
A bolsonarista Damares Alves mudou a versão sobre os supostos abusos de crianças no Pará relatados em um comício em uma igreja da Assembleia de Deus em Goiás. Segundo ela, a denúncia de crianças que “tiveram seus dentes arrancados para facilitar o sexo oral” foi o que “ouviu nas ruas”.
Anteriormente, a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro, havia dito que as provas dos supostos crimes estavam em posse do Ministério. A mudança da versão reforça a tese de que Damares mentiu durante o seu discurso em evento da campanha de Bolsonaro.
“O que eu falo no meu vídeo são as conversas que eu tenho com o povo na rua. Eu não tenho acesso, os dados são sigilosos. Mas nenhuma denúncia que chegou na ouvidoria deixou de ser encaminhada”, disse, cinco dias apresentar os supostos crimes a uma plateia repleta de crianças.
A história contada durante um culto religioso em Goiânia por Damares circula em fóruns da internet como ficção desde 2010. Um relato anônimo de 12 anos atrás, que contém diversas semelhanças com o suposto crime descrito pela senadora eleita, foi escrito no site “4chan”, conhecido por seu conteúdo pervertido e de violência extrema.
Segundo apuração do jornalista André Duchiade, do jornal O GLOBO, o lema do site é “as histórias e informações aqui encontradas são obras artísticas de ficção e falsidade. Só um tolo tomaria qualquer coisa encontrada aqui como fato”. Os textos da plataforma costumam ser chamados de “textos verdes” (“greentexts”). O termo se refere a um subgênero narrativo da internet onde são contadas experiências bizarras e chocantes, sem oferecer nenhuma prova, ou seja, uma ficção.
Além de não trazer evidências concretas dos relatos, os textos não são assinados. No entanto, por serem amplamente reproduzidos e alterados, os conteúdos passam a ser considerados realidade por pessoas que os ouvem de terceiros.
Umas das narrativas deu força a uma teoria do grupo de extrema direita “QAnon”, em que quase todas as instituições políticas dos Estados Unidos estariam dominadas por pedófilos satanistas, que o ex-presidente Donald Trump, aliado de Bolsonaro, “combateria secretamente”. Segundo informações do O Globo, a teoria saiu do fórum e ganhou credibilidade dentro do Partido Republicano, nos EUA, onde 15% dos correligionários acreditam na fakenews.
O suposto relato de Damares é compartilhado em páginas da chamada “deepweb” a internet profunda, em uma grotesca história apelidada de “Lolitas escravas brinquedos”. A conta no Twitter de Fabiana Iglesias foi a primeira a notar a semelhança entre os casos. Na história, um suposto cirurgião relata sequestrar crianças, amputar seus membros, arrancar seus dentes e alimentá-las com dietas líquidas.
No entanto, na narrativa original, o lugar do conto é o Leste Europeu, enquanto Damares afirma que o suposto caso estaria acontecendo na Ilha de Marajó, no Pará. “Os seus dentinhos são arrancados pra elas não morderem na hora do sexo oral. Essa nação que a gente ainda tem irmãos. Nós descobrimos que essas crianças, elas comem comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal”, disse a senadora eleita, passando a ideia de que Bolsonaro teria uma missão divina de salvar essas crianças.
A estratégia de Damares remete ao QAnon. O movimento se refere a Trump como o salvador contra a seita satânica secreta, em uma luta do bem contra o mal. Já Damares faz o mesmo com Bolsonaro:
“Nós vamos atrás de todas elas” [crianças], e o inferno se levantou contra esse homem. A guerra contra Bolsonaro, que a imprensa levantou, que o Supremo levantou, que o Congresso levantou, acreditem, não é uma guerra política. É uma guerra espiritual”, disse Damares.
MENTIRA E PERVERSIDÃO
Não é de hoje que Damares cria narrativas para tentar ludibriar seus seguidores. A mais famosa delas é a de que teria visto o próprio Jesus “em um pé de goiaba”.
Segundo contou Damares, ela já estava aboletada no pé de goiaba, quando viu Jesus se aproximando, o que a deixou muito angustiada, pois Jesus começou a subir, e ele “não sabia subir num pé de goiaba”.
Ela também é conhecida por acusar 40 povos indígenas brasileiros de praticarem infanticídio. “Em torno de 40 povos [indígenas] no Brasil matam suas crianças quando nascem filhas de mãe solteiras, gêmeas ou qualquer deficiência física e mental e povo que tava aí no poder diz que não pode salvar essas crianças porque é cultura. Hipócritas”.
A acusação de Damares serve para justificar a acusação que corre contra ela de ter sequestrado uma criança em uma aldeia do Parque do Xingu.
Reportagem da revista ÉPOCA, publicada em 2019, revelou o processo de adoção ilegal da criança indígena por Damares. A menina, que hoje tem 20 anos, nasceu em uma aldeia Kamaiurá, no Parque do Xingu e foi levada com seis anos para fazer um reparo dentário, mas nunca mais retornou para casa. “Chorei e Lulu estava chorando também por deixar a avó. Márcia levou na marra. Disse que ia mandar de volta, que quando entrasse de férias ia mandar aqui. Cadê?” relata sua avó, Tanumakaru.
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O Ministério Público do Pará e o Ministério Público Federal cobraram explicações de Damares e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, já que nenhuma denúncia como esta chegou ao conhecimento dos órgãos responsáveis.
Questionada pelo MPF, Damares chegou a fornecer três relatórios supostamente para comprovar a veracidade da sua denúncia, mas as 2.093 páginas dos documentos não mostraram nenhum dos crimes que teriam ocorrido.
Abaixo-assinado para que Damares não assuma mandato já possui 700 mil adesões
Por causa de tamanha fake-news, Damares se tornou alvo de um abaixo-assinado na internet que pede sua cassação antes da posse.
O abaixo-assinado foi lançado nesta terça-feira (11) e, na tarde desta sexta, já ultrapassava a marca de 700 mil assinaturas. A petição, de autoria de Maria Christina Mendes Caldeira, usuária da plataforma, afirma que Damares teria mentido ou prevaricado na condição de ministra.
“Ambos fatos gravíssimos para uma funcionária pública e merecem cassação imediata por ação popular antes da posse”, defende a autora no texto da petição online.
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