A mídia brasileira escreveu e falou bastante sobre “Anna Karenina – A História de Vronsky”.
O filme e seu diretor Karen Shakhnazarov, que veio ao Brasil no início de junho divulgar o lançamento, foram acolhidos com inegável simpatia. Além de cineasta, Shakhnazarov é também diretor-geral do Mosfilm, o maior estúdio da Europa.
Li e assisti mais de 70 matérias publicadas nos jornais impressos e eletrônicos. A opinião que prevalece é a de que se trata de um grande filme.
A exceção fica com o crítico da “Folha de São Paulo”, um certo Starling, que proclama suas verdades no ultrapassado estilo “guerra fria”. Em compensação, ele foi o único que explicou errado a seus leitores que o encontro entre o conde Vronsky e Serguei Karenin, o filho de Anna, ocorrido num campo de batalha da guerra russo-japonesa, foi baseado na narração realizada pelo escritor Vikenti Veresaev em uma de suas obras.
A verdade é que Veresaev nunca imaginou esse encontro – e Starling nunca leu Veresaev, embora procure passar a impressão de que sim. O encontro foi criado por Shakhnazarov e os demais roteiristas do filme.
E, por falar nesse encontro, publicamos abaixo um trecho de uma esclarecedora entrevista concedida pelo diretor russo à revista Kultura, em 8 de junho de 2017. Desfrutem.
SÉRGIO RUBENS
Sobre a morte do mundo de Anna e Vronsky
Fragmento da entrevista de Karen Shakhnazarov a Ksenia Pozdnyakova da revista Kultura
Kultura: Por que no filme você resolveu transportar o amante e o filho de Anna Karenina, [30 anos depois de ocorrida a tragédia], ao teatro de operações da Guerra Russo-Japonesa (1904-1905)?
Shakhnazarov: Houve uma primeira variante onde eles se encontrariam em 1917. Serguei encontra o velho Vronsky vivendo sozinho em sua propriedade, e aí começa a história. Mas faltava drama à ação. Eu queria fazer um enredo separado, especial para eles. Além disso, era importante mostrar a história do jovem Karenin, caso contrário o personagem sairia superficial.
Alguém dirá, “reescreveram Tolstoi”, e, sim, reescrevemos. E por que não?
Kultura: Acrescentaram ao texto de Tolstoi fragmentos do romance de Veresaev (Anotações de um Médico Sobre a Guerra Russo-Japonesa). Por que a escolha recaiu precisamente sobre ele?
Shakhnazarov: Surgiu a idéia da Guerra Russo-Japonesa porque ela nos permitia mostrar a queda do Império. Na verdade, os acontecimentos dessa guerra foram o começo do fim. Em seguida veio a Revolução de 1905 e tudo desmoronou. A Primeira Guerra Mundial e o ano de 1917 foram a pá de cal. Pareceu-me imprescindível refletir a morte do mundo onde a história de Anna e Vronsky se desenvolveu.
A escolha recaiu sobre Vikenti Veresaev (1867-1945). Além de escritor, ele participou diretamente daquela guerra sobre a qual deixou ótimas histórias. Nós aproveitamos muito dele. Todas as histórias dos oficiais. A maneira como Vronsky foi ferido quando o projétil atingiu o local onde jogavam baralho, tudo é de lá. Além disso, a estética da Guerra Russo-Japonesa é muito interessante: Manchúria, as colinas. E havia outro problema no trabalho com “Anna Karenina”. O próprio romance é estático e fechado no espaço, quase todos os eventos ocorrem em interiores, em salões. Filmando ao pé da letra, você não sairá dos limites das instalações. A China acrescenta muitos recursos visuais ao filme.
Kultura: A vida de Karenina desde o início voa para a morte, não é por isso que você rima sua história com a guerra que levou o Império Russo ao colapso?
Shakhnazarov: Lendo o romance, eu sempre via que a sociedade mostrada por Tolstoi [em 1875] estava à beira do colapso. No livro não há uma palavra sobre isso, mas, pelo menos para mim, a expectativa de uma catástrofe iminente salta dele. Não é por acaso que o elemento da ociosidade é sublinhado, a vida dos heróis é gasta em passatempos sem sentido, então você percebe que em algum lugar existem pessoas graças às quais essa vida inútil é possível. Eu acho que Tolstoi não criou à toa a imagem de um país atraente, mas condenado. A muito poucas pessoas isso vem à mente. Lenin chamou Tolstoi de “um espelho da revolução russa”. E ele era um homem genial e sentia muito sutilmente. Talvez ele tenha sentido isso lendo “Anna Karenina”. Em minha opinião, tais associações são inevitáveis. Ninguém sabe se Tolstoi mostrou isso intencionalmente ou se, como artista, simplesmente o expressou. Não importa: ele conseguiu.