“A reforma da Previdência foi a faísca que acendeu a mecha do coquetel molotov, lançado sobre uma paisagem que já vinha ressecando há anos”, afirmou Mónica Baltodano, guerrilheira, política e revolucionária nicaraguense em entrevista concedida ao portal Informationsbüro Nicarágua e traduzida para o português por Raphael Sanz para o Correio da Cidadania.
Seguem os principais trechos da entrevista na qual a comandante, que foi deputada no período entre 2007 e 2011 na Assembleia Nacional da Nicarágua e é hoje opositora ao governo Daniel Ortega e fundadora do Movimento de Resgate do Sandinismo (MRS), descreve o processo de negação dos princípios, degeneração e isolamento do governo conduzido por Ortega e sua esposa Rosario Murillo.
Ela explicitou o conteúdo do pacote que provocou o levante: “o governo impôs a Reforma do Sistema de Previdência Social e inconstitucionalmente elevou a quota patronal e a dos trabalhadores enquanto reduziu em 5% as aposentadorias”.
Além disso, destaca, “já era público que os fundos da seguridade social foram usados em investimentos arriscados e que a instituição inflou valores e resultados. Havia incômodo pelas irregularidades na gestão da instituição. O anúncio foi sem discussão prévia. A decisão foi um balde de água fria. E foram os estudantes que iniciaram os protestos ”.
No entanto, esclarece a comandante da guerrilha que derrubou o regime ditatorial e entreguista de Somoza, o ambiente já estava totalmente ressecado a tal ponto que a reforma foi a faísca que incendiou o país.
Entre os fatores repudiados pelo povo lhe foi usurpada a “liberdade de expressão e mobilização, pois cada tentativa de manifestação foi objeto de repressão por parte das tropas de choque da polícia”.
E mais, “as pessoas sabem que foram cometidas fraudes eleitorais de forma sistemática, afastando qualquer tentativa de construir forças de oposição, de qualquer signo, em particular de signo sandinista. Só permitem as forças “zancudas”, ou seja, as que fazem o jogo para aparentar democracia (o termo “zancudo” foi cunhado na luta contra Somoza, ainda nos anos 80, para os conservadores que faziam o jogo daquele governo).
“Porque a corrupção não é castigada. Há o caso de Roberto Rivas, magnata com mansões na Espanha e Costa Rica, jet privado, a quem os EUA aplicou a Lei Global Magnitsky. O governo em vez de afastá-lo da presidência do Conselho Supremo Eleitoral, o manteve no cargo com privilégios e imunidade.”
“Os crimes absolutamente repudiáveis como o cometido na Comunidade de San Pablo, onde o exército executou 6 pessoas, entre eles dois menores (um menino de 12 anos e uma menina de 15, a segunda inclusive violentada) ficaram em total impunidade”, destaca a guerrilheira.
“As organizações de mulheres, ambientalistas, de direitos humanos e outras são submetidas ao assédio e pressão por parte das instituições do Estado. As organizações de direitos humanos independentes sequer são deixadas ver os presos…”
“Os estudantes se cansaram de que não ter liberdade de organização nas universidades, pois os reitores e muitos professores atuam como oficiais de polícia política para o governo.”
Entre outros fatores da maior gravidade, ela denuncia ainda que “o governo instalou como norma o Secretismo e não tem nenhuma interlocução com a sociedade. Só fala com seus aliados (o grande capital) e com subordinados (a própria força). É mantida uma humilhante posição de dependência ou medo.”
Resultado disso, é que “o governo entregou o país através da Lei 840 (para concessão do canal) e outras concessões como minérios, florestas, oceano. Todas as iniciativas de discutir sobre a conveniência ou não destas concessões foram rechaçadas.”
E, por fim, “Não existe liberdade de expressão. Os meios de comunicação, incluindo os do FSLN, foram quase todos privatizados a favor do regime. A maioria dos canais de televisão faz parte de um duopólio: ou são filhos do casal presidencial ou são do seu sócio, o empresário mexicano Juan Ángel González, e só transmitem novelas e enlatados.”
Ao povo apenas “se reparte migalhas através de programas assistenciais que não dão dignidade e não tiram pessoas da pobreza. E ainda jogam na mídia índices positivos de crescimento macroeconômico, sendo que o que cresceu foram as fortunas dos banqueiros – com as taxas mais altas da região – suas próprias fortunas e a concentração da riqueza em poucas mãos.”
Para piorar ainda mais a situação em um dos países mais pobres do Continente, “os programas sociais vão sendo fechados porque eram artificialmente mantidos com parte da ajuda venezuelana, que entrava nas arcas da família presidencial sem nenhum tipo de controle. Ou seja, a diminuição da pobreza que tanto pregaram não é sustentável, porque não foi baseada em uma mudança estrutural, nem em reformas no sistema tributário”.
“O ambiente começou a ficar mais tenso há quatro anos, com a Lei Canalera (840). E com o advento dessa lei, para enfrentar os perigos que afetariam diretamente milhares de famílias camponesas que tinham de ser desalojadas, construiu-se o movimento camponês mais forte que se pôde organizar nos últimos 20 anos e realizou quase 100 marchas. Todas reprimidas e as tentativas de marchas para Managua, impedidas brutalmente.”
Foi “neste contexto se realizaram eleições nacionais e logo as municipais. Ambas fraudulentas. Nas primeiras, Ortega se reelegeu com 70% de votos para ter uma Assembleia totalmente controlada e reformar a Constituição à sua maneira.”
A reação a toda essa degeneração e imposição de uma política antipovo não tardou. A repressão inicial aos protestos não foi capaz de contê-los mas, ao contrário, “essa repressão rapidamente escalou o protesto a níveis até agora desconhecidos durante o governo Ortega e se estendeu territorialmente, incorporando setores populares: aposentados, desempregados, trabalhadores autônomos, operários e principalmente estudantes e jovens , com marchas nos povoados mais distantes.”
“É preciso ressaltar”, destaca Baltodano, “que as pessoas, para defenderem-se, rapidamente passaram das mobilizações para a construção de barricadas a fim de impedir a passagem da polícia.”
“Mas a maior parte dos que protestam são – em um país onde a classe média é muito pequena – do povo trabalhador, artesãos, operários e trabalhadores informais – que é o maior contingente de trabalhadores na Nicarágua, cerca de 70% da força de trabalho. O interessante é que o movimento estudantil, que havia estado cooptado e controlado pelo governo, escapou de suas mãos. Há sandinistas, liberais, conservadores e sem partido.
“Aqui a direita econômica e política, o capital em uma só palavra, é quem governo junto a Ortega. O modelo de Aliança Publico Privada que aplaude a direita mundial, o FMI, o Banco Mundial e as grandes corporações e investidores do mercado financeiro.
“Hoje, 96% do PIB da Nicarágua vem do setor privado. O governo terminou de aniquilar o que restava da propriedade social, em forma estatal e de cooperativas, e assim deixou o país sem nenhuma riqueza pública.
“Que não se engane a esquerda mundial com este governo. De esquerda, aliás, não sobrou nada. “Aqui a direita e o governo são a mesma coisa. Banqueiros e Ortega são a aliança que “governa” por mais de uma década”, afirma a comandante.