O Brasil comemora neste 15 de novembro 133 anos da instauração de sua República.
Um marco histórico e um fato que representou uma clara ruptura política no processo de desenvolvimento da sociedade brasileira, de sua economia e de suas conquistas civilizatórias.
Sobre o palpitoso tema, nada mais oportuno que o leitor recorrer ao trabalho de fôlego realizado pelo Diretor de Redação da Hora do Povo, Carlos Lopes, sob o título A República e a formação do caráter nacional, publicado em 12 edições semanais, de 10/06/2020 a 27/08/2020 (https://horadopovo.com.br/a-republica-e-a-formacao-do-carater-nacional-1/).
Carlos Lopes, em outro trabalho de profundidade, postado anteriormente também no HP, ainda em 2015, (https://horadopovo.com.br/o-nascimento-da-republica-e-os-jabutis-em-cima-das-arvores/), já procurava desmistificar essa questão, denunciar as falsificações históricas e clarear alguns conceitos difundidos erroneamente por autores cujo pecado foi não se aprofundar na compreensão dos fenômenos que levaram ao advento da República e suas fases subsequentes, pelo menosprezo ao método científico e dialético, absolutamente indispensável para compreender o que se encontrava na raiz daqueles fatos – e não apenas em sua aparência.
Não por acaso, esses mesmos autores continuam, por preconceito ou, mesmo, ignorância, disseminando e produzindo velhas falácias – e, a principal delas, a de que a República representou exclusivamente uma obra das elites daquele tempo, obcecadas por sua sobrevivência política e econômica.
A República que comemoramos hoje não foi resultante, apenas, da crise instaurada no 2º reinado, mas da necessidade de afirmação de valores desprezados pelo regime monárquico decadente, como também – e principalmente – de efervescentes movimentos e conflitos de caráter popular, como A Cabanagem, revolta que aconteceu na província do Grão-Pará, entre os anos de 1835 e 1840, durante o Período Regencial; a Revolta dos Malês, em Salvador, Bahia, em 1835, que intensificou as lutas abolicionistas, precedida pelas 30 revoltas de escravos de 1807, período anterior à Independência, coroada pela Abolição decretada em 1888, um ano antes da inauguração do período republicano; a Balaiada, uma rebelião contra as péssimas condições de vida do povo, que explodiu em solo maranhense de 1838 e 1841; a Guerra dos Farrapos, deflagrada em 1835 por estancieiros e charqueadores gaúchos insatisfeitos com os altos impostos cobrados pelo governo imperial; entre outros acontecimentos que abalaram os alicerces da monarquia, açularam sua crise e resultaram em sua queda definitiva.
O desfecho da Guerra do Paraguai, para o qual o Brasil foi decisivo, e a questão relacionada ao papel destinado aos militares no novo regime, depois de desprezados pela monarquia, assim como os movimentos federalistas de então, seguramente, contribuíram também para a fermentação social e política que culminou com a República.
Desses episódios, certamente, o movimento abolicionista teve um papel fundamental para a proclamação da República, pois representava não apenas a necessidade civilizatória da ruptura com a escravidão, mas ao profundo anseio nacional pela industrialização do país.
Nada melhor para ilustrar essa questão do que recorrer à palavra esclarecedora de um dos principais artífices do novo sistema, Rui Barbosa, um jurista, não economista, responsável pela primeira Constituição republicana, de 1891: “A República só se consolidará sobre alicerces seguros quando as suas funções se firmarem na democracia do trabalho industrial”.
Do ponto de vista econômico, esse era o principal desafio do nascente período republicano. No entanto, a oligarquia que se esbaldava na exportação do café e outras riquezas nacionais fez da República Velha o principal obstáculo ao Brasil predominantemente industrial, prestando, na prática, com a sua resiliência, um desserviço à própria República proclamada anos antes.
O sistema republicano só voltou a se fortalecer a partir da ruptura promovida pela Revolução de 30, precisamente no momento em que o país deixa de ser, essencialmente, um supridor de matérias-primas às indústrias do mundo desenvolvido e passa a desenvolver a sua própria indústria.
