responsabilizar um infrator, agora os fiscais do Ibama terão de comprovar não apenas o dano ambiental, mas também o dolo, que significa a intenção de provocar queimadas ou desmatamento, por exemplo.
Com isso, tornou-se necessária uma investigação sobre a infração e outra sobre a culpa de quem a cometeu. Exigência inviável para os servidores do instituto, que trabalham com um quadro reduzido.
Segundo levantamento do Centro de Sensoriamento Remoto e do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o Ibama tem um déficit estimado em 2.311 servidores.
O governo de Jair Bolsonaro também modificou a Lei de Crimes Ambientais ao criar uma etapa de conciliação, anterior ao julgamento. Além de proporcionar um desconto de 60% da multa, o decreto suspende seus efeitos “até a realização da audiência de conciliação”.
Com isso, passados mais de dois anos, apenas 252 casos foram concluídos, o que representa menos de 2% dos autos infracionais emitidos em 2019 e 2020, segundo a pesquisa da UFMG. “A quase totalidade de autos continua suspensa.”
PASSANDO A BOIADA
Dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) indicam queda de 40% na emissão de autos de infração pelo Ibama em 2021 na comparação com 2018, último ano do governo Temer.
“São as chamadas boiadas, mudanças que não passam pelo Congresso e que buscam paralisar a fiscalização do Ibama”, diz o professor da PUC-SP e consultor jurídico do ISA (Instituto Socioambiental), Maurício Guetta”. Segundo ele, essas mudanças representam “a extinção da política pública ambiental”.
A “boiada” a que se refere Guetta diz respeito à declaração de Ricardo Salles, que em reunião ministerial em 2020, quando estava à frente do Ministério do Meio Ambiente, defendeu mudar as leis ambientais enquanto o Brasil estava voltado para à pandemia.
Entre 2019 e 2021, o Brasil perdeu uma área de 42 mil km² de vegetação nativa, quase o estado inteiro do Rio de Janeiro.
O dinheiro destinando à fiscalização ambiental também encolheu sob a gestão Bolsonaro. A queda, em 2021, foi de 25% em comparação com 2018 e de 22,5% em relação a 2014. Esse foi o último ano com dados disponíveis no Portal da Transparência.
CANDIDATOS DEVEDORES
Apesar das perdas orçamentárias e dos ataques constantes por parte do governo que despreza o meio ambiente, o Ibama multou 212 candidatos que disputam diversos cargos nas eleições deste ano.
O valor das multas se aproxima de R$ 78,7 milhões. A maior parte das infrações foram contra a flora, seguidos da ausência de controle ambiental e pesca ilegal, segundo o G1.
Para identificar os candidatos, o portal cruzou os dados do Ibama dos últimos 30 anos com a base do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No total, foram aplicadas 392 multas.
Cerca de 30% das 392 infrações aplicadas pelo Ibama estão concentradas em três estados pelos quais os candidatos concorrem este ano: Mato Grosso (16,5%), Rondônia (8,4%) e Roraima (7,3%).
Entres os partidos, o PL, legenda pela qual Jair Bolsonaro disputa à reeleição, concentra a maior quantidade de multas (58) e a maior soma R$ 19 milhões. Abaixo do PP, vem o PROS, com apenas sete infrações, mas que totalizam R$ R$ 15 milhões.
Entre os criminosos ambientais, está o próprio Jair Bolsonaro, que em 2012 foi multado em R$ 10 mil em Angra do Reis por pesca ilegal. No entanto, segundo os registros do Ibama, a multa está prescrita.
Ao assumir como presidente da República, Bolsonaro exonerou do cargo de Chefe do Centro de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambienta o servidor que lhe aplicou a multa.