Em menos de meio século, sob a liderança de Getúlio Vargas, nos tornamos uma nação industrial, os trabalhadores conquistam direitos fundamentais, libertando-se da semi-escravatura a que estavam submetidos na República Velha, o Estado Nacional passa a assumir protagonismo no desenvolvimento do país, emerge um empresariado com raízes nacionais, a Federação e a democracia se fortalecem, bem como suas instituições.
Mas, como a história não se desenvolve linearmente, a ditadura imposta em 1964 e, depois, praticamente, 3 decadas de hegemonia da política neoliberal no país, após a redemocratização, com raros e breves interregnos, voltaram a sacudir os alicerces republicanos, numa clara sinalização de que, sem a conclusão do processo de emancipação econômica do país dos grandes centros imperiais, hoje hegemonizados pelo capital financeiro (industrial + bancário), a República continuará sendo ameaçada e, com ela, seu principal fundamento: o sistema em que o povo é soberano para constituir um governo que atenda aos interesses gerais do cidadão.
Até mesmo a Nova República, inaugurada em 1985, sobre a qual depositou-se vultosas esperanças, depois da morte de seu principal artífice, Tancredo Neves, e após os cinco anos de governo de transição, viu-se estrangulada pela camisa-de-força da política ortodoxa e fiscalista que se estendeu ao longo das décadas seguintes, observados os reduzidos períodos de crescimento econômico e social.
Mas, talvez, em nenhum outro período, nem mesmo na ditadura, esses interesses gerais, agora, sob a égide do bolsonarismo, foram tão aviltados, agredidos e vilipendiados, tornando letra morta aquela que é cláusula pétrea da Constituição Federal.
Afinal, como afirmar a República numa realidade em que 33 milhões de brasileiros encontram-se famintos e mais da metade da população em insegurança alimentar; onde os direitos mais elementares dos trabalhadores, transformados em novos escravos do sistema econômico, são menosprezados ou surrupiados? Como afirmá-la no território em que serviços públicos absolutamente essenciais de saúde, educação, segurança e proteção social foram ineditamente sucateados?
Como afirmar a República dentro de um ordenamento econômico míope que retira do Estado sua capacidade de investir na promoção do crescimento e do desenvolvimento nacionais, mas lhe dá carta branca para alimentar o setor financeiro com a desvairada transferência de renda dos que vivem do trabalho e da produção, ou, ainda, para alienar o patrimônio público estratégico ao país, comprometendo irremediavelmente sua soberania? Como afirmá-la diante da tenebrosa onda que desindustrializa o país?
Na era Bolsonaro que, felizmente, chega ao fim – não, o bolsonarismo, infelizmente, alcançamos o ápice dessas ameaças, que se estenderam, nesses trágicos 4 anos, à democracia, à soberania e às instituições republicanas.
A República, nesse cenário, cambaleou, mas resistiu, e o povo que a construiu historicamente foi às ruas e às urnas para apontar um novo caminho, que haverá de ser seguido pelo novo governo – o do crescimento econômico, com justiça social e respeito à democracia e à soberania nacional.
Que as comemorações da República representem o fortalecimento de seus fundamentos, para que os interesses gerais do povo se sobreponham aos de uma casta econômica cevada melancolicamente por diferentes governos que ignoraram outro ensinamento de Rui daquele período republicano que infelicitou os brasileiros, no início do século passado, e que cabe como luva nos dias de hoje: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto … Essa foi a obra da República nos últimos anos”.
Pois que a obra de reconstrução nacional a ser iniciada e, em certa medida, reiniciada pelo presidente Lula seja inspirada no pensamento desse e de outros líderes republicanos, inclusive, para que a República volte a ser comemorada patrioticamente como merece – com o verde-amarelo nas ruas exaltando a democracia, nossa história e nossos mártires, e não em sua cínica e patética demonstração de adoração cega ao neofascista e entreguista de plantão.
MARCO ANTÔNIO CAMPANELLA